Nesta série de entrevistas, apresentaremos as professoras e
professores colaboradores do Blog de História da UNILA, projeto de extensão
vinculado ao Laboratório de Estudos Culturais (LEC) da UNILA. As entrevistas
mostrarão um pouco dos interesses de pesquisa e áreas de atuação destas
pesquisadoras e pesquisadores.
Na conversa de hoje, entrevistamos o prof. Pedro Afonso
Cristovão dos Santos, professor de Teoria da História dos cursos de
História da UNILA (Bacharelado e Licenciatura) e do Mestrado em História da
UNILA (PPGHIS-UNILA).
1) Prof. Pedro, obrigado por colaborar com o Blog de História da UNILA. Em primeiro lugar, gostaríamos de conhecer um pouco mais sobre seus interesses de pesquisa e temas de sua preferência para orientação na graduação e pós-graduação.
Pedro Afonso Cristovão dos Santos: Meus interesses de
pesquisa estão principalmente nas áreas de História da Historiografia e Teoria
da História. Em História da Historiografia, problematizamos o conhecimento
histórico, como cada contexto histórico define o que é a escrita da história, e
quais as disputas e percepções alternativas existentes. Os “consensos”
normalmente são apenas aparentes, e encontramos, em diferentes épocas e
lugares, formas de escrever a história que podem variar muito em seus aspectos
fundamentais: concepções do que é a história, para que serve, formas de
representá-la discursivamente (os tipos de narrativa histórica utilizados), as
fontes e como elas são usadas, os métodos de pesquisa, e assim por diante. Na
minha própria pesquisa, interesso-me pela construção do conhecimento histórico,
pelas operações que levam os historiadores das fontes ao texto final, dos
registros do passado a uma proposição sobre esse passado. Por isso, dediquei-me
a estudar aspectos do trabalho dos historiadores com as fontes, principalmente
o que normalmente chamamos de erudição histórica, o domínio de uma documentação
e seu uso para resolver problemas concretos do conhecimento histórico, pontos
do passado que ainda não estão esclarecidos. A erudição tem esse aspecto
aplicado que revela muito, acredito, sobre o funcionamento do conhecimento
histórico: ela serve para tentar esclarecer incertezas sobre o passado, por
meio de raciocínios a partir das fontes. Desse modo, a história aparece como
argumentação, e como um conhecimento voltado para o debate em torno de
problemas. Nos últimos anos, as abordagens globais e transnacionais (como as
que temos no Mestrado em História da UNILA) enriqueceram bastante o campo da
História da Historiografia, a partir do estudo de como essas noções básicas do
conhecimento histórico (fato histórico, fontes, método) “viajam” pelo mundo e
assumem novas definições em diferentes contextos. Assim, hoje trabalhamos
bastante com essa perspectiva, aprofundando os conhecimentos sobre como a
história é escrita em diferentes partes do mundo, quebrando a perspectiva de
sua difusão pura e simples a partir dos centros europeus.
Como a pesquisa em História da Historiografia leva a pensar
as características do conhecimento histórico, ela se aproxima muito da Teoria
da História, outra área de interesse para mim. A Teoria da História possui
muitos objetos possíveis de estudo: as concepções de tempo, a memória, os
traumas, a presença e os usos do passado no presente, negacionismos,
relativismos e revisionismos históricos, as narrativas históricas, entre
outros. Além desses objetos, ocupa-se também do conhecimento histórico: como é
possível conhecer o passado? Por que meios? O que é possível afirmar sobre a
história? Nessa última linha se encontram meus interesses em Teoria da
História, as questões sobre o conhecimento histórico. A Teoria é também um
ótimo exercício imaginativo e de raciocínio: a partir da abstração imaginamos
diferentes possibilidades que pode tomar o conhecimento histórico e vemos a
validade ou não dessas possibilidades, sempre tendo como referência a historiografia,
o que historiadoras e historiadores efetivamente produzem. A Teoria toma a
historiografia como fonte e estuda as operações e concepções dxs historiadorxs,
examinando seus limites e possibilidades.
2) Tendo em vista sua área de atuação, o que um potencial estudante de pós-graduação, especificamente, deveria levar em conta ao propor um projeto em seu campo de estudos?
