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A História Cultural e a Música Popular como fonte historiográfica: Discussões teóricas e metodológicas


Pretendemos nesta postagem levantar algumas questões teóricas e metodológicas que estão relacionadas com história, a música e a canção popular, a partir do texto “História e música: canção popular e conhecimento histórico” (2000) de José Geraldo Vinci de Moraes. Busco refletir também sobre as mudanças epistemológicas apontadas por Sandra Jatahy Pesavento, no texto “A Entrada em Cena de um Novo Olhar” (2003). Além disso, a partir de uma perspectiva interdisciplinar, perceber como as relações entre história, cultura e música popular podem desvendar processos pouco conhecidos e raramente levantados pela historiografia.

Discussões teóricas

José Geraldo Vinci de Moraes (2000) aponta para a possibilidade e a viabilidade do historiador tratar a música e a canção popular como uma fonte documental importante para mapear e desvendar zonas obscuras da história, sobretudo aquelas relacionadas com os setores subalternos e populares.

O problema encontrado pelos historiadores para delimitar o que é a história cultural está na amplitude do atual conceito de cultura adotado pela historiografia. Contudo, para traçar linhas gerais dos estudos que englobam a história cultural, se torna necessário observar a historicidade dos conceitos adotados por ela, como: cultura; tradição e popular. A cultura popular e a tradição, fazem parte da memória histórica de um grupo de pessoas, é algo compartilhado e por essa razão pode ser vista como uma forma de identificação cultural.

Elis Regina e o baterista Toninho Pinheiro, em apresentação no Teatro Paramount, em São Paulo, 1965. Imagem disponível em: https://acervos.ims.com.br/portals/#/detailpage/12884915441, acesso em 12/08/2021

Moraes (2000) explica que, entre as inúmeras formas musicais, a canção popular (verso e música), nas suas diversas variantes, é a que mais embala e acompanha as diferentes experiências humanas.  Além disso, a canção é uma expressão artística que contém um forte poder de comunicação, principalmente quando se difunde pelo universo urbano, alcançando ampla dimensão da realidade social.  O autor ainda defende que a canção e a música popular podem ser encaradas como uma rica fonte para compreender certas realidades da cultura popular e desvendar a história de setores da sociedade pouco lembrados pela historiografia.

No entanto, o historiador esclarece que tais investigações raramente ocorrem por diversas razões. Normalmente, os trabalhos historiográficos que tratam de desvendar as relações entre história, música e produção do conhecimento enfrentam uma série interminável de dificuldades, como por exemplo: a dispersão das fontes; a desorganização dos arquivos; a falta de especialistas e estudos específicos e sobretudo, a escassez de apoio institucional.

Além do mais, para José Geraldo Vinci de Moraes, a bibliografia da história da música, como um elemento da história da arte de modo geral, apenas reforçou uma postura e pouco contribuiu para ultrapassar limites e restrições. Ao contrário, suas linhas e tendências predominantes quase sempre serviram para reforçar limitações e preconceitos. O autor explica que esta historiografia quase sempre se desenvolveu, destacando basicamente três aspectos deste discurso, ordenado por privilegiar a biografia do grande artista; centralizar suas atenções exclusivamente na obra de arte, e, além disso, o foco nos estilos, gêneros ou escolas artísticas.

A renovação na Nova História Cultural, ocorrida no final da década de 1980, questionou os pressupostos teóricos predominantes na historiografia da cultura e utilizou pensadores de outras áreas do conhecimento para criar novas perspectivas de análises. Até meados da década de 1980, era visível o predomínio de estudos de adeptos da escola dos Annales e do Marxismo, no entanto a descoberta dos historiadores de autores que haviam sido menosprezados revigorou os questionamentos historiográficos.

Nesse período despontaram alguns trabalhos originais, que tratavam de vários temas relacionados direta ou indiretamente com a música popular, produzidos na universidade e distribuídos por diversas áreas do conhecimento. Apesar do quadro renovador originado na universidade, o trabalho investigativo especificamente nessa área da história social e cultural tendo a música popular como eixo ainda permanece bastante tímido, e com avanços apenas residuais (MORAES, 2000).

