O ano de 2020 teve como um de seus principais conceitos a ideia de “normal”. Da chegada de um “novo normal”, ao retorno à normalidade (representado pela vitória de Joe Biden sobre Donald Trump nas eleições presidenciais norte-americanas, por exemplo, marcando uma suposta volta à política “normal”), neste ano muito foi dito a respeito de desvios, anomalias e vida “normal”. Desde quando, e por quê, passamos a usar a ideia de ‘normal” nesse sentido? Quais suas origens no pensamento ocidental?
Uma imagem do “novo normal”: Candidatos a Papai Noel em
Londres têm sua temperatura medida e usam máscaras (imagem
disponível em https://edition.cnn.com/2020/05/20/world/gallery/new-normal-coronavirus/index.html,
acesso em 03/12/2020)
O filósofo e historiador da ciência canadense Ian Hacking (1936-) estudou a transformação dessa ideia no livro Domando o acaso (The Taming of Chance, 1990). Segundo Hacking, o sentido moderno de “normal” surge na década de 1820. A ideia traz a marca do século XIX e do conceito de “progresso” presente no pensamento daquele século, e substitui, de certa forma, a ideia de “natureza humana” herdada do Iluminismo do século XVIII.
“Normal” carrega o selo do século XIX e sua concepção de
progresso, assim como “natureza humana” está marcada pelo Iluminismo. Não nos
perguntamos mais, seriamente, o que é a natureza humana? Falamos, pelo
contrário, em pessoas normais. Perguntamo-nos, seria esse comportamento normal?
É isso normal para uma criança... [por exemplo]? (HACKING, 1990, p. 161, tradução
nossa)
Como parte de sua metodologia, Hacking buscou em dicionários de inglês e francês dos séculos XVIII e XIX a presença e as definições de normal. Concluiu que, especialmente em inglês, é a partir do final da década de 1820 que a ideia de normal como “típico”, aquilo que é “usual”, passa a ser mais corrente, e vem da expressão “estado normal”. O “estado normal” faz referência a algum organismo, e vem em conjunto com seu oposto, a ideia de um “estado patológico” (veremos mais sobre essa relação abaixo).
Anteriormente, segundo Hacking, os sentidos de “normal” remontavam à geometria. Normal remetia a perpendicular, ângulos retos, ortogonais. Normal e o prefixo “orto” compartilhavam sentidos; como em “ortodoxo”, significando a regra, a norma (por oposição a “heterodoxo”). Norma e orto possuíam duas faces: uma descritiva, denotando o que é “reto”; e outra prescritiva, denotando o que é “correto”, o que pode ser arrumado, corrigido (como um ortodentista, que alinha, acerta, os dentes dos pacientes).
Para Hacking, nossa ideia moderna de “normal” surge de uma
transposição da medicina e da biologia para o mundo social e político. Nesse
sentido, normal é parte de um par de conceitos, aparecendo em conjunção com a
ideia de “patológico”. O patológico, indicando alguma condição de desequilíbrio
ou perturbação em nosso corpo, seria, para parte do pensamento médico francês
do século XIX, um desvio do normal. Desse modo, mais do que opostos, a
diferença entre o normal e o patológico seria uma questão de grau. A tese era
defendida, segundo Hacking, especialmente pelo médico francês
François-Joseph-Victor Broussais (1772-1838).
François-Joseph-Victor Broussais (1772-1838), imagem
disponível em https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/8/8e/Portrait_of_Francois_Joseph_V._Broussais_Wellcome_M0002621.jpg,
acesso em 03/12/2020
Coube a Auguste Comte (1798-1857), na elaboração de sua
filosofia positivista, transpor o conceito de seu uso médico e biológico,
conforme presente em Broussais, para a sociedade e a política. Comte fez
referência a Broussais como o descobridor de uma relação fundamental nas
ciências, segundo a qual “todas as características de algo são definidas em relação a seu
estado normal” (HACKING, 1990, p. 166, tradução nossa). Comte transpôs o
raciocínio da medicina para o mundo social: o que era válido para as doenças do
corpo, seria válido para os males sociais. Mais do que isso, Comte realizou uma
mudança fundamental no conceito de “normal”: o normal tornou-se não apenas o
estado ordinário, a regra, mas o estado purificado, o estado ao qual o
corpo social deveria aspirar. O “normal” tornou-se o objetivo da sociedade,
para Comte; dessa forma, o filósofo associou a ideia de normal à ideia de progresso,
característica do pensamento do século XIX. O positivismo de Comte mostraria o
desenvolvimento progressivo de uma sociedade rumo a seu estado “normal”.