Em História da Historiografia, como em outras áreas da
pesquisa histórica, creio ser fundamental um bom recorte em termos de fontes e
periodização. Saber com que autores, textos ou outras formas de escrita da
história trabalharemos; e qual é o contexto histórico, o recorte temporal do
trabalho. As fontes nos dizem muito sobre a viabilidade da pesquisa e suas
possibilidades: o que é possível conhecer a partir desses materiais (e o que
não é possível). E o recorte temporal nos permite compreender quais mudanças
estamos estudando, evitar anacronismos, saber entender cada autor ou texto em
seu contexto e inseri-los em um processo histórico (de modo a nunca os observar
de forma estática). A partir das fontes e do recorte temporal, a elaboração de
um problema de pesquisa pertinente fica mais fácil.
Para estudos em Teoria da História, creio que o mais
importante é a formulação de um bom problema de pesquisa. Isto é, de um
problema formulado de maneira simples, concisa e nos termos adequados. Para,
desse modo, sabermos com que autores e ideias dialogar, e como fazer a
demonstração do nosso raciocínio, do argumento que queremos desenvolver dentro
do debate teórico que escolhemos investigar.
3) Com que fontes históricas você trabalha, ou já trabalhou? Poderia comentar um pouco sobre as especificidades dessas fontes?
Na minha pesquisa de mestrado, estudei o historiador
brasileiro João Capistrano de Abreu (1853-1927), e seu trabalho como editor de
documentos históricos. Justamente porque queria estudar o que os historiadores
fazem quando trabalham com fontes, escolhi um meio de verificar de perto esse
trabalho, e as edições críticas de documentos feitas por Capistrano de Abreu
proporcionam isso: ver um pouco das operações que um(a) historiador(a) realiza
diante de um documento, para dele poder extrair algum conhecimento do passado.
Assim, trabalhei com obras publicadas: livros e artigos de jornal. Servi-me
também da correspondência de Capistrano de Abreu, na qual ele relatou muito desse
seu trabalho com documentos históricos. Assim, minhas principais fontes foram
obras (o que me aproximou das considerações da História das Ideias, e História do
livro e da leitura) e correspondência.
Como esse trabalho com documentos envolvia grande dose de
erudição, tomei a erudição como tema e estudei-a em contexto anterior, a
segunda metade do século XIX, para o meu doutorado. Estudei a erudição
histórica presente em um debate diplomático do período, a Questão do Oiapoque,
questão de limites entre Brasil e Guiana Francesa. Nela atuou um autor
considerado por seus contemporâneos e pósteros um dos maiores eruditos do
Brasil no século XIX: Joaquim Caetano da Silva (1810-1873). Assim, estudei a
erudição em seus textos. Novamente trabalhei com livros e artigos de
publicações do século XIX como a revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro e outros boletins de sociedades letradas do período.
L’Oyapock et l’Amazone: quéstion brésilienne et française
(O Oiapoque e o Amazonas: questão brasileira e francesa), livro de
Joaquim Caetano da Silva (1810-1873) sobre a disputa de limites entre Brasil e Guiana
Francesa no século XIX. Considerada uma das grandes obras de erudição histórica
escritas no Império, pode ser consultada em https://archive.org/details/loyapocetlamazo00silvgoog/page/n10/mode/1up,
acesso em 07/04/2021
O trabalho com livros e textos de debates (“obras de
pensamento”, na definição de Claude Lefort) tem muitas especificidades.
Destacaria justamente o caráter que esses documentos têm de intervenção em um
debate. Ou seja, seus autores queriam interferir numa discussão, estavam fazendo
algo ao escreverem, queriam produzir algum efeito. Por isso, aproximei-me
das reflexões da História das Ideias na sua vertente contextualista, de autores
como Quentin Skinner, que procuram precisamente estudar textos de ideias em
seus contextos de enunciação. Além disso, outra especificidade que destacaria
nessas fontes é como elas nos levam para o que está além do texto: para os
documentos, arquivos e bibliotecas que os autores consultaram, a
correspondência que tiveram com outros autores, as condições políticas e
sociais nas quais escreveram, entre outros pontos. Dessa forma, pensamos mais
em uma história social da erudição.
