Nesta série
de entrevistas, apresentaremos as professoras e professores colaboradores do
Blog de História da UNILA, projeto de extensão vinculado ao Laboratório de
Estudos Culturais (LEC) da UNILA. As entrevistas mostrarão um pouco dos
interesses de pesquisa e áreas de atuação destas pesquisadoras e pesquisadores.
A conversa
de hoje é com o prof. Paulo Renato da Silva, professor de História da América
Latina contemporânea na UNILA e pesquisador das relações entre Brasil, Paraguai
e Argentina especialmente na segunda metade do século XX. O prof. Paulo atua nos cursos de graduação em História da UNILA e nos programas de mestrado em Estudos Latino-Americanos (IELA) e Mestrado em História (PPGHIS) da UNILA.
1) Prof. Paulo, obrigado por colaborar
com o Blog de História da UNILA. Em primeiro lugar, gostaríamos de conhecer um
pouco mais sobre seus interesses de pesquisa e temas de sua preferência para
orientação na graduação e pós-graduação.
Paulo
Renato da Silva: Quem
agradece sou eu pela oportunidade. Um primeiro tema de interesse em minha
formação e trajetória profissional foi o peronismo, especialmente os dois
primeiros governos do presidente argentino Juan Domingo Perón (1946-1955).
Apesar de ter abraçado outros temas, especialmente depois que cheguei à UNILA,
continuo muito interessado pelo peronismo. Na monografia de conclusão de curso
analisei como algumas referências da historiografia analisam o papel dos
trabalhadores no governo de Perón. No Mestrado e no Doutorado me debrucei sobre
a produção cultural “alinhada” e “não-alinhada” com o governo de Perón. Coloco
entre aspas porque as pesquisas, especialmente no Doutorado, questionaram essa
divisão esquemática. De um modo geral, pude constatar que a produção cultural
alinhada com o peronismo era heterogênea e apresentava, inclusive, elementos
compartilhados com a não-alinhada. Por exemplo, Perón era visto por opositores
como um representante do nazi-fascismo na Argentina. Naquele pós-Segunda Guerra
Mundial (1939-1945), vencida pelos Aliados, considero que parte dos peronistas
sentiu necessidade de se apropriar de nomes e elementos da tradição liberal
argentina para afastar Perón das associações com Hitler e Mussolini. Para citar
um único exemplo, em seu primeiro número, a revista Argentina, publicada
pelo Ministério da Educação entre 1949 e 1950, se colocou como herdeira do
jornal Gazeta de Buenos Aires, representante da Revolução de Maio de
1810. A Revolução de Maio, de inspiração liberal, é considerada como o início
do processo de independência do país.
Depois que
cheguei à UNILA, comecei a conhecer melhor e a me interessar pelo Paraguai,
mais exatamente pelo período da ditadura do general Alfredo Stroessner
(1954-1989). Mais do que a ditadura propriamente dita, passei a me interessar
pelas relações entre Paraguai e Brasil naqueles anos. Acho que esse interesse
se explica, em parte, pelo fato de estar em Foz do Iguaçu, cidade onde estão a
Ponte da Amizade e a usina hidroelétrica de Itaipu, dois grandes exemplos das
relações bastante próximas dos dois países no período. Além disso, há uma
questão que me intriga bastante: a memória da Guerra da Tríplice Aliança
(1864/1865-1870) é fortíssima no Paraguai. Como foi possível a ditadura
Stroessner se aproximar tanto justamente do Brasil, considerado o principal
inimigo naquela guerra?
2) Tendo
em vista sua área de atuação, o que um potencial estudante de pós-graduação,
especificamente, deveria levar em conta ao propor um projeto em seu campo de
estudos?
Um potencial
estudante de pós-graduação precisa levar em conta, sempre, a viabilidade do seu
projeto de pesquisa. No caso das relações entre Paraguai e Brasil, ainda temos,
no Brasil, pouco acesso à produção paraguaia, mesmo vivendo em uma cidade de
fronteira como Foz do Iguaçu. Em países como a Argentina esse acesso é maior,
mas ainda incipiente. Além disso, o Paraguai tem poucos arquivos digitais e
revistas eletrônicas. Independentemente da proposta, é bastante desejável que
um estudante, interessado nas relações entre os dois países, se organize para
desenvolver uma pesquisa de campo no Paraguai, mesmo que o seu foco esteja em
fontes e em perspectivas brasileiras. Uma pesquisa de campo é fundamental, por
exemplo, para reunir bibliografia em bibliotecas e livrarias do país. Contudo,
neste momento de pandemia, sabemos que é bastante complicado desenvolver
qualquer pesquisa de campo.
