Ao longo do século XIX, um dos principais centros de poder político no sul da África foi o reino Zulu. Os pesquisadores explicaram a formação do reino Zulu como resultado de transformações sociais, políticas e econômicas iniciadas nas últimas décadas do século XVIII, em uma região localizada na atual província de Kwazulu-Natal, na África do Sul. Nesse período, algumas linhagens da região se envolveram na caça e na comercialização de marfim ou de gado com o litoral, e desenvolveram um novo tipo de organização de guerreiros: os amabutho, que eram regimentos de guerreiros separados por faixas etárias, e que atuavam tanto nas atividades de guerra quanto na organização das caçadas. Esses e outros fatores levaram ao fortalecimento de alguns reinos, chefias e linhagens.
Foi nesse contexto que surgiu o reino Zulu. Até então, os Zulus, um povo de língua e cultura Nguni, formavam um pequeno conjunto de famílias localizadas nas proximidades do rio White Mfolozi. Eles se consideravam descendentes de um ancestral em comum, chamado Zulu kaMalandela (“Zulu, o filho de Malandela”). Porém, a partir de 1818, os Zulus consolidaram a sua autoridade sobre uma vasta região por meio de alianças e conquistas militares. O responsável foi um chefe (inkosi) chamado Shaka kaSenzangakhona (c. 1787-1828), o qual aprimorou e incorporou novas técnicas de guerra. Dessa forma, Shaka e os guerreiros Zulus foram estabelecendo seu domínio político sobre diversas outras chefias e linhagens nas imediações. Após sua morte, Shaka foi sucedido, na liderança do reino Zulu, por seu meio-irmão, Dingane kaSenzangakhona (c. 1795-1840).
Sabemos muito sobre o período de
formação e expansão desse centro de poder graças à oralidade, que tinha um
papel importantíssimo na sociedade Zulu. Era por meio da palavra falada que as
tradições, os costumes e as leis eram transmitidas de geração em geração. Além
disso, em meio à elite política, o destaque recaía sobre os izimbongi, os “poetas” que relatavam as sagas
dos chefes e de seus guerreiros. Esses poetas eram responsáveis pela produção
de izibongo, os “poemas de aclamação”.
Os
izibongo não se limitavam apenas a narrar os feitos dos “grandes homens”, já
que poderiam ser compostos e cantados em outras ocasiões, como, por exemplo, no
nascimento de crianças, em sacrifícios de animais ou no preparo para a guerra.
Também conhecemos muito sobre as mulheres da elite a partir desses poemas: um
exemplo disso são os izibongo dedicados a Mnkabayi, a tia de Shaka, e uma das
figuras mais influentes na política Zulu das primeiras décadas do século XIX.
Em um dos poemas ela é descrita como “aquela que abre os portões para que todas
as pessoas possam entrar” e a que “bebe o veneno da cobra” (MASUKU, 2009): isto
é, uma espécie de mediadora entre a nobreza e o povo Zulu, protegendo-o dos
abusos de autoridade.
Na
época de Shaka e Dingane, os “poetas” mais importantes eram Magolwane e
Mshongweni. Foram esses izimbongi que transmitiram as histórias de
Shaka, e de seus familiares, principalmente de sua mãe, a rainha Nandi,
destacando sua astúcia, força de vontade e beleza física. Segundo o historiador
Sifiso Ndlovu, esses “poetas” eram os intelectuais de seu tempo, responsáveis
pela construção da memória coletiva e da consciência histórica de sua sociedade
por meio das suas performances. Também cumpriam um papel político em muitas
circunstâncias: os poemas de aclamação, sobretudo quando dedicados aos chefes
das linhagens, poderiam servir para legitimar a sua autoridade, detalhando suas
vitórias, ou até mesmo para questioná-la - às vezes ao mesmo tempo.
Muitos
desses poemas foram coletados e transcritos no início do século XX,
principalmente por um folclorista e administrador colonial chamado James
Stuart. Até hoje, o acervo de James Stuart é um dos maiores registros da
oralidade entre as sociedades africanas no sul do continente. Um poema épico
coletado nesse período descreve, a partir da memória, a expansão política e
militar de Shaka e do reino Zulu na década de 1820, listando os povos
derrotados e aqueles que foram incorporados pelos Zulus:
Ele
devorou Sikunyane, nascido de Zwide;
Ele
devorou Nqabeni, nascido de Zwide;
Ele
devorou Mphepha, nascido de Zwide
Ele
devorou Dawyingubo, nascido de Zwide;
Ele devorou Mpondophumelakwezinde do regimento Mapheleni.
(MALABA, 1986, p. 30, tradução livre)
Longe
de apresentá-lo como um “tirano”, “bárbaro” ou “selvagem”, como mais tarde
fizeram os viajantes e colonizadores europeus, o poema descreve Shaka como um
líder militar competente, capaz de derrotar inimigos ou incorporar povos
dominados entre os seus regimentos: o termo “eMapheleni” refere-se a um
regimento de guerreiros que lutava ao lado de um dos inimigos de Shaka, mas
que, após a derrota, foram incorporados entre os guerreiros Zulus. As menções e
repetições frequentes a “devorar” eram comuns nos poemas de aclamação do
período, e possuem um significado simbólico: como uma metáfora para a conquista
das terras e, sobretudo, a captura do gado das chefias derrotadas.
Assim,
por meio da linguagem poética, os “poemas de aclamação” podem ser vistos como
fontes importantes para a compreensão da sociedade e da política Zulu no século
XIX!
Referências
e sugestões de leituras
NDLOVU,
Sifiso Mxolisi. African Perspectives
of King Dingane kaSenzangakhona.
Nova York: Palgrave Macmillan, 2017.
KRESSE, Kai. Izinbongo: the political art of praising:
poetical socio-regulative discourses in Zulu society. Journal of African
Cultural Studies, v. 11, n.2, 1998.
MALABA, Mbongeni. Shaka as a literary theme. Tese
de doutorado. University of York, 1986.
Evander Ruthieri Saturno da Silva, professor de História da África do curso de História da UNILA