Pular para o conteúdo principal

Psicohistória(s): o inconsciente e a escrita da história

Em uma série de contos publicados ao longo da década de 1940, reunidos posteriormente em uma trilogia publicada entre 1951 e 1953, o autor de ficção científica Isaac Asimov (1920-1992) lançou a ideia de uma psicohistória. A psicohistória, uma criação do personagem Hari Seldon, um matemático, protagonista dos primeiros volumes da série Fundação, proporcionaria, por meio de equações matemáticas, “prever o futuro”. A partir do estudo da história, especialmente do comportamento dos indivíduos (daí a junção entre psicologia e história), a psicohistória aplica as leis da estatística para prever o desenrolar dos eventos contemporâneos. A psicohistória deveria, pois, equilibrar preceitos das diferentes disciplinas que trazia em si. Pelo lado da estatística, demandava o estudo de populações de bilhões de indivíduos, em largos períodos de tempo, para que a probabilidade estatística tivesse validade histórica. Pelo lado da psicologia e da história, a população cujo futuro estava sendo previsto não poderia saber da existência da previsão; pois, uma vez de posse dessa informação, as pessoas poderiam alterar seu comportamento, alterando assim o futuro inicialmente previsto.

A obra “Universal”, do pintor Emygdio de Barros (1895-1986). Emygdio foi interno do Hospital Psiquiátrico D. Pedro II, onde estudou artes plásticas no ateliê mantido pelo Serviço de Terapia Ocupacional do Centro Psiquiátrico Nacional. Sua obra passou a integrar o Museu de Imagens do Inconsciente, inaugurado em 1952, uma iniciativa da psiquiatra Nise da Silveira (1906-1999)


O uso da psicologia para compreender a história aparecera já no início do século XX, mas voltado à compreensão de indivíduos. Sigmund Freud, embora nunca tenha usado a expressão “psicohistória”, escreveu estudos psicanalíticos de figuras históricas como Leonardo da Vinci e Moisés, publicados em 1910 e 1939, respectivamente (estudos hoje vistos como bastante controversos). Era uma espécie de psicanálise aplicada, e nas discussões da Sociedade Psicanalítica de Viena (grupo de discussão sobre a psicanálise reunido em torno de Freud, que manteve encontros de 1902 a 1938) outros estudos do tipo podem ser encontrados, aplicando a psicanálise à biografia de indivíduos como Napoleão e Shakespeare. Um dos principais problemas nesse tipo de estudo, evidente na análise de Leonardo da Vinci feita por Freud, é a dificuldade de encontrar fontes para a infância destas personagens históricas, o que levava essa psicanálise histórica a associações e conclusões muito ousadas, baseadas em evidências tênues.

Ao longo da primeira metade do século XX, cresce o uso da psicanálise para analisar figuras do passado e líderes políticos do presente, inclusive como arma de guerra. Nos EUA, a CIA recrutou psicanalistas para investigar a mente de Hitler, com base em depoimentos de soldados capturados que tiveram contato com o Führer, entre outros documentos. Um desses estudos foi liberado de sua classificação como confidencial e publicado em 1972: A Mente de Adolf Hitler (The Mind of Adolf Hitler), de Walter Langer (ELOVITZ, 2018, p. 16).

Dentre esses estudos, um dos mais importantes abriu caminho para um dos mais influentes autores de “psicohistória” do século XX. Erik Homburger Erikson (1902-1994) publicou em 1942 um artigo sobre a imagem de Hitler e seus efeitos na juventude alemã: “Hitler’s Imagery and German Youth”. Após a Segunda Guerra Mundial, Erik Erikson obteve sucesso com a publicação de biografias históricas psicanalíticas, como o Jovem Lutero (com o subtítulo “Um estudo em psicanálise e história”), de 1958, sobre o líder da Reforma Protestante, e A Verdade de Gandhi: Sobre as origens da Não-Violência Militante (Gandhi’s Truth: On the Origins of Militant Nonviolence), de 1969, sobre Mohandas K. Gandhi, líder do movimento não-violento pela independência da Índia (ELOVITZ, 2018, p. 16-18). Outros estudos, especialmente biografias, reunindo psicanálise e história, foram publicados ao longo do século XX, por Erikson e outros psicanalistas historiadores, gerando debates em ambos os campos sobre a validade dessa abordagem. Problemas relacionados às fontes para o inconsciente dos indivíduos analisados, além de questões próprias da psicologia, como a transferência e as projeções que ocorrem entre biógrafo e biografado, trouxeram muitos questionamentos à possibilidade de realizar análises “psicohistóricas”. Outra linha de estudos unindo psicologia e história aprofundou a tentativa de compreender o mundo contemporâneo através de autores como Erich Fromm (1900-1980) e os estudos da “Escola de Frankfurt”, reunindo à psicologia e à história a teoria marxista. A obra do psicanalista Frantz Fanon (1925-1961) utilizou a psicologia para compreender as sociedades colonizadas.