Digo, ainda,
que um estudante interessado no tema precisa estar aberto a romper preconceitos
e estereótipos em relação ao Paraguai, o que se nota em vários países da
região, ainda que em graus variados.
3) Com
que fontes históricas você trabalha, ou já trabalhou? Poderia comentar um pouco
sobre as especificidades dessas fontes?
Eu trabalho sobretudo com fontes impressas, especialmente a
imprensa. No caso das pesquisas de Mestrado e Doutorado, eu me concentrei em
jornais e periódicos culturais argentinos, mas também estudei discursos
oficiais, textos literários e outras fontes como catálogos de editoras para conhecer
melhor o que estava sendo publicado no período.
Mais recentemente, nas pesquisas sobre as relações entre
Paraguai e Brasil, a imprensa continua sendo fundamental para mim, pois tenho
interesse em saber como as relações entre os dois países eram representadas
pela imprensa e apresentadas à opinião pública. Tenho interesse em saber como a
memória da Guerra da Tríplice Aliança foi reelaborada para conter resistências
à aproximação entre os dois países. Por exemplo, parte da imprensa, em
consonância com discursos oficiais, defendia que a aproximação entre Paraguai e
Brasil geraria “progresso” para ambos os países. Diante da perspectiva de
progresso, defendia-se que a memória controversa da guerra precisaria ser
superada para não atrapalhar o “desenvolvimento” dos dois países.
Além disso, tenho estudado um conjunto de livros paraguaios
escritos por aliados da ditadura Stroessner. Eram livros escritos para saudar o
ditador e a ditadura e serviam para os seus autores se promoverem politicamente
ou conseguirem vantagens como a indicação a cargos públicos. Apesar de
contribuírem para a propaganda da ditadura, esses livros também abordavam temas
variados sobre a história e a cultura do Paraguai, como a Guerra da Tríplice
Aliança, a memória do conflito e as relações com os países vizinhos.
É um conjunto muito variado de fontes impressas, cada uma
com as suas particularidades. Mas, de um modo geral, é fundamental nunca
analisá-las como expressão literal do que acontecia ou da opinião pública no
período, mesmo no caso das fontes produzidas em períodos autoritários e
ditatoriais, nos quais a oposição não tem um espaço satisfatório para se
manifestar e se contrapor aos discursos oficiais. Os impressos devem ser
compreendidos a partir de seus autores e dos grupos aos quais pertencem ou
representam. Devem ser compreendidos a partir das tradições histórico-culturais
em que estão inseridos. Devem ser analisados a partir de um público esperado -
e imaginado. Os impressos precisam ser analisados, ainda, a partir das disputas
culturais e políticas nos quais estão envolvidos. Gosto muito quando o Pablo
Piccato sintetiza que a esfera pública não é
uma estrutura estável, mas sim aberta, inacabada, em constante transformação.
4) No caso de sua pesquisa mais recente
sobre as relações entre Paraguai e Brasil, por que você chegou a esse recorte
temporal? O que esse período tem, para a pesquisa histórica, de possibilidades
para novas investigações?
Por enquanto
eu consigo responder melhor quanto ao início do recorte. Escolhi 1954 não apenas
por ser o começo da ditadura Stroessner, período no qual houve uma grande
aproximação com o Brasil. Em 1954, no dia da posse de Stroessner, a Argentina,
governada por Perón, devolveu ao Paraguai os troféus de guerra que estavam em
poder dos argentinos. Os troféus eram um conjunto de bens públicos e privados
paraguaios que tinham sido levados para a Argentina por tropas que lutaram na
Guerra da Tríplice Aliança. Paraguai e Brasil estavam se aproximando, pelo
menos, desde 1941, quando Getúlio Vargas se tornou o primeiro presidente
brasileiro a visitar o país. Essa aproximação era acompanhada com atenção pela
Argentina, que exercia forte poder político e econômico no Paraguai. Em 1954, o
Brasil estava concentrado em seus problemas internos, pois vivia a crise
econômica e política que levaria ao suicídio do presidente Getúlio Vargas. Foi
o momento perfeito para Perón devolver os troféus, antiga reivindicação
paraguaia, e defender os interesses argentinos no Paraguai frente à crescente
influência brasileira. Perón não somente devolveu os troféus, mas também
assinou acordos comerciais. Em outras palavras, 1954 indica como a compreensão
das relações entre Paraguai e Brasil deve contemplar o peso regional da
Argentina.
