Nesta série de entrevistas, apresentaremos as professoras e professores colaboradores do Blog de História da UNILA, projeto de extensão vinculado ao Laboratório de Estudos Culturais (LEC) da UNILA. As entrevistas mostrarão um pouco dos interesses de pesquisa e áreas de atuação destas pesquisadoras e pesquisadores.
A conversa de hoje é com a professora Mirian Santos
Ribeiro de Oliveira, professora de História da Ásia dos cursos de História da
UNILA (Bacharelado e Licenciatura) e do Mestrado em História da UNILA (PPGHIS –
UNILA).
1) Profa. Mirian, obrigado por colaborar com o Blog de
História da UNILA. Em primeiro lugar, gostaríamos de conhecer um pouco mais
sobre seus interesses de pesquisa e temas de sua preferência para orientação na
graduação e pós-graduação.
Mirian Santos Ribeiro de Oliveira: Eu é que agradeço
pelo espaço concedido pelo Blog de História e por esta nova de oportunidade de
ampliar e aprofundar a colaboração com este projeto de extensão que tem se
mostrado tão relevante na divulgação científica do conhecimento histórico.
Os meus temas de pesquisa, desde a graduação em Relações
Internacionais (2000-4), estiveram relacionados a vínculos transnacionais entre
o Sul da Ásia e outras regiões do mundo. Ao longo da pós-graduação em
Sociologia (entre 2005 e 2012), concentrei-me principalmente no modo como esses
vínculos transnacionais, elaborados por grupos políticos específicos, partiam
do próprio Sul da Ásia. Não tinha me ocupado, até então, do outro lado desta
história – ou seja, dos processos históricos relacionados à presença
sul-asiática em outras regiões, como a América Latina, por exemplo. Minha
atuação na UNILA favoreceu essa ampliação das perspectivas de análise. Dessa
forma, atualmente, além de temas ligados à história da Ásia propriamente dita
(como história política ou história cultural de diferentes sub-regiões
asiáticas), interesso-me também por história das migrações asiáticas à América
Latina e pelo estudo de processos históricos relacionados a fluxos de pessoas e
ideias entre a América Latina e a Ásia.
Seria importante acrescentar, no que se refere a este último
ponto, que, quando pensamos em Estudos Asiáticos, há uma diversidade de
recortes (temporais e geográficos) e abordagens possíveis. Embora minha atuação
tenha se voltado para o Sul da Ásia, mais especificamente, também me interesso
por outras sub-regiões asiáticas como o Oriente Médio e o Leste Asiático. Tive
oportunidade de orientar, na graduação, pelo menos três Trabalhos de Conclusão
de Concurso sobre o Leste Asiático e suas conexões com a América Latina e posso
dizer que foram experiências de orientação bastante enriquecedoras.
Vista do Nehru Memorial Museum and Library (NMML), importante centro de documentação e pesquisa em Nova Délhi, Índia. Foto: Mirian S. R. de Oliveira. 23/12/2010
2) Tendo em vista sua área de atuação, o que um potencial
estudante de pós-graduação, especificamente, deveria levar em conta ao propor
um projeto em seu campo de estudos?
Entre pesquisadoras e pesquisadores falantes de português e espanhol, uma questão fundamental deve ser observada: o domínio de línguas estrangeiras (ocidentais ou asiáticas) para leitura e interpretação de fontes históricas. No campo dos Estudos Asiáticos, o inglês é um idioma que permite um bom acesso inicial a análises acadêmicas sobre a Ásia. No caso de regiões específicas como o Sul da Ásia – que passou por um período de dominação britânica –, é possível encontrar fontes primárias em inglês, produzidas tanto por colonizadores e por sujeitos ligados às redes imperiais (caracteristicamente transnacionais), como por habitantes locais. O conhecimento de línguas locais, no entanto, amplia significativamente as possibilidades de compreensão da história desta vasta região do mundo. Nossa universidade está situada numa região de fronteira, que vem recebendo, desde a segunda metade do século XX, populações de origem asiática. Para estudantes potencialmente interessados(as) em Estudos Asiáticos, que moram em Foz do Iguaçu e região, a possibilidade de aprender idiomas como o árabe, o mandarim e o coreano com imigrantes e seus descentes é uma realidade e um estímulo para estar aqui por um período de estudos para o Mestrado em História da UNILA. Estudantes residentes em outras regiões do Brasil e da América Latina também podem considerar o trabalho de divulgação cultural e ensino de idiomas feito por organizações como a Fundação Japão, por exemplo, ou por missões diplomáticas. Claro, é possível analisar fontes escritas em português ou espanhol, por exemplo, se pensarmos nos períodos de dominação portuguesa da Ásia, ou em registros históricos relacionados às vidas de imigrantes asiáticos na Península Ibérica ou na América Latina. São apenas exemplos, há várias outras possibilidades. O que eu gostaria de ressaltar, no entanto, é que limitar-se ao uso das línguas portuguesa e espanhola significa, de meu ponto de vista, restringir os escopos das investigações.
