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Empatia: história, emoções e comunidades emocionais


Como os historiadores podem estudar emoções? Como explicar, historicamente, os sentimentos de indivíduos e coletividades? O que faria com que certas épocas deixassem mais ou menos registros de manifestações de emoções, como, por exemplo, a empatia e a compaixão?

No centro de nossos atuais debates sobre as respostas que as sociedades ao redor do mundo têm dado à pandemia do novo coronavírus está o manejo e a política de nossas emoções. Por um lado, consideramos a preocupação com os efeitos psicológicos da pandemia, particularmente os efeitos do distanciamento social e a ansiedade gerada pelas incertezas quanto à própria saúde e sobrevivência econômica. Por outro, vemos como o desenvolvimento e aplicação de políticas públicas voltadas à contenção do contágio podem depender de emoções como a empatia e a compaixão pelo próximo, condicionando o comportamento para ações de solidariedade que se sobreponham aos interesses individuais.

Para xs historiadorxs, o estudo das emoções é um campo que tem crescido nos últimos anos. Desde trabalhos pioneiros como a história do medo (Delumeau, 2009), das lágrimas (Vincent-Buffault, 1988) ou do riso (Minois, 2003), até estudos recentes sobre a dor (Bourke, 2014), passando pelo trauma (um tema forte na historiografia; Seligmann-Silva, 2008), historiadorxs têm dedicado grande atenção a esse multifacetado objeto. Metodologicamente, o estudo dos afetos e da sensibilidade alheia, especialmente quando tratamos de contextos históricos diferentes do nosso, impõe desafios à historiografia, que tem aprofundado também os debates teóricos e as discussões metodológicas (uma introdução a esses debates e métodos pode ser lida no livro de Barbara H. Rosenwein, História das emoções: problemas e métodos [2011]). Significativamente, o que poderia parecer um tema inevitavelmente ligado à irredutibilidade do indivíduo (cada um de nós teria um jeito particular de vivenciar emoções) possui também um caráter social, do ponto de vista histórico. Analisando a cultura, especialmente a literatura, o crítico cultural marxista britânico Raymond Williams (2011) já havia apresentado o conceito de estrutura de sentimento para designar um conjunto de atitudes que determinadas épocas possuem em relação aos sentimentos. Recentemente, historiadorxs das emoções têm utilizado o conceito de comunidades emocionais. Conforme caracterizado por Barbara Rosenwein, a noção de comunidade emocional permite ao historiador investigar como determinadas coletividades definem o que é importante e o que é prejudicial a elas; como avaliam as emoções dos outros; a natureza de seus laços afetivos; e as formas de expressão emocional que são, em um contexto histórico particular, esperadas, encorajadas, toleradas e deploradas.

Uma época ou contexto histórico não possui, porém, uma única comunidade emocional homogênea, de acordo com xs historiadorxs das emoções. Diferentes comunidades emocionais podem coexistir. Desse modo, entenderíamos por que algumas atitudes são percebidas como intoleráveis por certos grupos numa sociedade, enquanto são praticadas abertamente por outros grupos. O descaso ou a tendência a minimizar o sofrimento causado pela pandemia de covid-19, por exemplo, é considerado uma inaceitável falta de empatia, compaixão e humanidade por determinada parcela de nossa sociedade; para outra parcela, no entanto, a relativização desse sofrimento parece perfeitamente justificável (inclusive quando parte de políticos e autoridades).

No centro desse debate está a empatia e a compaixão como partes de nossa “comunidade emocional”. Para a história, no entanto, a empatia não foi apenas vista como objeto de estudo. Para algumas tendências do pensamento histórico, sobretudo no final do século XIX, fazia parte central da metodologia do historiador possuir empatia, ser capaz de se colocar no lugar daqueles que estudamos. Dentre estas tendências, destaca-se o pensamento de Wilhelm Dilthey.