Quanto ao
final do recorte, por enquanto, estabeleço 1989 por ser o término da ditadura
Stroessner. Além disso, pelo menos até 1988, a relação com o Brasil ainda é
tema recorrente dos livros pró-governo que já analisei. Mesmo após a conclusão
da hidroelétrica de Itaipu, uma das principais bandeiras de propaganda da
ditadura Stroessner - e da brasileira, diga-se de passagem -, a proximidade com
o Brasil ainda parecia constranger de certa forma e precisava ser justificada
por aliados de Stroessner. Contudo, espero aprimorar o término do recorte
temporal. Pretendo apreender variações no modo como a aproximação com o Brasil
foi justificada nos quase 35 anos da ditadura paraguaia.
Esse período
e tema abrem muitas possibilidades para novas investigações. Primeiramente, me
parece uma boa oportunidade para explorar perspectivas transnacionais que
ajudem a compreender melhor a história do Paraguai, do Brasil e da Argentina no
período. Parece-me ser uma boa oportunidade para incorporar, também, temas como
o peso da memória histórica nas relações entre os países. A historiografia
sobre as ditaduras latino-americanas ainda é predominantemente marcada por
recortes nacionais ou globais. Os recortes globais enfatizam especialmente a
interferência da Guerra Fria nas ditaduras. Ainda se conhece pouco quanto às
relações entre as ditaduras da região, a não ser em temas ligados à repressão
como o Operativo Cóndor. Por isso o tema da memória da Guerra da Tríplice
Aliança nas relações internacionais abre novas possibilidades, pois coloca em
primeiro plano a existência de tensões entre as ditaduras paraguaia e
brasileira, apesar da convergência em assuntos relacionados, por exemplo, à
repressão.
Acabo de me
referir às ditaduras, mas é importante lembrar que as relações entre Paraguai e
Brasil se aprofundaram antes do golpe de 1964 no Brasil. Stroessner foi muito
próximo do governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961), quando a Ponte da
Amizade começou a ser construída. Assim, esse período e tema permitem conhecer
melhor as rupturas e continuidades da política externa brasileira em relação ao
Paraguai após o golpe de 1964.
5) Que abordagens e referências teóricas
você citaria como relevantes em seu campo de pesquisa?
Minhas
principais referências giram em torno da História Cultural. Para mim é bastante
útil a análise de Robert Darnton sobre a opinião pública durante o absolutismo
francês no século XVIII. É claro que se trata de um caso muito particular.
Entretanto, creio que precisamos fazer um esforço, como o feito por Darnton no
caso do absolutismo francês, para compreendermos a opinião pública e suas
particularidades na América Latina, especialmente sob governos autoritários e
ditatoriais. Como escreve Darnton, a opinião pública era desconsiderada pela
historiografia sobre o absolutismo. Considero que a opinião pública ainda é
desconsiderada por parte expressiva da historiografia sobre governos
autoritários e ditatoriais na América Latina, especialmente em um país como o
Paraguai. Recuso-me a pensar que os livros destinados a louvar Stroessner, que
citei há pouco, eram pura propaganda política. Eles também procuravam
justificar posições controversas do seu governo, como a aproximação com o
Brasil. Ainda sobre a opinião pública durante a ditadura Stroessner, gosto
muito do que o escritor paraguaio Augusto Roa Bastos escreveu sobre o período.
Para Roa Bastos, existia uma “consciência pública do terror” naqueles anos, mas
que circulava limitada pelo medo, indicando as particularidades
latino-americanas que precisamos conhecer melhor.
Roger
Chartier também é um nome importante em minhas pesquisas, não apenas pelo
conceito de representação, mas também pela importância que dá à materialidade
dos impressos. A materialidade é fundamental para compreendermos não apenas o
que dizem os impressos, mas também como dizem e para quem.
6) Você gostaria de acrescentar algo
mais, sobre seus interesses de pesquisa e possibilidades de orientação, para os
leitores do Blog de História da UNILA? (Opcional)
Creio que
não. Gostaria de agradecer mais uma vez pela oportunidade e me colocar ao
dispor de eventuais interessados em meus temas de pesquisa através do e-mail
<paulo.silva@unila.edu.br>.