Um outro ponto importante está relacionado ao acesso às
fontes históricas. Esta entrevista é realizada em momento muito particular de
nossos períodos de vida: estamos vivendo uma pandemia, que limita a circulação
internacional de pessoas. Em minha experiência como pesquisadora, este tempo de
reclusão estimulou a exploração de arquivos digitais em diferentes países,
muitos deles com acesso gratuito. Para além das restrições impostas pela
pandemia, é importante lembrar, ainda, que, no Brasil, os cortes de gastos com
ciência e tecnologia reduziram significativamente, nos últimos cinco anos, as
oportunidades de viagens de estudo e pesquisa ao exterior. A utilização de
arquivos digitais vem se tornando, portanto, uma estratégia para nos mantermos
ativas(os) como pesquisadoras(es), principalmente em se tratando de uma área
como os Estudos Asiáticos, que, em geral, envolve viagens longas e caras. Mas,
em minha opinião, nada substitui a experiência de pesquisa in loco – e é por isso que, mesmo que a espera seja longa, é uma
das oportunidades mais aguardadas por mim, como pesquisadora.
Em síntese, eu diria que pesquisadoras(es) iniciantes na
área de História da Ásia deveriam se fazer as seguintes perguntas antes de
começar um projeto de pesquisa: que fontes gostaria de analisar? Estão
disponíveis neste momento? Tenho domínio do(s) idioma(s) necessários para ler e
interpretar as fontes?
Vista do Nehru Memorial Museum and Library (NMML). Foto: Mirian S. R. de Oliveira. 23/12/2010
3) Com que fontes históricas você trabalha, ou já
trabalhou? Poderia comentar um pouco sobre as especificidades dessas fontes?
Ao longo da pós-graduação, trabalhei com livros e panfletos
publicados por grupos nacionalistas hindus. Eram edições de publicação própria,
que muitas vezes eram escritas diretamente em inglês ou traduzidas ao inglês pelas
próprias equipes editoriais destes grupos. Os primeiros documentos que analisei
estavam em formato digital. Eram amplamente divulgados pela internet em versões
digitais e era até mesmo possível comprar edições impressas de alguns destes livros
pela internet. Durante meu primeiro estágio de pesquisa na Índia, entre 2010 e
2011, em bibliotecas e nas sedes das próprias organizações nacionalistas
hindus, tive acesso a panfletos e livros de menor tiragem. Meu interesse era
analisar especialmente a percepção destes grupos sobre os hindus na diáspora,
porque ao longo da primeira década do século XXI, houve uma reelaboração de
percepções sobre os emigrantes indianos, a partir da terra de origem. Poderíamos
falar de uma revalorização do papel daqueles que emigraram na política, na
economia, na cultura do país de origem. E os documentos que analisei nos dão
uma perspectiva bastante específica da diáspora, representada como homogênea e
caracteristicamente “hindu” (a despeito da diversidade religiosa, linguística e
regional do subcontinente indiano).
Desde 2016, houve uma mudança em meus temas de pesquisa, com
a ampliação de meus interesses também para as conexões entre Ásia e América
Latina. Neste processo de mudança, livros de viagens, memórias e fontes da
imprensa escrita se tornaram importantes para compreender: a adoção de novas
práticas religiosas (como a conversão de latino-americanos à religião sikh,
originária do Punjab, em territórios atualmente localizados entre a Índia o
Paquistão); a trajetória de imigrantes sul-asiáticos à América do Sul (como a
formação de uma pequena comunidade de pessoas de origem punjabi no Noroeste
Argentino); a(s) trajetória(s) de praticantes de ioga e aiurveda entre América
Latina e Sul da Ásia, entre as décadas de 1950 e 1980.
4) Sua pesquisa abrange que períodos históricos? Por que
você chegou a esse recorte temporal? O que esse período tem, para a pesquisa
histórica, de possibilidades para novas investigações?
