Retomamos
hoje no blog as postagens com temática em História da Ásia, que voltarão a ser publicadas na última semana de cada mês. A postagem de hoje é uma
reflexão que envolve a história do povo curdo e um arquivo constituído pela
fotógrafa norte-americana Susan Meiselas a partir de fotografias coletadas no
mundo todo, seguindo a diáspora curda. Boa leitura!
Ao
longo do século XX – e, principalmente, com a cobertura da Guerra Civil
Espanhola (1936-1939) –, fotógrafos(as) desempenharam um importante papel no
registro e na denúncia das atrocidades cometidas em conflitos violentos. Importante
para o jornalismo e para as ciências humanas, de modo geral, quando se trata de
interpretar o momento presente, a atuação de fotógrafos(as) de guerra também
pode fornecer elementos importantes para se pensar o estudo e a escrita da
história. Nesta postagem, gostaríamos de destacar a reflexão intencionalmente
estabelecida por uma fotógrafa sobre a atividade de fotografar e suas
potencialidades de construção de arquivos visuais, dedicados ao registro e à preservação
da memória de um povo específico: os curdos.
Entre
outubro de 2019 e março de 2020, o Instituto Moreira Salles (IMS), em São
Paulo, realizou a exposição Susan Meiselas – Mediações.
Uma retrospectiva da carreira da fotógrafa estadunidense, muito conhecida por
sua atuação na cobertura de conflitos na América Central, a exposição trazia,
também, uma seção relacionada à reflexão de Meiselas sobre a questão curda. É
interessante observar como, em sua ligação com este povo – os curdos –, e esta
região do mundo – o Oriente Médio –, até então pouco conhecida pela fotógrafa,
ela gradualmente se afastou da atividade fotográfica como registro do momento
presente e, simultaneamente, interessou-se pela história do povo curdo. Ao voltar seu olhar para o passado, buscando
compreender a complexidade dos conflitos que cobriu como fotógrafa no início da
década de 1990, Susan passou a se concentrar na construção de um arquivo
fotográfico sobre a história curda. Desta forma, dedicou-se a colecionar fotos
e relatos produzidos por outras pessoas – no Oriente Médio e na diáspora.
Não
é nossa intenção aqui resumir em poucas linhas as complexidades da história dos
povos curdos, dos conflitos em que se envolveram e da violência sofrida por
meio de políticas de extermínio a que foram submetidos ao longo do século XX. Gostaríamos
apenas de retomar brevemente alguns elementos desses processos históricos para que
nossos(as) leitores(as) compreendam as reflexões de Susan Meiselas sobre a
questão curda. Uma observação pertinente, neste caso, é a de que tanto as
coberturas jornalísticas, como as narrativas construídas por ativistas e lideranças
curdas, por exemplo, podem se aproximar de visões essencialistas ou
homogeneizadoras da história e da identidade curdas. David Mc Dowall (2005), em
uma revisão histórica da questão curda, lembra-nos da importância de se considerar,
em primeiro lugar, que a história dos povos que hoje se denominam curdos e que
habitam há séculos a região que é conhecida (mas não oficialmente reconhecida)
como Curdistão – atualmente entre os estados de Irã, Iraque, Síria e Turquia –
não é uma história ininterrupta de conflitos com as populações vizinhas.
Organizados em clãs seminômades ou nômades, os curdos estabeleciam relações de
poder (e se ajustavam a elas) de acordo com sua mobilidade e necessidade. Isso
poderia significar, também, que, em certos períodos históricos, os vínculos de
solidariedade entre curdos e outros povos locais, como os assírios, por
exemplo, poderiam ser mais fortes que as ligações construídas entre os próprios
clãs curdos. Além disso, a identidade linguística curda – o fato de falarem uma
única língua – não está diretamente associada a uma origem étnica “pura” ou
“exclusiva”, facilmente reconhecível. Durante a expansão árabe-muçulmana para
os territórios em questão, ao longo do século VII da Era Comum, o “termo étnico
‘curdo’ era aplicado a um amálgama de tribos iranianas ou iranizadas
[assimiladas às populações locais], algumas delas possivelmente ‘curdas’
autóctones, mas muitas delas de origem semítica” ou pertencentes a outros
grupos étnicos (McDowall, 2005, p. 9, tradução nossa).
