Produtores, e não apenas consumidores, de história: Raphael Samuel, as Oficinas de História e os trabalhadores historiadores de si mesmos
A historiografia marxista britânica do período pós-II Guerra Mundial deixou marcas relevantes nas formas de se pensar e escrever história. A principal foi, decerto, a proposta de uma “história vista de baixo”, mas outras iniciativas são, até hoje, importantes por suas perspectivas críticas e criativas (como a colaboração interdisciplinar na elaboração dos chamados Estudos Culturais, por exemplo). Dentre as iniciativas surgidas do seio deste grupo de historiadores e historiadoras está uma atividade que uniu pesquisa e escrita da história, pedagogia e política: a History Workshop (Oficinas de História), do Ruskin College, espaço para educação de adultos em Oxford, Inglaterra. As oficinas foram concebidas e coordenadas, em seus primeiros anos, por Raphael Samuel (1934-1996), historiador marxista e militante socialista.
Membro do Partido Comunista Britânico, Samuel deixou a
organização em 1956, em reação à invasão da Hungria pela União Soviética
(seguindo o que outros membros também fizeram, como os historiadores Dorothy e
E. P. Thompson). Samuel, ao lado de Thompson, Christopher Hill e outros, fez
parte do grupo de historiadores do PCGB. Envolveu-se também com a publicação
dos periódicos Past & Present, do qual foi um dos cofundadores (em
1952) e Universities and Left Review, que cofundou e coeditou ao lado de,
entre outros, Stuart Hall. A Universities and Left Review juntou-se ao
periódico The New Reasoner (de John Saville e E. P. Thompson) gerando a New
Left Review (fundada em 1960), cujo primeiro editor foi Stuart Hall.
Nos anos 1960, em seguida a um período na Irlanda, Samuel
retornou à Inglaterra e conseguiu emprego como professor do Ruskin College de
Oxford, instituição independente fundada em 1899 para educação de adultos. No
Ruskin College, Samuel envolveu-se nos debates que buscavam lutar contra a
mudança de uma educação de trabalhadores (simbolizada na Worker’s
Educational Association, WEA), voltada para pensar a consciência de classe
dos trabalhadores e aproveitar suas experiências, para uma educação para adultos
– voltada para inserir os estudantes na sociedade e, principalmente, no mercado
de trabalho. Samuel era crítico do tratamento dado aos estudantes, que, em sua
visão, menosprezava suas experiências de vida em prol de um currículo elitizado
e alheio aos trabalhadores. Especialmente discriminador, para Samuel, era o
fato de os estudantes oriundos da classe trabalhadora terem pouquíssimo
estímulo para pesquisas próprias (sem bolsas, por exemplo), sendo empurrados
para um ensino meramente reprodutor dos conteúdos de currículos que os
ajudariam a obter ocupações no mercado de trabalho.
Nesse contexto, Samuel buscou, em seus cursos de História,
gerar um ambiente menos formal e hierarquizado, onde os estudantes aprendessem
o ofício de historiador (ao invés de conteúdos prontos) e se tornassem capazes
de escrever história (especialmente a própria história, ou a história de sua
classe). Samuel adotou, para isso, o formato das Oficinas de História (History
Workshop). O nome carregava a ideia da história como um ofício, algo que se
aprende fazendo, além de remeter às experiências e imaginário da classe
trabalhadora. Sua escolha, por outro lado, refletia as inspirações e a atenção
de Samuel também às artes: o nome era inspirado nas Oficinas de Teatro (Theatre
Workshop) organizadas por Joan Littlewood e Ewan MacColl na Inglaterra
entre 1945 e 1967. Também com forte conteúdo político, o Theatre Workshop
apresentou a primeira montagem de Mãe Coragem e seus filhos, de Bertolt
Brecht, na Inglaterra, em 1955 (SCOTT-BROWN, 2017, p. 112).
O History Workshop começou em 1966, como um
seminário informal de estudantes, conforme relata Sophie Scott-Brown (o
primeiro tema do seminário foi “O interior inglês no Século XIX”). Sua
organização mesclava a participação de historiadores já estabelecidos com a
apresentação de artigos dos estudantes, relatando suas próprias pesquisas.
Desse modo, historiadores como Dorothy Thompson, E. P. Thompson e Eric J.
Hobsbawm apresentavam relatos de suas pesquisas, e ouviam e debatiam as
pesquisas dos estudantes.