Atualmente, continuo a estudar a erudição na segunda metade
do século XIX por meio dos textos eruditos públicos, isto é, aqueles que saíam
em função de algum debate da época. Textos em revistas de sociedades científicas
da época, na imprensa geral, e em livros. O contato do mundo letrado brasileiro
com a França naquele período era muito forte, por isso também trabalho com
fontes francesas (ou em francês) do período. O que busco fundamentalmente é o
estilo e as operações da erudição na época. O texto erudito era um texto
argumentativo, em que vamos acompanhando o raciocínio do autor, que procura
oferecer uma solução para um problema (como a solução para uma equação
matemática), construindo um argumento por meio de lógica e do que dizem as
fontes. Assim, tem a ver com a forma como aquele contexto via a ciência e a
lógica. Por serem textos públicos, muitas vezes lidos em sessões de sociedades
letradas, envolvem também uma atenção com a forma pela qual o autor se dirige a
seus leitores: educada, polida. Estudar argumentos científicos e debates nos
quais a polidez é condição necessária é fundamental considerando o contexto em
que vivemos.
4) Sua pesquisa abrange que períodos históricos? Por que você chegou a esse recorte temporal? O que esse período tem, para a pesquisa histórica, de possibilidades para novas investigações?
Minhas pesquisas abrangem principalmente a segunda metade do
século XIX. De fato, são tipos de textos historiográficos e edições de
documentos históricos (documentos que indicam o que aquela época entendia como
“erudição histórica”) que se encaixam em um recorte de mais ou menos um século,
de 1830 a 1930; meu foco é no período 1850 a 1880, mais ou menos. Após
revoluções burguesas na Europa e independências políticas nas Américas, se
estabiliza um tipo de escrita e debate de questões históricas em torno das
sociedades letradas e imprensa (é o período de conformação de um espaço
público) bastante marcado pelo quadro dos Estados nacionais (o que não impede
que cosmopolitismo e movimentos transnacionais de ideias estejam fortemente
presentes). Eruditos se voltam para a escrita das histórias nacionais e para
questões de erudição deixadas sem solução (como o significado ou origem de uma
palavra num documento, a localização de um ponto geográfico em um mapa ou
relato histórico), além de organizarem arquivos e coleções de edições de
documentos históricos nacionais (mesmo que a época ainda seja fortemente
marcada pelas coleções pessoais de documentos). Para a história da
historiografia, é um período muito rico. O século XIX é considerado o “século
da História”: a perspectiva histórica se torna importante em várias áreas (como
a filologia, a biologia – com o evolucionismo -, a geologia), e o historicismo
procura transformar a visão de mundo da época em histórica. É possível observar
uma grande variedade de concepções de escrita da história, e as muitas memórias
e textos de erudição escritos no período revelam um estilo particular de
pesquisa – proporcionando muitos temas para pesquisa. Creio que, após o aumento
da centralidade das universidades na produção do conhecimento, na Europa e nas
Américas, o cenário muda bastante (embora ainda guarde continuidades com o
século XIX, num primeiro momento). Por isso, meu recorte temporal vai até 1930.
5) Que abordagens e referências teóricas você citaria como relevantes em seu campo de pesquisa?
Em história das ideias, de modo mais geral, citei acima Quentin Skinner e a abordagem contextualista (outro autor importante nessa vertente é J. G. A. Pocock), que nos ajuda a pensar os diálogos e debates nos quais um(a) autor(a) se insere quando publica uma obra ou uma intervenção pública. Também a abordagem da história dos conceitos, de Reinhardt Koselleck, é relevante, especialmente para fornecer linhas de mudança nas ideias de uma sociedade. Ultimamente, a história global das ideias tem trazido debates muito interessantes.
Em história da historiografia, particularmente, autores como
Manoel Luiz Salgado Guimarães, Lucia Maria Paschoal Guimarães, Raquel Glezer,
Temístocles Cezar e Durval Muniz de Albuquerque foram e são referências que
constantemente retomo. Suas análises de textos historiográficos, relação entre
vida e obra, e contextos de produção são muito ricas. Num âmbito mais teórico,
o texto “A operação historiográfica”, de Michel de Certeau, é muito importante
para a análise da historiografia.
Acho importante acrescentar que bons estudos de história, independente da área, são sempre proveitosos, mesmo que não sejam diretamente sobre nosso tema ou período de estudo.