Os
conflitos observados por pesquisadores, ativistas e jornalistas na segunda
metade do século XX nos remetem diretamente aos processos históricos
relacionados de imperialismo europeu no Oriente Médio, construção de Estados
nacionais e surgimento de movimentos nacionalistas locais, iniciados no século
XIX e fortalecidos na primeira metade do século XX, principalmente. Em linhas
gerais, a demanda por um Estado curdo, por parte de grupos com modos de
organização social mais fluidos que os impostos pelo Estado-nação moderno,
surgiu gradualmente, e com diferentes nuances, em decorrência da ruptura de um
delicado equilíbrio existente na região. No interior do Império Otomano, os
curdos gozavam de relativa autonomia. Em resposta à presença crescente de
potências imperialistas europeias no Oriente Médio, o Império Otomano aumentou
o controle sobre regiões habitadas pelos curdos, reduzindo sua autonomia ao
longo da segunda metade do século XIX. Como consequência das reconfigurações territoriais
causadas pela Primeira Guerra Mundial, pela desintegração do Império Otomano e
pela reorganização da região em Estados-nação, a população curda se viu fragmentada
em diferentes territórios nacionais. Os novos moldes de organização política e
administrativa reduziram significativamente a mobilidade e a flexibilidade
características dos modos de vida curdos, sujeitando-os à condição de minorias
em cada Estado-nação em que se situavam. Além da tentativa de supressão das
revoltas curdas contra os Estados que limitavam sua liberdade, é importante
destacar o papel das disputas em torno do controle dos recursos naturais das
regiões que os curdos tradicionalmente habitavam (relacionadas aos ciclos de
mobilidade seculares por eles mantidos) na formulação de políticas repressivas,
como lembra McDowall (2005). Pode-se considerar, neste caso, o controle do uso
e da propriedade da terra associados à formação do estado da Turquia, por
exemplo, ou o interesse na extração de petróleo na região montanhosa habitada
pelos curdos, no atual estado do Iraque.
Susan Meiselas em ação na Nicarágua. Imagem disponível em https://epoca.globo.com/cultura/noticia/2018/03/exposicao-em-paris-faz-retrospectiva-da-obra-da-americana-susan-meiselas.html, acesso em 29/04/2021
A fotógrafa Susan Meiselas viajou à região do Curdistão, no contexto dos desdobramentos da Guerra do Golfo, entre 1991 e 1992. A chegada de Meiselas à região se concretizou com a cobertura da visita da então primeira-dama da França, Danielle Mitterrand, aos campos de refugiados curdos no Irã. Convencida da importância de fotografar a zona de conflitos em que se encontrava, aproximou-se de lideranças curdas e permaneceu na região. Engajou-se, então, nas atividades de documentação do extermínio de curdos liderado por Saddam Hussein. Em conjunto com ativistas e colaboradores da Middle East Watch, seção da Human Rights Watch dedicada ao Oriente Médio, Susan tirou fotos dos vilarejos destruídos, das valas comuns e participou de investigações de antropologia forense.
Em uma entrevista cedida a Kristen Lubben (publicada originalmente no catálogo da exposição Susan Meiselas: in History, de 2008, e incluída no material educativo distribuído pelo IMS, em 2019), a fotógrafa relembra e reflete sobre o processo de criação do arquivo fotográfico sobre a questão curda. Ela comenta que, ao documentar a violência contra os curdos, observou que as pessoas não apenas guardavam fotos dos desaparecidos, como também demonstravam apego por elas: vestiam as fotografias, exibiam-nas em público. Segundo a fotógrafa,
[v]ivenciei
as fotografias como uma maneira de contar a história para mim, as histórias deles do que tinha acontecido nos últimos
100 anos. Eu já estava focada no passado por causa das exumações. E essas
fotografias apontavam para o passado. Por que essas pessoas foram mortas? O que
havia por trás da limpeza étnica, do genocídio? Numa tentativa de compreender
isso, olhei para o que podia haver de evidências por meio das fotografias do
que tinha ocorrido lá. (MEISELAS em entrevista a LUBBEN, 2019, p. 11).
Fotografar
deixou de ser, então, o principal objetivo de Susan. Coletar, organizar e
tornar acessíveis fotografias e histórias de pessoas curdas (ou seja, imagens e
narrativas produzidas por pessoas curdas ou de origem curda): tudo isso tomou o
lugar central de suas atividades. As visitas ao Oriente Médio se tornaram mais
difíceis após 1994, com o aumento das tensões na região, e Meiselas passou a
explorar as conexões diaspóricas construídas por curdos que foram deslocados de
sua região de origem e passaram a viver na Europa (principalmente na Suécia,
Alemanha, Holanda, França e Inglaterra) e nos Estados Unidos. Os resultados do
trabalho meticuloso da fotógrafa, em busca da (re)construção da memória visual
do povo curdo podem ser conhecidos por meio das exposições que exibem alguns
dos resultados de sua pesquisa – como a do IMS, em 2019 –, do livro publicado
sobre o tema (MEISELAS, 1998) e do website
Aka Kurdistan.