O filósofo alemão Wilhelm Dilthey (1833-1911) foi um dos criadores do método hermenêutico, a qual José Carlos Reis (em A História, entre a filosofia e a ciência) refere-se como um método “poético-científico”, pois por definição deve “reconstruir o vivido” e descobrir significações nos sinais exteriores nas interpretações de palavras, gestos e obras. O método hermenêutico utiliza-se de algumas técnicas e regras de interpretação, porém, em essência, depende do talento e da sensibilidade do pesquisador que o aplica.  Para Wilhelm Dilthey o único caminho que ainda poderia estar aberto para a filosofia da história era o caminho da crítica kantiana, deste modo, a filosofia crítica da história deveria assumir as questões postas por Kant à física newtoniana, para então descobrir o caráter específico do conhecimento histórico. Se para Ranke a objetividade do conhecimento histórico era possível através da metodologia e do apego aos fatos objetivos, para Dilthey este otimismo objetivista impunha sérios problemas.

A humanidade só pode conhecer algo que ela mesma tenha criado. Esta é a tese de Dilthey (tese que remete a Giambattista Vico [1668-1744]): o homem não criou a natureza, logo, é incapaz de compreendê-la em sua totalidade. No entanto, criou o mundo social, o direito e a cultura; o conhecimento deve atravessar as aparências e atingir o “interior” de seu objeto.

Dilthey se opunha à metodologia das ciências naturais aplicadas à teoria da história; os métodos das ciências naturais são usados para estudos exteriores ao homem, podendo apenas descrever, mas nunca penetrar seus objetos; esta é a razão pela qual tal metodologia não poderia ser usado para o conhecimento das criações do espírito. Além do mais, os objetos das ciências naturais não produzem sentido em si, não possuem intenções e não realizam ações, não sendo sujeitos; e como poderia se conhecer um sujeito-objeto com o método das ciências naturais? O conhecimento do homem não pode ser apenas uma descrição externa, a estratégia apontada por Dilthey aborda o interior, por meio da compreensão. A compreensão é a tentativa de “coincidência” estrutural com a vida psíquica, que é seu objeto. Pondo-se no lugar do outro, o historiador o compreende: recria, revive a experiência vivida pelo outro, conhece-o por dentro.

A abordagem do “vivido” só poderia ser intuitiva, empática e compreensiva, partindo do indivíduo e não do grupo; o indivíduo é uma unidade concreta, uma “duração psicológica” que não se repete. A causa disto não lhe vem do exterior ou é metafísica, visto que, é uma estrutura vital adequada ao meio; o passado está retido no presente e o presente é a totalização desse passado.

A individualidade (povo ou nação) possui uma estrutura em incessante evolução, no entanto, esta evolução é limitada pela própria estrutura. Por esta razão, cada instante possui um valor insubstituível em si mesmo e a evolução de uma individualidade histórica torna-se uma continuidade feita de descontinuidades: a vida é, portanto, uma “estrutura” (continuidade)  “criadora” (descontinuidade).

Um sujeito capaz de objetivar-se enquanto uma totalidade singular retoma seu “outro” passado em busca da consciência de si, conhece sua estrutura permanente e as evoluções que viveu. Para Dilthey, o sujeito que toma o passado como objeto, objetiva a si mesmo; não se separa do objeto, encontra-se separado dele pelo esquecimento; o objetivo da pesquisa histórica deve ser abolir o esquecimento que levou à separação do sujeito dele mesmo, éereintegrar o passado no presente como consciência interna de si. 

Ao longo das últimas décadas podemos acompanhar o crescimento contínuo do individualismo potencializado por meio das ideologias neoliberais e isso se manifesta na atual pandemia em uma escala desoladora. Junto a isso, vemos diminuir a cada dia as possibilidades da teoria diltheyana na prática, pois com o aumento do número de vítimas da covid-19, a indiferença passou a ser condição natural de nossa existência.

Os interesses e planos individuais se sobrepõem ao número de vítimas que tiveram suas vidas negligenciadas pelo Estado; ganha força o discurso formado pelas correntes negacionistas da história e o nosso maior desejo tem sido pular o ano de 2020 e de preferência também retirá-lo da história. A reprodução dos discursos que insinuam a omissão e o desdém pela pandemia, tornaram-se inconscientes, como se graças à condição de isolamento o ano presente estivesse parado no tempo.

