No texto de
hoje traremos para o Blog de História da UNILA um fragmento do pensamento da
filósofa e antropóloga Lélia Gonzalez (1935-1994), que em sua longa trajetória foi
professora, escritora, militante do movimento negro e feminista. Pode-se dizer
que teoria e prática eram organicamente conectadas na vida da pensadora.
Nascida em Belo Horizonte, no ano de 1935, Lélia foi a penúltima de 13 filhos,
em uma família de poucos recursos econômicos. No ano de 1942, decidiram
mudar-se para o Rio de Janeiro, pois um dos seus irmãos, o jogador de futebol Jaime de Almeida, fora contratado pelo
Flamengo.
Tornando-se
uma exceção à regra na sociedade brasileira da década de 1950, Lélia Gonzalez
ingressou na universidade, cursando História e Geografia (1958) e Filosofia
(1962) na antiga Universidade do Estado da Guanabara (atual Universidade do
Estado do Rio de Janeiro). A partir destas experiências, a produção intelectual
de Lélia tornou-se fundamental para compreendermos o pensamento e as práticas
cotidianas dos sujeitos na sociedade brasileira.
A obra da
autora enfatiza o protagonismo negro, particularmente das mulheres negras na
formação sócio-cultural no país. A importância de suas reflexões segue sendo
trazida ao debate público por autores contemporâneos, como a filósofa e
escritora Djamila Ribeiro (1980 - ) e o advogado Silvio Luiz de Almeida (1976 - ).
No artigo “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira”
(1984), Lélia Gonzalez debate quais foram as razões que levaram a tamanha
propagação do mito da democracia racial na academia e na sociedade como um
todo. A autora vai debruçar-se sobre os processos que levaram à construção de
tal mito, preocupando-se sobretudo em como a mulher negra é situada dentro
deste discurso.
Partindo
desse ponto, Gonzalez determinará sua interpretação sobre o duplo fenômeno Racismo e Sexismo, conceitos que se interligam ocasionalmente. Para a autora,
o racismo se constitui como a sintomática
que caracteriza a neurose cultural brasileira e sua articulação com o
sexismo produz violentos efeitos sobre a mulher negra em particular.
A filosofa
reflete sobre o papel da mulher negra em três perspectivas, que são as noções
de Mulata, Doméstica e Mãe Preta. E
como suporte epistemológico para tal reflexão, ela parte da psicanálise de Sigmund Freud (1856 - 1939) e Jacques Lacan (1901 - 1981).
Lélia olha
atentamente para as camadas da civilização brasileira para notar como o racismo
age na estrutura do país, questionando as razões que levaram manifestações e
práticas racistas a serem naturalizadas historicamente. Em determinadas camadas
da civilização ocorrem manifestações mais
ou menos conscientes que revelam marcas da africanidade que entrelaçam as raízes culturais do Brasil. No
entanto, a cultura dominante tenta ocultar essa marca de si, e esta estratégia
funciona como uma estrutura para domesticar os corpos negros e destinar os seus
lugares de origem.
A partir
disso, a autora reflete sobre os lugares designados à mulher negra dentro deste
processo de formação, preocupando-se sobretudo com os diferentes modos de rejeição e integração desse papel. Lélia irá trabalhar com os conceitos de consciência e memória; entendendo como consciência, o lugar do desconhecimento,
do encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber. É pela
consciência que o discurso ideológico se faz presente. Já a memória, a autora
considera como o campo do “não-saber que conhece”, um lugar de inscrições que
restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade,
dessa verdade que se estrutura como ficção. Consciência exclui o que a memória
inclui, e nesse caso a consciência faz de tudo para que a memória seja
esquecida.
Lélia
considera que o Carnaval é uma manifestação cultural que atualiza o mito da
democracia racial. Ela exemplifica desta forma: nos desfiles das escolas de
samba a mulher negra é vista e desejada em sua máxima exaltação, no entanto, o
outro lado desse endeusamento, ou seja, a ocultação e a solidão, é sentida no
cotidiano, assim a imagem da mulher negra se transfigura na imagem da empregada
doméstica.