Quando penso na longa pesquisa da pós-graduação (porque o
doutorado foi uma continuidade da pesquisa do mestrado), os documentos
analisados tinham uma preocupação constante de reescrever a história. Então,
mesmo que tivessem sido escritos na década de 1950 ou 1960, sempre remetiam a
períodos mais antigos da história do subcontinente indiano – o que, do ponto de
vista de alguém que se aventura a estudar aspectos da vida em sociedade de uma
região tão distante parece, ao princípio e ao final, uma loucura! Era muita
coisa para estudar e eu sempre tinha – e ainda tenho – a impressão de que
talvez nunca compreenda em muita profundidade alguns dos aspectos que me propus
a estudar.
Mas, apesar das idas e vindas temporais que documentos e
sujeitos de pesquisa provocavam, havia um período que já ali me instigava e que
abrange as décadas de 1940 e 1960. É uma época de grandes debates e grandes
desafios no que se refere à construção do Estado independente indiano. De uma
perspectiva mais global, é também uma época muito interessante, porque em
várias regiões do mundo temos debates e iniciativas ligadas a concepções
específicas de modernidade(s), de modos de vida alternativo(s) – no campo da
política, da economia e, ainda, de forma muito interessante, da saúde, dos
estilos de vida, das questões existenciais (não podemos nos esquecer das
angústias da era nuclear).
Disponível em: https://www.amazon.in/GAZING-EASTWARDS-Buddhist-Monks-Revolutionaries-ebook/dp/B08M8YP8Q2/ref=tmm_kin_swatch_0?_encoding=UTF8&qid=1616591591&sr=1-19. Acesso: 24/03/2021
5) Que abordagens e referências teóricas você citaria
como relevantes em seu campo de pesquisa?
Meu interesse por abordagens transnacionais – aplicadas às
ciências sociais e à história – tem me estimulado a ler obras sobre história
global e transnacional, como os livros do historiador japonês radicado nos
Estados Unidos, Akira Iriye. Além disso, tenho dedicado algum tempo à leitura
de obras do campo dos estudos transculturais (HAUSER, 2013; HERREN et al. 2012),
pertinentes para se compreender fluxos e processos que conectam diferentes
regiões do mundo, levando-se em consideração as especificidades contextuais
(culturais e históricas, principalmente).
Um exercício que tem sido muito inspirador, também, nos
últimos meses, é o contato com pesquisas que, apesar não estarem diretamente
relacionadas aos meus temas de investigação, têm interfaces com estes temas. Gostaria
de citar dois exemplos. O primeiro deles remete ao trabalho da pesquisadora
Marcia Yumi Takeuchi (2016), cujo livro Imigração Japonesa nas Revistas
Ilustradas é muito bem escrito e documentado. Lendo sua obra, aprendi muito
sobre o rigor no tratamento das fontes, sendo levada sempre a refletir a
respeito do equilíbrio entre: por um lado, a atenção aos detalhes (à descrição
das fontes, às minúcias que podem nos ajudar a entender melhor o contexto de
produção e circulação dos documentos analisados) e, por outro lado, a
sensibilidade ao contexto histórico mais amplo – e no caso da pesquisa de
Takeuchi, ao contexto geopolítico, em que as políticas imigratórias envolvendo
o Brasil, o Japão e vários Estados europeus tinham bastante importância para a
compreensão dos processos locais.
O segundo exemplo está relacionado à atuação da historiadora
indiana Romila Thapar. Muito conhecida por suas obras sobre história da Índia
antiga, ela tem participado, nas últimas décadas, dos intensos debates sobre
reescrita da história e os usos públicos da história na Índia contemporânea. Seu
conhecimento profundo da história da região e seu destemor ao questionar o uso
partidário-ideológico da disciplina histórica para incitar intolerância
religiosa e linguística, por exemplo, são fontes constantes de inspiração. Chamou
minha atenção uma de suas mais recentes publicações, e que ainda não tive a
oportunidade de ler. É uma narrativa de viagem, em que Romila Thapar discorre
sobre sua primeira viagem à China, em 1957, como assistente de pesquisa em um
projeto que investigava dois sítios arqueológicos budistas naquele país. Está
na minha lista de leituras, com certeza!
Referências e sugestões de leitura:
IRIYE, A. Global and transnational history: the
past, present and future. New York: Palgrave MacMillan, 2013.
HAUSER, B. (Ed.) Yoga traveling. Bodily practice in transcultural perspective. Heidelberg: Springer, 2013.
HERREN, M.; RÜESCH, M; SIBILLE, C. Transcultural
history. Theories, methods, sources. Heidelberg: Springer, 2012.
TAKEUCHI, M. Y. Imigração nas Revistas Ilustradas:
Preconceito e Imaginário Social (1897-1945). São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo: Fapesp, 2016.
THAPAR, R. Gazing Eastwards: Of Buddhist Monks and Revolutionaries in
China. New Delhi: Aleph, 2020.