Se, no início, as aproximações entre psicologia e história partiram da psicologia, aplicando seus conhecimentos a biografias históricas, especialmente a partir dos anos 1960 e 1970 historiadores começaram a demonstrar interesse na abordagem, com posições contrárias e favoráveis (cf. BARZUN, 1976; IZENBERG, 1975; STANNARD, 1980). Uma das principais defesas do uso da psicanálise para o estudo do passado partiu do historiador alemão (e biógrafo de Sigmund Freud) Peter Gay (1923-2015), em Freud para historiadores (1989). Para além das biografias históricas, intersecções mais ousadas entre as duas disciplinas foram tentadas, como a proposta de uma “filosofia psiquiátrica da história”, subtítulo de O louco e o proletário, do historiador francês Emmanuel Todd (publicado originalmente em 1979). Todd procura analisar, nessa obra, as origens do totalitarismo no século XX e as transformações mentais deste século.

Em 1978, Michel de Certeau publicou o artigo “Psicanálise e história”, procurando apontar as diferenças e intersecções entre as disciplinas. Para Certeau (pertencente à escola freudiana de Jacques Lacan; GIARD, 2014, p. 10), psicanálise e história partem de duas “estratégias” do tempo distintas: “elas pensam, de modo diferente, a relação do passado com o presente. A primeira [a psicanálise] reconhece um no outro; enquanto a segunda [a historiografia] coloca um ao lado do outro” (CERTEAU, 2011, p. 73). Certeau analisa o impacto da história sobre a psicanálise, a partir de uma história da psicanálise: “uma relação da psicanálise com ela mesma, de sua origem com suas evoluções, de suas teorias com suas instituições, da relação transferencial com filiações, etc.” (CERTEAU, 2011, p. 87). Por outro lado, Certeau aponta os impactos e possibilidades da psicanálise para a história, enfatizando a abertura para uma “nova história da ‘natureza’” (CERTEAU, 2011, p. 89), que destacasse a presença na história do irracional, das pulsões e afetos, e da fruição.


O inconsciente para os historiadores: mentalidades e imaginário

 

Uma boa introdução à maneira como os historiadores trabalharam a mente e o inconsciente é o artigo  “Imaginário, Mentalidades e Psico-História – uma discussão historiográfica”, de José D’Assunção Barros. Barros discute a historiografia da segunda metade do século XX, apontando para a significativa emergência de campos do saber historiográfico que passaram a valorizar o universo mental dos seres humanos em sociedade. O autor explica que a História das Mentalidades, a Psico-História e a História do Imaginário são campos que com alguma frequência se interpenetram no que concerne aos seus objetos. Contudo, cada um destes campos conserva singularidades e aspectos que nos permitem separá-los entre si como espaços interdisciplinares bem diferenciados.

Para Barros, a história das mentalidades tem seus precursores já na primeira metade do século XX, mas começa rigorosamente a se delinear como um novo espaço de ação para os historiadores na segunda metade do século, propondo focar na dimensão da sociedade relacionada ao mundo mental e aos modos de sentir. Entretanto, a nova teoria trouxe com seus objetivos muitas polêmicas relacionadas às suas metodologias. Para o historiador, um dos pontos que contribuem para as polêmicas é o fato de que os historiadores das mentalidades foram os primeiros a se interessarem por determinados temas não convencionais, desbravando certos domínios da História que os historiadores ainda não haviam pensado em investigar.