Uma imagem do “normal”: vitrô caseiro em pintura de
Rodrigo Yudi Honda, artista brasileiro que destaca cenas do cotidiano em suas
pinturas (imagem disponível em https://gamarevista.com.br/ler-ouvir-ver/arte-do-entorno/,
acesso em 03/12/2020)
No final do século XIX, a ideia de “normal” passou por nova
virada, atingindo uma bifurcação. Por um lado, “normal” adquiriu o sentido de
“original”, de um estado ao qual a sociedade poderia retornar. Esse sentido,
segundo Hacking, foi esposado pela sociologia, e expresso por Émile Durkheim
(1858-1917). Num segundo sentido, “normal” passou a significar “mediano”, a
média que deveria ser superada pela sociedade. Esse sentido, associado à
estatística, aparece na eugenia, pensamento formulado especialmente por
Francis Galton (1822-1911). A eugenia de Galton visava elevar a média, melhorar
as qualidades de uma população e eliminar seus “defeitos”, por meio do
aperfeiçoamento de suas características raciais. Esse pensamento, na origem de
práticas racistas e higienistas da virada do século XIX para o XX, assumia a
ideia de “normal” como algo a ser superado, uma média social que deveria ser
constantemente e gradualmente elevada. Desse modo, ao final do século XIX, a
ideia de “normal” dividia-se entre preservação e aperfeiçoamento.
O “normal” poderia ser um estado original do qual decaímos, ou um estado que
superamos em direção a algo mais elevado. Essa duplicidade transformou a ideia
de “normal” numa poderosa (e perigosa) herança do século XIX para o século XX:
O normal poderia significar indiferentemente o que é
típico, a média objetiva que não provoca entusiasmos, como também o que já foi,
a boa saúde, e o que poderá ser, nosso destino eleito. É por isso que a benigna
e aparentemente estéril palavra “normal” tornou-se uma das ferramentas
ideológicas mais poderosas do século XX (HACKING, 1990, p. 169, tradução nossa).
Como podemos depreender de seu argumento, Ian Hacking trabalha a partir de uma história das ideias que procura reconstituir o universo intelectual de uma época. Por isso, o autor vai além da análise de um pensador ou de um corpo de obras, e relaciona autores, temas e conceitos presentes em distintos domínios do pensamento de uma época (como, no caso da ideia de “normal”, a medicina, a biologia, a filosofia, a estatística, e a sociologia do século XIX). Seu livro, Domando o acaso, investiga as consequências do que chama de “avalanche de números impressos”, em referência a um conjunto massivo de estatísticas que se tornam disponíveis nos Estados ocidentais a partir da década de 1820. Esses dados modificam não apenas a concepção da estatística como domínio do saber, mas dispõe, para todas as ciências, ideias como médias, tendências, desvios, regularidades e, principalmente, probabilidades. Desse modo, altera-se profundamente o pensamento científico e o universo intelectual do século XIX.
No caso da ideia de normal, produziu-se, naquele
período, essa imbricação de conceitos que teria diversas consequências sociais.
O par normal/patológico, os pares normal/original e normal/mediano agiram sobre
ideias científicas e sobre políticas de Estado. Nesse ano de 2020, para o qual
a ideia de normal foi tão importante, podemos nos perguntar: do que
falamos quando falamos de “normal”? Queremos nossa vida “original”,
pré-pandemia de Covid-19, de volta, ou queremos um novo horizonte? O “novo
normal” nos reforçou a percepção dos problemas e desigualdades do “velho”
normal, e nos indica a necessidade de um novo objetivo para nossas sociedades?
Quais os riscos de tanto uso da ideia de “normal”? Estamos normalizando (e
naturalizando) desigualdades? O que excluímos como “patológico”, como
perturbações do nosso “normal”?
Referência
HACKING,
Ian. The taming of chance [Domando o acaso]. Cambridge:
Cambridge University Press, 1990.