Nesta página eletrônica, é possível conhecer muitas das fotos e dos relatos
coletados pela fotógrafa e pesquisadora.
O
trabalho de Susan Meiselas na constituição de um arquivo das vivências curdas
nos remete a novas vias recentemente abertas de reflexão sobre arquivos e história.
A ideia de arquivo tem deixado de se associar exclusivamente a Estados nacionais,
empresas, órgãos públicos e indivíduos ou famílias “célebres”, para servir de questionamento
a narrativas colonialistas e imperialistas, por exemplo. Nas últimas décadas, arquivistas
e historiadores têm dado crescente atenção à formação de arquivos de grupos
sociais marginalizados e de experiências de descolonização. Entre outras
autoras de destaque, a norte-americana Ann Laura Stoler trabalha essas questões
em obras como o livro Along the Archival Grain: Epistemic Anxieties and
the Colonial Common Sense (Seguindo a fibra do arquivo: ansiedades
epistêmicas e senso comum colonial, 2010) e o capítulo “Colonial Archives and
the Art of Governance” (“Arquivos Coloniais e a Arte da Governança”, em BLOUIN
Jr., ROSENBERG, 2007). A coletânea Archive Stories: Facts, Fiction and
the Writing of History (Histórias de arquivos: Fatos, Ficção e a Escrita
da História), organizada por Antoinette Burton (2005), dá uma dimensão da
multiplicidade de sujeitos e experiências passíveis de serem protagonistas de arquivos.
Experiências de mobilidade, como arquivos
de passaportes (“Mecanismos de Exclusão”, no título do estudo de Craig
Robertson em BURTON, 2005, p. 68-86); experiências de indivíduos e grupos como
comunidades queer latinas; levantes anticoloniais na África do Sul e
narrativas do extermínio de aborígines na Austrália, todas são histórias que
passam pela constituição de um arquivo e pelo questionamento aos arquivos
existentes. Trata-se de processos semelhantes aos que Susan Meiselas procurou
fazer para a diáspora curda.
Talvez
haja um paralelo entre esse tipo de descoberta histórica e o que pode ser
descoberto com trabalho em campo. Pensamos o trabalho em campo e o de arquivo como
coisas muito separadas, mas, para mim, eles desencadeiam uma resposta similar,
em que posso me sentir conectada à comunidade, no qual o que eu faço tem
sentido, de uma maneira que a comunidade de onde eu venho não necessariamente
compreende (MEISELAS em entrevista a LUBBEN, 2019, p. 11).
Os arquivos e a própria escrita da história estiveram ligados, ao menos desde o século XIX, aos Estados nacionais. Ao constituir um arquivo para uma nação sem Estado e globalmente dispersa, Susan Meiselas simultaneamente nos relembra a importância do arquivo para o registro e escrita da história e nos faz questionar a lógica por vezes excludente dos arquivos estatais. Por fim, podemos refletir brevemente, no encerramento desta postagem, sobre a fragmentação das fontes históricas – especialmente no que se refere a sua produção, localização, preservação. As fotografias, se tomadas isoladamente, não permitiriam a Susan e seus colaboradores curdos contar sua própria versão da história dos conflitos das últimas décadas do século XX, no Curdistão. Daí a importância da construção de séries de fotografias, organizadas em arquivos e associadas a relatos que pudessem ser registrados.
Referências
bibliográficas e sugestões de leitura
BLOUIN Jr.,
Francis X.; ROSENBERG, William G. (ed.). Archives, Documentation, and
Institutions of Social Memory: Essays from the Sawyer Seminar. Ann Arbor:
The University of Michigan Press, 2007.
BURTON, Antoinette (ed.). Archive Stories: Facts, Fictions, and the Writing of
History. Durham e Londres: Duke University Press, 2005.
LUBBEN,
K. Entrevista com Susan Meiselas. In: GILI, M.; VIEWING, P.; GUERRA, C. (Curadores). Susan Meiselas – Mediações. São Paulo: Instituto Moreira Salles,
2019, p. 3-12.
MCDOWALL, D. The Kurdish Question: a Historical
Review. In: KREYENBROEK, P.G; SPERL, S. (Eds.) The Kurds: A Contemporary Overview. London and New York: Routledge, 2005,
p. 8-25.
STOLER, Ann Laura. Along the Archival Grain: Epistemic Anxieties and Colonial Common Sense. Princeton:
Princeton University Press, 2009.
Mirian
Santos Ribeiro de Oliveira, professora de História da Ásia
da UNILA
Pedro
Afonso Cristovão dos Santos, professor de Teoria e
Metodologia da História na UNILA