Samuel procurava fazer seus estudantes se interessarem pela
pesquisa histórica ao mostrar, ele mesmo, interesse na história de vida e nas
experiências dos estudantes, valorizando-as e mostrando-lhes sua importância
como fontes para a História. Por outro lado, Samuel também buscava engajar os
estudantes descobrindo seus interesses pessoais, estimulando estudantes
interessados em literatura, por exemplo, a utilizar romances como fontes
históricas e a fazer perguntas históricas a seus livros preferidos (SCOTT-BROWN,
2017, p. 117). Dessa maneira, Samuel procurava desfazer a resistência dos
estudantes aos arquivos, vistos como repositórios da vida das elites.
Sobre esse ponto incidia um aspecto central das History
Workshop: a concentração nas fontes primárias da História. Samuel
relatou que “Voltar às fontes” [“Back to the sources”] foi um dos primeiros
lemas da Oficina e o centro de sua prática nos primeiros anos (SAMUEL, 1980, p.
167). As oficinas não se limitavam a fontes escritas: muitas pesquisas eram
sobre cultura material, artes, televisão, fotografia, arquitetura, teatro,
sempre questionando-as como fontes históricas. Samuel também demonstrou grande
interesse pela emergente História Oral, contribuindo com a Oral History Society
e com o periódico Oral History Journal, ambos fundados em 1971 (SCOTT-BROWN,
2017, p. 119).
Um segundo aspecto crucial das History Workshop era a
conexão entre presente e passado. Situações atuais de interesse para os
estudantes adultos eram relacionadas a eventos e processos do passado que os
ajudassem a compreender e agir no presente. Assim, os dilemas do movimento
sindical e trabalhista de seu tempo (anos 1960 e 1970) eram iluminados pelo
estudo das formas de organização e luta dos trabalhadores no século XIX, por
exemplo.
Com formato aberto e preocupação com uma história criativa,
o History Workshop foi um dos primeiros espaços de discussão da nova
história das mulheres na Inglaterra, impulsionada pelo movimento de liberação
feminina (Women’s Liberation Movement). Historiadoras como Anna Davin,
Sheila Rowbotham e Sally Alexander se destacaram, especialmente a partir do
início dos anos 1970, em uma conquista de espaço que não foi imediatamente
amistosa: alguns membros do movimento socialista defendiam que o conceito
central de sua luta deveria continuar a ser o de classe social,
sobrepondo outras determinações e identidades. O trabalho e a militância das
historiadoras citadas, entre outras, foi fundamental para a realização da
importância do corte de gênero, tanto nos estudos históricos, como nos
movimentos emancipatórios.
A produção de pesquisas nas oficinas começou a gerar
publicações, já no final dos anos 1960, e, em 1976, uma revista, a History
Workshop Journal (publicada até hoje). No editorial da primeira edição, o
coletivo de editores da revista relembrou sua filiação às oficinas do Ruskin
College (que então completavam dez anos), e afirmou os princípios da revista e
das oficinas. O editorial assegurou que a revista, tal qual as oficinas,
preocupava-se em trazer os limites da história para mais perto da vida das
pessoas. O que permeava a revista e a oficina era a percepção de um
“estreitamento da influência da história em nossa sociedade, e seu progressivo
afastamento da batalha das ideias” (History Workshop Journal, 1976, p.
1, tradução nossa). Embora o interesse do público por história continuasse
grande, expresso em literatura, filmes, programas de televisão, entre outros,
de conteúdo histórico, a história acadêmica havia se distanciado do público.
Particularmente preocupante era o afastamento entre ensino de história e
pesquisa histórica.
Em texto publicado em 1980 no próprio History Workshop
Journal, Samuel relembrou os primórdios e os propósitos do History
Workshop. Segundo o historiador, o projeto começou como uma “prática educacional
alternativa”, uma tentativa de “encorajar os estudantes de Ruskin – homens e mulheres
da classe trabalhadora, vinculados aos movimentos trabalhistas e sindicatos – a
se engajarem em pesquisa, e a construírem sua própria história” (SAMUEL, 1980, p.
163, tradução nossa). Os estudantes apresentavam panfletos sobre seus
temas de pesquisa, geralmente escritos em seus tempos livres, nas folgas de
seus empregos (por conta dessas condições, os temas de pesquisa eram
rigorosamente delimitados, com recortes de tempo e espaço históricos viáveis
para serem explorados pelos estudantes). A ênfase no trabalho com as fontes
garantia que a história escrita nas oficinas seria crítica e original em
relação à historiografia acadêmica estabelecida.