Para a
autora, a razão de ser desta situação está intrinsecamente ligada à
culpabilidade branca, pois, a consciência de culpa do Homem Branco, que ao
endeusar a mulher negra no carnaval, transfere a mulher branca para a posição
da “outra”, se exerce com fortes impulsos de agressividade contra as mulheres
negras no cotidiano.
Desta forma, pode-se constatar que os termos Mulata e Doméstica são atribuições de um mesmo sujeito, porém a nomeação dependerá da situação e do lugar. Por essa razão, Lélia Gonzalez defende que a doméstica é hoje para a sociedade a “mucama permitida”, que deve prestar bens e serviços, além de carregar a sua família e a dos outros nas costas. Logo, do outro lado da exaltação do corpo da mulher negra, está a exploração da doméstica.
“Mas é justamente aquela negra anônima, habitante da periferia, nas baixadas da vida, quem sofre mais tragicamente os efeitos da terrível culpabilidade branca. Exatamente porque é ela que sobrevive na base da prestação de serviços, segurando a barra familiar praticamente sozinha. Isto porque seu homem, seus irmãos ou seus filhos são objeto de perseguição policial sistemática (esquadrões da morte, 'mãos brancas' estão aí matando negros à vontade; observe-se que são negros jovens, com menos de trinta anos. Por outro lado, que se veja quem é a maioria da população carcerária deste país)” (GONZÁLEZ, 1984, p. 231).
A realidade
que Lélia Gonzalez descreve no ano de 1984 continua sendo parte da prática
racista e sexista da cultura brasileira, e para a autora isso tem uma razão de
ser bem clara: nós não chegamos a esse estado de coisas de um dia para o outro,
ao contrário, nós sempre estivemos nele.
A empregada
doméstica cutuca a culpabilidade branca, pois no fundo, ela permanece
simbolizando a mucama, por isso ela é tida como violenta e é concretamente
reprimida. É interessante constatar como, através da figura da
"mãe-preta'', a realidade surge da equivocação,
da confusão, do engano. Para a autora, é essa figura que tem a potência para
derrubar as estruturas da raça dominante.
A imagem da doméstica não simboliza apenas um exemplo extraordinário de amor e dedicação, como quer definir a branquitude; nem tampouco é uma entreguista, traidora da raça, como apontam algumas pessoas muito apressadas em seu julgamento, pois antes de tudo a doméstica simboliza e exerce o papel fundamental da Mãe. Ao exercer a função materna, a mãe preta passa todos os seus valores para criança que se tornará parte integrante da cultura, cuja língua para ela, é o pretuguês.
Portanto, a função materna diz respeito à internalização de valores, pois o ensino da língua materna constitui o imaginário do sujeito. Com isso, a mãe preta passa adiante um mundo de coisas que acharão seu lugar na linguagem. Assim, os elementos da negritude tornam-se presentes em diversas camadas da estrutura cultural do Brasil. Por essa via se entende uma série de falas contra negros que servem como modos de ocultação e não aceitação da própria castração e culpa.
Lélia Gonzalez
deixou um importante legado para a Academia Brasileira. Como militante
participou de muitos congressos fora do Brasil até meados dos anos 80, apesar
disso, mesmo com sua relevância intelectual e política, ela continua sendo
pouco citada quando comparada com outros intérpretes da sociedade brasileira. A
importância de sua obra ainda não foi reconhecida, e esse caso não é exclusivo
dela, pois as referências acadêmicas ainda permanecem sendo marcadas pela
lógica eurocêntrica que hierarquiza o conhecimento e privilegia o pensamento branco
e Ocidental. A contribuição epistemológica de Lélia é fundamental para a
interpretação da sociedade brasileira.
Fontes e Referências:
GONZALEZ. Lélia. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. Revista
Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.
Sobre a autora:
https://revistacult.uol.com.br/home/lelia-gonzalez-perfil/
Leia mais
em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/sororidade-em-pauta/a-atualidade-e-a-urgencia-de-lelia-gonzalez-em-2020/
https://brasil.elpais.com/cultura/2020-10-25/lelia-gonzalez-onipresente.html
Gilson José de Oliveira Neto, estudante do
curso de História – América Latina da UNILA