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Monumentos históricos e heranças de opressão nos protestos de 2020: Entrevista com Ana Rita Uhle, professora de História da UNILA

Ao longo deste ano de 2020, mesmo em meio à pandemia de Covid-19, milhares de pessoas ao redor do mundo têm saído às ruas para protestar contra o racismo e outras formas históricas de opressão, tendo as estátuas e monumentos públicos como alvo e palco das manifestações. Nesta última segunda-feira, 12 de outubro, data que marca a chegada da expedição de Cristovão Colombo às Américas, novos protestos foram registrados; em Portland, nos EUA, estátuas de ex-presidentes norte-americanos foram alvo, também em razão de políticas contra populações indígenas. Nos EUA, por exemplo, nas manifestações registradas até aqui, personalidades racistas que foram e ainda são homenageados publicamente, passaram a ser questionadas, como o general Robert E. Lee, líder militar dos confederados na Guerra Civil norte-americana (em defesa da manutenção da escravidão no país) e figuras que foram donos de escravos, como George Washington e Thomas Jefferson.

O presidente norte-americano Woodrow Wilson, que assinou o tratado de versalhes, teve seu nome retirado de uma das faculdades da Universidade de Princeton. A estátua que mostra o ex-presidente Theodore Roosevelt acompanhado de um indígena e  um homem negro seminus, também será retirada da frente do Museu de História Natural de Nova York.

Nos Estados Unidos a herança espanhola também está sendo questionada por ativistas indígenas, que lutam pela retirada das estátuas de personalidades colonialistas há anos. Em San Francisco, o frade Junípero Serra, fundador das primeiras missões da Califórnia, teve sua estátua derrubada, o mesmo aconteceu em Los Angeles. No Novo-México a estátua do conquistador Juan de Oñate em Albuquerque também sofreu fortes ataques.

Nesta postagem do blog, conversamos com a profa. Ana Rita Uhle, dos cursos de História Bacharelado e Licenciatura da UNILA, sobre a onda de protestos que colocou o patrimônio no centro dos debates.

 

Profa. Ana Rita, obrigado por colaborar com o Blog de História da UNILA. Como a senhora vê as relações entre memória, história e patrimônio no contexto das manifestações ao redor do mundo de contestação de estátuas de figuras históricas ligadas ao racismo e ao colonialismo?

 

Resposta: 

Agradeço a oportunidade de conversar com o Blog de História da Unila sobre tema tão interessante e que tem mobilizado a opinião pública nos últimos meses.

Gostaria incialmente de fazer duas ponderações. A primeira delas é a seguinte: a gestão dos monumentos, das estátuas e, portanto, das memórias materializadas na cidade, é um tema de interesse público e é importante que seja debatido na esfera pública pelo conjunto de pessoas que vivencia esses espaços. A segunda ponderação diz respeito às ideias de preservação e destruição, que caminham juntas no campo do patrimônio, não existe preservação sem destruição.

A noção moderna de Patrimônio, por exemplo, está relacionada às manifestações revolucionárias na França do século XVIII, nas quais estátuas foram decapitadas, igrejas e castelos destruídos, porque estavam identificados à monarquia ou à Igreja no período do Antigo Regime. Entre outros processos que foram igualmente relevantes, essas ações iconoclastas impulsionaram um movimento de seleção e proteção de obras de arte que estavam em risco e que posteriormente seriam consideradas patrimônio nacional e alocadas em museus. Houve um esforço organizado em frear a revolta popular e criar um aparato jurídico de proteção desses bens, que seriam salvaguardados pelo Estado. O termo “vandalismo" foi cunhado pelo Abade Grégoire nesse período, para caracterizar essas manifestações revolucionárias, e é usado até hoje. Os museus, que receberam e cuidaram dessas obras, também abrigaram objetos saqueados das colônias francesas, portanto, fruto de destruição do território ocupado.

Bem, o processo de seleção e preservação de um conjunto de monumentos históricos foi fundamental no período da formação dos estados nacionais porque dava materialidade às narrativas sobre um passado comum, na forma de museus e monumentos nacionais. Essas obras, evidentemente, ressoam narrativas que se produziam no período, etnocêntricas e pautadas nos "feitos" de um punhado de personagens históricos.                    

No contexto das cidades, os monumentos funcionavam como marcos urbanos, tinham a função de educar pelas imagens, constituindo-se em lugares de uma memória nacional, afetiva e sagrada. Os ritos fundados pela República, as comemorações e festas cívicas, por exemplo, davam-se muitas vezes aos pés dos monumentos públicos.