Barros afirma que a verdadeira controvérsia envolvendo a história das mentalidades é teórica e metodológica, pois alguns problemas pertinentes a este campo historiográfico são sobre as questões fundamentais que devem ser refletidas pelo historiador que ambiciona trilhar estes caminhos de investigação. Para o autor a questão fundamental que surge a partir desta teoria é: Existe efetivamente uma mentalidade coletiva? E, para além disso, será possível identificar uma base comum presente nos “modos de pensar e de sentir” dos homens de determinada sociedade? Para tanto, abraçando a perspectiva teórica de que existem de fato mentalidades coletivas, o historiador deve ampliar a sua concepção documental, não se atendo apenas à literatura tradicional do testemunho histórico, que é inevitavelmente subjetiva, não representativa, ambígua.

Barros resume as três ordens de tratamentos metodológicos que os historiadores das mentalidades têm empregado na sua ânsia de captar os modos coletivos de pensar e de sentir: 1) Abordagem serial; 2) A eleição de um recorte privilegiado que funcione como lugar de projeção das atitudes coletivas (uma aldeia, uma prática cultural, uma vida); 3) Uma abordagem extensiva de fontes de naturezas diversas. Para o autor, apesar de todas as polêmicas geradas em torno dessa teoria, é preciso reconhecer que a História das Mentalidades, sobretudo através dos historiadores franceses da Nouvelle Histoire, proporcionou uma significativa abertura aos novos modos de fazer a história, inclusive deixando sua margem de influências na historiografia brasileira da década de 1980.

Explorando os caminhos da cultura, e também o universo mental das sociedades, José D’Assunção Barros também debate a História do Imaginário como um investimento historiográfico que começa por abrir mais uma alternativa à investigação dos objetos historiográficos que até então haviam sido exclusivos da História das Mentalidades. O autor nos explica que a História do Imaginário estuda essencialmente as imagens produzidas por uma sociedade, mas não apenas as imagens visuais, como também as imagens verbais e, em última instância, as imagens mentais. Esclarecendo que, no caso, o Imaginário é visto como uma realidade tão presente quanto aquilo que se pode chamar de “vida concreta”. Esta perspectiva sustenta-se na ideia de que o imaginário é também estruturante em relação à sociedade que o produz.

Para Barros, a noção de Imaginário também é polêmica, já que por um lado ela conserva interfaces com a noção de “representação”, e em algumas situações os campos originados por estes dois conceitos se invadem reciprocamente. O historiador explica que o Imaginário deve ser tido como um sistema complexo e interativo que abrange a produção e circulação de imagens visuais, mentais e verbais, incorporando sistemas simbólicos diversificados e atuando na construção de representações diversas. De acordo com esta definição, existe uma interface possível do Imaginário não apenas com o campo das “representações”, mas também com o âmbito dos “símbolos”.

Desta forma, um historiador do Imaginário estaria menos interessado nos modos coletivos de sentir do que nas imagens socialmente produzidas, mesmo que em alguns casos estas imagens sejam produzidas por padrões coletivos de sentimento e de sensibilidade. O autor acrescenta que as imagens, as cosmovisões e os símbolos podem ser produzidos também por circunstâncias políticas, por necessidades sociais e até locais, por artimanhas da poesia e da literatura, por arquitetura política pensada ou intuída, ou podem mesmo ser ocasionadas por grandes eventos que caem como raios na vida das sociedades.

Para José D’Assunção Barros, o historiador do Imaginário começa a fazer uma história problematizada quando trabalha os elementos do Imaginário não como um fim em si mesmos, mas como elementos para a compreensão da vida social, econômica, política, cultural e religiosa; assim, o imaginário deve fornecer materiais para o estabelecimento de interconexões diversas. Barros ainda afirma que as diferenças entre a História das Mentalidades e a História do Imaginário acabam produzindo uma tendência a abordagens distintas. Para ele, chega-se às Mentalidades de maneira indireta, frequentemente através de indícios, de detalhes que são reveladores de atitudes coletivas e de modos de sentir comuns a toda uma sociedade. Já o campo do Imaginário pode ser muitas vezes apreendido por uma análise mais direta do discurso, seja este um discurso verbal ou visual, empregando para tal desde análises topológicas até recursos semióticos (e também métodos iconográficos e iconológicos para o caso das imagens visuais).