Buscando inspiração na microssociologia e na antropologia social
e cultural dos anos 1960, as oficinas enfatizavam a experiência de vida dos
trabalhadores. As sessões de discussão dos panfletos eram eventos políticos e
culturais (com apresentação de canções tradicionais populares, por exemplo), e
muitos historiadores não acadêmicos que vinham de outras partes da Grã-Bretanha
participar das sessões dormiam no próprio espaço das discussões. As oficinas partiram,
desde o início, do princípio da autogestão (“self-management”, SAMUEL, 1980, p.
165).
Tanto a History Workshop como sua revista tinham como objetivo central “desmistificar o processo de pesquisa [histórica], e compartilhar a experiência do historiador com os leitores” (SAMUEL, 1980, p. 175)
Do ponto de vista historiográfico, Samuel destaca quatro pontos centrais na proposta da History Workshop. O primeiro era a “tentativa deliberada de escapar das convenções e da frieza dos seminários de pesquisa” universitários da época (SAMUEL, 1980, p. 167, tradução nossa). Para isso, as oficinas geravam ambiente informal e mesclavam iniciativas culturais às discussões históricas. O segundo ponto era a “democratização da prática histórica”. Muitos participantes eram historiadores estreantes (“first-time historians”). Para assegurar a democratização, alguns princípios eram observados, como por exemplo: “nunca presumir que seu leitor conhece seu conjunto de referências, explicar os termos utilizados, e criar formas mais abertas e acessíveis de diálogo histórico” (SAMUEL, 1980, p. 168, tradução nossa). Em terceiro lugar, em oposição à suposta neutralidade e objetividade acadêmicas, o Workshop partiu do princípio de que a verdade é partidária, e é uma arma na disputa de ideias. Desse modo, ao invés de ocultar suas crenças, os participantes eram encorajados a declará-las abertamente. Por fim, o quarto ponto central da concepção do History Workshop era pensar uma historiografia consciente de seu presente, derrubando a barreira entre passado e presente que era uma das bases da historiografia profissional desde a revolução rankeana do século XIX, segundo Samuel. O Workshop tinha como ponto de partida o presente, indo do mais conhecido ao menos conhecido, dentro do método regressivo que havia sugerido Marc Bloch (SAMUEL, 1980, p. 168). Um dos propósitos era “historicizar a compreensão do presente” (SAMUEL, 1980, p. 169, tradução nossa).
A History Workshop e sua revista davam expressão a uma preocupação pioneira de Raphael
Samuel, que hoje tenderíamos a chamar de “história pública”: a presença da história
fora dos meios acadêmicos. Samuel elaborou um minucioso estudo da história no
cotidiano inglês ao longo do século XX, em Teatros da Memória (Theatres
of Memory), publicado em 1994, dois anos antes de sua morte. Na obra,
Samuel estudou como a história era retratada e apresentada em diferentes
espaços públicos, fora do controle dos historiadores profissionais.
Dentre as poucas publicações disponíveis em português ou
espanhol, a coletânea Historia Popular y Teoría Socialista, edição
catalã com introdução de Josep Fontana, permite conhecer um pouco da produção e
dos debates da History Workshop e do pensamento de Raphael Samuel. As
inquietações de Samuel permanecem fortemente atuais, e a iniciativa da History
Workshop segue sendo uma experiência estimulante a ser resgatada por
professores, pesquisadores e estudantes de História. Como apontou Sophie
Scott-Brown, a motivação inicial de Samuel pode ser resumida no objetivo de
fazer as pessoas “produtoras, ao invés de [apenas] consumidoras de sua própria
história” (SCOTT-BROWN, p. 129).
Referências e indicações de leitura
CARVALHO, Bruno Leal Pastor de Carvalho. History Workshop: a história próxima das massas (Artigo). In: Café História – história feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/history-workshop/. Publicado em: 31 dez. 2018. Acesso: 06/11/2020.
History Workshop Journal, “Collective Editorial”, no.
1, vol. 1, 1976.
SAMUEL,
Raphael. “On the Methods of History Workshop: A Reply”. History Workshop
Journal, no. 9, primavera de 1980, pp. 162-176.
SAMUEL,
Raphael (ed.). Historia
Popular y Teoría Socialista. Barcelona: Editorial Crítica, 1984.
SAMUEL, Raphael. Theatres
of memory: Past and present in contemporary culture [Teatros da
memória: Passado e presente na cultura contemporânea]. Londres, Nova
Iorque: Verso, 1994.
SCOTT-BROWN, Sophie. The Histories of Raphael Samuel:
a portrait of a people’s historian [As Histórias de Raphael Samuel:
um retrato de um historiador do povo]. Canberra, Austrália: ANU Press, 2017.
Pedro Afonso Cristovão dos Santos, professor de
Teoria e Metodologia da História na UNILA