No Brasil o negacionismo é um senso-comum, uma banalidade que pretende calar, ocultar e esquecer as angústias marcadas em sua construção; como o genocídio dos povos indígenas; as consequências deixadas pela escravidão dos povos africanos; ou as torturas e perseguições que ocorreram na ditadura militar. A partir deste modus operandi, as causas e efeitos do desenvolvimento da pandemia no país estarão designados a serem mais uma vítima desta ideologia.

A forma como lidamos com a memória das vítimas do novo coronavírus é a evidência empírica do déficit de empatia da cordialidade brasileira. Como contribuição dos historiadores a esse cenário, a história das emoções oferece ricas maneiras de compreender as transformações, ao longo do tempo, das atitudes diante de sentimentos que consideramos básicos da nossa condição humana. E nos cabe lembrar, ainda, que do olhar compreensivo sobre o outro depende também a possibilidade do conhecimento histórico. Conhecer a história depende, em parte, de certa dose de empatia; quanto mais história, mais compreensão e empatia.


Imagem de capa: releitura do quadro "Operários" (1933), de Tarsila do Amaral. Disponível em https://anotabahia.com/estudo-aponta-que-uso-massivo-de-mascaras-pode-impedir-segunda-onda-de-covid-19/, acesso em 01/10/2020.


Referências

BOURKE, Joanna. The Story of Pain: From Prayers to Painkillers [A história da dor: das orações aos analgésicos]. Oxford: Oxford University Press, 2014.

DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente 1300-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

GARCÍA DE ORELLÁN, Sarah Hidalgo. “La historia de la historia de las emociones: mapeo de debates en proceso”. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 40, no. 83, 2020, p. 219-234.

MINOIS, George. História do riso e do escárnio. São Paulo: Editora Unesp, 2003.

REIS, José Carlos. A História, entre a Filosofia e a Ciência. São Paulo: Editora Ática, 1996.

ROSENWEIN, Barbara H. História das emoções: Problemas e métodos. São Paulo: Letra e Voz, 2011.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. “Narrar o trauma – A questão dos testemunhos das catástrofes históricas”. Psicol. clin., vol.20 no.1 Rio de Janeiro, 2008.

VINCENT-BUFFAULT, Anne. História das Lágrimas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

WILLIAMS, Raymond. Cultura e materialismo. São Paulo: Ed. Unesp, 2011.


Sugestões de links

https://inumeraveis.com.br/

https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2020/08/20/Quando-o-otimismo-na-pandemia-%C3%A9-nega%C3%A7%C3%A3o-e-conformismo

https://folhadolitoral.com.br/editorias/coronavirus/como-a-psicologia-explica-a-negacao-da-pandemia/

https://educacao.uol.com.br/noticias/agencia-estado/2019/04/28/com-risco-de-chegar-as-escolas-negacao-da-historia-preocupa-especialistas.htm#:~:text=Com%20risco%20de%20chegar%20%C3%A0s%20escolas%2C%20nega%C3%A7%C3%A3o%20da%20hist%C3%B3ria%20preocupa%20especialistas,-Parentes%20de%20desaparecidos&text=N%C3%A3o%20houve%20ditadura%20no%20Brasil,e%20por%20declara%C3%A7%C3%B5es%20de%20pol%C3%ADticos.

https://domtotal.com/fato-em-foco/508/2019/06/a-negacao-da-historia-como-arma-politica/

https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2020/05/16/como-o-mito-do-homem-cordial-embaca-a-percepcao-sobre-o-brasileiro.htm


Gilson José de Oliveira Neto, estudante do curso de História - América Latina da UNILA e bolsista do projeto de extensão Blog de História UNILA

Pedro Afonso Cristovão dos Santos, professor de Teoria e Metodologia da História da UNILA

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