Por fim, José D’Assunção Barros, defende que apesar de se constituírem a partir de dimensões que guardam entre si alguma proximidade (o Imaginário e o universo mental dos homens inseridos em sua vida coletiva) o que a História das Mentalidades traz para o primeiro plano são modos de pensar e de sentir que em princípio correspondem a processos de longa duração, e que podem se expressar ou não em imagens mentais, verbais ou visuais. Já a História do Imaginário, por seu turno, traz ao primeiro plano certos padrões de representação, certas potências da imaginação que se concretizam em imagens visuais, verbais ou mentais, mas que não necessariamente se formam em processos de longa duração (embora isto possa acontecer).

 

Referências e indicações de leitura

BARROS, Emygdio. “Universal”. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra11554/universal>. Acesso em: 10 de Dez. 2020. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

BARROS, José D’Assunção. “Imaginário, Mentalidades e Psico-História – uma discussão historiográfica”. Revista Eletrônica do Centro de Estudos do Imaginário, Ano V nº 7 - Janeiro - Junho 2005. Disponível em http://www.cei.unir.br/artigo71.html#_ftn1, acesso em 03/12/2020.

BARZUN, Jacques. Clio and the Doctors: Psycho-History, Quanto-History & History. Chicago: University of Chicago Press, 1976.

CERTEAU, Michel de. História e psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

FREUD, Sigmund. “Uma Recordação de Infância de Leonardo da Vinci”, in: Freud (1909-1910). São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

GAY, Peter. Freud para historiadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

GIARD, Luce. “História de uma pesquisa”. In: CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

ELOVITZ, Paul H. The making of psychohistory: origins, controversies, and pioneering contributors. Nova Iorque: Routledge, 2018.

IZENBERG, Gerald. “Psychohistory and Intellectual History”. History and Theory, vol. 14, no. 2, maio de 1975, pp. 139-155.

STANNARD, David E. Shrinking History: On Freud and the Failure of Psychohistory. Oxford: Oxford University Press, 1980.

TODD, Emmanuel. O louco e o proletário. Filosofia psiquiátrica da história. São Paulo: Ibrasa, 1981.


Gilson José de Oliveira Neto, estudante de História - América Latina da UNILA e bolsista do projeto de extensão Blog de História da UNILA

Pedro Afonso Cristovão dos Santos, professor de Teoria e Metodologia da História da UNILA 

 

Postagens mais visitadas deste blog

A perspectiva na pintura renascentista.

Outra característica da pintura renascentista é o aprimoramento da perspectiva. Vejamos como a Enciclopédia Itaú Cultural Artes Visuais se refere ao tema: “Técnica de representação do espaço tridimensional numa superfície plana, de modo que a imagem obtida se aproxime daquela que se apresenta à visão. Na história da arte, o termo é empregado de modo geral para designar os mais variados tipos de representação da profundidade espacial. Os desenvolvimentos da ótica acompanham a Antigüidade e a Idade Média, ainda que eles não se apliquem, nesses contextos, à representação artística. É no   renascimento   que a pesquisa científica da visão dá lugar a uma ciência da representação, alterando de modo radical o desenho, a pintura e a arquitetura. As conquistas da geometria e da ótica ensinam a projetar objetos em profundidade pela convergência de linhas aparentemente paralelas em um único ponto de fuga. A perspectiva, matematicamente fundamentada, desenvolve-se na Itália dos séculos XV e

"Progresso Americano" (1872), de John Gast.

Progresso Americano (1872), de John Gast, é uma alegoria do “Destino Manifesto”. A obra representa bem o papel que parte da sociedade norte-americana acredita ter no mundo, o de levar a “democracia” e o “progresso” para outros povos, o que foi e ainda é usado para justificar interferências e invasões dos Estados Unidos em outros países. Na pintura, existe um contraste entre “luz” e “sombra”. A “luz” é representada por elementos como o telégrafo, a navegação, o trem, o comércio, a agricultura e a propriedade privada (como indica a pequena cerca em torno da plantação, no canto inferior direito). A “sombra”, por sua vez, é relacionada aos indígenas e animais selvagens. O quadro “se movimenta” da direita para a esquerda do observador, uma clara referência à “Marcha para o Oeste” que marcou os Estados Unidos no século XIX. Prof. Paulo Renato da Silva. Professores em greve!