Portanto, as estátuas que estão sendo derrubadas ou questionadas nesse momento são tributárias desse período. Os homenageados eram, via de regra, homens, brancos e ricos. Essa era, predominantemente, a história produzida na época e, além disso, os idealizadores desses monumentos eram políticos que pertenciam a essas mesmas categorias, ou seja, era um processo de auto-representação. Esse período ficou conhecido como “estatuomania", em razão da quantidade enorme de estátuas que foram construídas.

A crítica, a intervenção e até a derrubada de monumentos não é algo novo, especialmente no contexto latinoamericano. É importante lembrar de Chiapas, em 1992, quando um grupo de indígenas derrubou e decapitou a estátua do colonizador espanhol Diego de Mazariegos. No contexto das manifestações chilenas, em 2019, muitas estátuas foram visitadas pelos manifestantes como forma de protesto.

Entretanto, o assassinato de George Floyd desencadeou manifestações anti-racistas globais. Me impressiona o fato de que apenas em junho de 2020 a estátua do Rei Leopoldo tenha sido retirada de uma praça pública na Bélgica. Isso diz muito sobre um olhar, que se faz presente com força na Europa, a respeito do processo colonial e do continente africano. Mas também significa que algo mudou, que há outras narrativas sendo escritas nesse momento e que disputam espaço nas cidades.

 

Profa. Ana Rita, no contexto específico do Brasil, como a senhora vê os debates? Que legados e heranças de nossa história demandam maior problematização em nossos monumentos públicos?

Resposta:

No Brasil temos um conjunto significativo de estátuas, especialmente nas capitais, que narram a colonização promovendo apologia à invasão desse território por europeus, submetendo os povos indígenas a leituras estigmatizadas, para dizer o mínimo. A população negra é raramente representada, especialmente nas regiões Sul e Sudeste. Não é incomum, por exemplo, que os monumentos celebrativos brasileiros apresentem crianças indígenas sem mãe, pai ou qualquer membro da sua comunidade, acompanhadas apenas de homens brancos, o que me parece bastante violento. Isso tem relação com o lugar ocupado pelo jesuíta na chave explicativa da colonização brasileira. Aliás, os monumentos criam uma espécie de índio genérico, visualmente “pacificado" (são raras as representações de cocares, botoques e outros elementos associados a uma resistência cultural indígena). Essas imagens, como sabemos, têm um poder enorme e precisam ser problematizadas, tensionadas, desconstruídas. Homens brancos aparecem, em geral, em poses eretas, expressando força (bandeirante, por exemplo) ou compaixão (no caso do jesuíta).

A intervenção "Glória às Lutas Inglórias", da artista Nele Azevedo, no Páteo do Collegio, em São Paulo. Para conhecer mais sobre a obra, veja https://www.neleazevedo.com.br/texto-gloria-as-lutas-inglorias. Fonte da imagem: https://static.wixstatic.com/media/b69ec0_e58a3e426bdd4579bd1d2ed1c7be0ad8~mv2.jpg/v1/fill/w_800,h_532,al_c,q_90/b69ec0_e58a3e426bdd4579bd1d2ed1c7be0ad8~mv2.webp


Alguns artistas têm feito trabalhos muito interessantes de questionamento dos monumentos celebrativos, especialmente desde a virada dos anos 2000. Cito especialmente o trabalho de Nele Azevedo, no Brasil, de Daniela Ortiz, peruana radicada em Barcelona, e de Juan Javier Salazar, no Peru. Nele Azevedo idealizou o anti-monumento Glórias às lutas inglórias, questionando o apagamento do povo indígena em um monumento construído para comemorar a fundação de São Paulo. Daniela Ortiz idealizou performances que questionam a representação submissa dos indígenas nos monumentos espanhóis. E Salazar cobriu a estátua de Pizarro, em Lima, com um tecido estampado que simbolizava uma muralha inca. Esse é um movimento interessante, que chama atenção para as questões que estamos debatendo.

Entretanto, há outra dimensão sobre essas estátuas que pode ser explorada. No Brasil foram construídas por escultores que, em geral, tinham pouca escolaridade. A escultura em pedra é um trabalho árduo e o “ambiente artístico", além da origem social desses artistas, é muito diferente dos pintores. Havia um enorme esforço por parte dos artistas em ler e conhecer a história dos personagens e episódios encomendados e esse é um processo muito interessante de ser estudado. Por isso, me interessa pensar no potencial dos monumentos como fontes históricas, o que não significa que precisam continuar habitando as nossas praças centrais, mas observar que há outras histórias que podem ser contadas a partir dessas estátuas, que não aquelas que as obras se propõem a contar.

Voltando ao tema da preservação/destruição, quero lembrar o Monumento horizontal, realizado pela Frente 3 de fevereiro para denunciar/lembrar o assassinato do jovem dentista Flavio Sant'Ana, "confundido com um assaltante" pela Polícia Militar de SP em 2004. A obra foi removida por três vezes pelas próprias forças de segurança. A primeira remoção aconteceu logo na primeira semana.

O que escolhemos proteger/preservar? O que escolhemos destruir/apagar?

Penso que o tema não pode ser um tabu entre historiadoras/es e que as decisões sobre as obras precisam ser debatidas e decididas coletivamente.

"Monumento Horizontal", Frente 3 de Fevereiro (Fonte: http://casadalapa.blogspot.com/2009/02/frente-3-de-fevereiro-monumento.html, acesso em 15/10/2020)

Para a senhora, qual a importância da educação patrimonial nas escolas para problematizar a relação do público com as estátuas e monumentos de Estado?

Resposta:

Considero fundamental, mas é preciso construir uma educação patrimonial que não esteja baseada no projeto de convencimento sobre a importância do patrimônio, sem questionar os processos que engendraram a sua construção. Penso que a educação patrimonial precisa partir de perguntas, não de respostas. A qual comunidade pertenço? Quais memórias me representam? Como quero ver representadas essas memórias? O que posso aprender sobre a minha cidade, estado, país, comunidade, por meio desse patrimônio? Nesse sentido, acho importante mencionar o trabalho dos museus comunitários, que possuem forte atuação da sociedade civil (movimentos sociais, coletivos) e que atentam para essas questões. Temos muito o que aprender com eles sobre a educação patrimonial. O Museu da Maré, no Rio de Janeiro, é um bom exemplo.


A senhora poderia descrever um pouco as atividades da disciplina de História e Patrimônio nos cursos de História da UNILA (Bacharelado e Licenciatura)? Que possibilidades de reflexão sobre o patrimônio a cidade de Foz do Iguaçu e a região da Tríplice Fronteira fornecem a professores, pesquisadores e estudantes?

Resposta:

A disciplina de História, Patrimônio e Memória da Unila parte de um debate sobre a origem do conceito de patrimônio e o modo como a questão se estabelece na América Latina. Tentamos discutir com profundidade o tema da ampliação do conceito, ao abranger a imaterialidade e, nesse sentido, compreendendo o descolamento do Patrimônio como expressão de um passado nacional enquadrado, branco e etnocêntrico, ao converter-se também em espaço de atuação de comunidades tradicionais e de movimentos sociais, como forma de resistência. Buscamos questionar junto aos estudantes as suas vivências na cidade e os espaços de memórias. Nos debates construídos na disciplina buscamos pensar sobre o patrimônio da Tríplice Fronteira entendendo seu vínculo com a exploração turística (onde predomina muitas vezes uma visão do povo indígena como algo do passado, sem nome, sem história), sem perder de vista a possibilidade de produção de narrativas sobre o passado fronteiriço por meio da memória e do patrimônio.


A profa. Ana Rita Uhle possui graduação em História pela Universidade de São Paulo (2002). Dedicou-se aos estudos dos monumentos públicos e das relações entre a memória, a história e as imagens. Defendeu mestrado (2006) e doutorado (2013) na área de Política, Memória e Cidade, do Curso de Pós-graduação em História da Universidade Estadual de Campinas. Realizou estágio-sanduíche na Universidade de Coimbra (2007-2008). Tem se dedicado também aos estudos sobre o ensino de história, especialmente na área dos estágios supervisionados. Atua principalmente nos seguintes temas: Monumentos, Imagens, Memória, Educação e Patrimônio. Atualmente, Ana Rita Uhle está atuando como professora na Universidade Federal da Integração Latino-Americana, no Instituto Latino-Americano de Arte, Cultura e História.


A UNILA possui iniciativas voltadas para o patrimônio em Foz do Iguaçu: um exemplo delas é o projeto de tombamento do Marco das Três Fronteiras, realizado pelo projeto de extensão da UNILA Tekoha Guasu – Educação Patrimonial Material e Imaterial, desenvolvido desde 2014 e coordenado por Pedro Louvain, servidor da Universidade (https://www.clickfozdoiguacu.com.br/marco-das-tres-fronteiras-pode-ser-primeiro-patrimonio-cultural-de-foz-a-ser-tombado/#, acesso em 15/10/2020). Mais informações sobre o projeto estão disponíveis em https://portal.unila.edu.br/imea/nucleos/integracao-e-cultura/tekoha-guasu. 


Realizaram a entrevista:

Gilson José de Oliveira Neto, estudante do curso de História - América Latina da UNILA e bolsista do projeto de extensão Blog de História UNILA

Pedro Afonso Cristovão dos Santos, professor de Teoria e Metodologia da História da UNILA

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