No entanto, o considerável crescimento e a diversidade da produção acadêmica ainda não significou uma colaboração concreta no aspecto quantitativo e de qualidade nesta área da história cultural, segundo Moraes. Isso significa, consequentemente, que o uso da canção popular urbana como fonte continua bastante restrito, e aparentemente ainda mantém um status de segunda categoria no universo da documentação.

 

Discussões metodológicas

No terceiro capítulo da obra História e História da Cultura (2003), Sandra Jatahy Pesavento (1946-2009) aborda inicialmente as mudanças epistemológicas que ocorreram para fundamentar o olhar da História para este novo campo do saber nomeado de “Nova História Cultural”.

A autora aponta que um dos conceitos que se impõe com as novas mudanças epistemológicas diz respeito a algo que se encontra no centro do que o historiador pretende compreender na pesquisa histórica, a sensibilidade. Isso porque as sensibilidades correspondem a um núcleo primário de percepção e tradução da experiência humana no mundo, portanto, traduzem as formas pelas quais os grupos e indivíduos se percebem. A tradução da realidade se dá por meio das emoções e dos sentidos humanos. 

Nessa medida, as sensibilidades não só comparecem no cerne do processo de representação do mundo, como correspondem, para o historiador da cultura, àquele objeto a capturar do passado, pois essa é a própria energia da existência.  Na análise das sensibilidades retorna a reflexão de que, se a História é uma espécie de ficção, ela é ao menos uma ficção controlada, sobretudo pelas fontes, que atrelam a criação do historiador aos traços deixados pelo passado. Portanto, o historiador precisa encontrar a tradução das subjetividades dos sentimentos em materialidades, objetos palpáveis, que operem como a manifestação exterior de uma experiência íntima, individual ou coletiva (PESAVENTO, 2003).

Para dialogar com as mudanças epistemológicas apontadas pela historiadora Sandra Pesavento, José Moraes (2000) aponta que um dos obstáculos gerais colocados às investigações no campo da música é a dificuldade em circunscrevê-la como uma “disciplina” voltada claramente para a produção do conhecimento.

Naturalmente se coloca como primeiro problema às investigações lidar com os códigos e a linguagem musical - certamente uma questão fundamental. No entanto, essa dificuldade não pode ser impeditiva para o historiador interessado nos assuntos relacionados à cultura popular.  Deste modo, mesmo não sendo músico e musicólogo com formação apropriada e específica, o historiador pode compreender aspectos gerais da linguagem musical e criar seus próprios critérios (MORAES, 2000).

Para o historiador José Geraldo Vinci de Moraes, a música popular não deve ser compreendida apenas como texto, fato muito comum em alguns trabalhos historiográficos que se arriscam por essa área. No entanto, é preciso considerar também que muitas vezes as formulações poéticas concedem mais indicações e caminhos que as estritamente musicais.

Já em relação à linguagem musical interna, o autor explica que é necessário levar em conta variantes básicas relacionadas com a linha melódica e o ritmo. Mas eles também devem ser compreendidos na lógica do desenvolvimento da visão de mundo do autor. Além do mais, é preciso considerar também que para o artista popular muitas vezes a cultura local e regional impôs, a seu modo, modelos e gostos, encarados geralmente como intransponíveis para a comunidade e para quem convivia com eles (MORAES, 2000).

 

A metodologia da historiografia cultural dá espaço para diferentes interpretações acerca dos significados da história, trabalhando com a ideia de que na história não existe uma verdade única, mas sim representações/versões do real. Por essa razão, ela enfatiza uma história em movimento, que se renova e se transforma. As questões realçadas por José Moraes (1999), alcançaram ao menos três aspectos relevantes para a reflexão do historiador que pretende trabalhar com a canção popular: a linguagem da canção, a visão de mundo que ela incorpora e traduz, e, finalmente, a perspectiva social e histórica que ela revela e constrói.

Além do mais, as reflexões levantadas por Sandra Pesavento (2003), sobre a representação do imaginário, o retorno à narrativa e a entrada em cena da ficção junto às sensibilidades, levam os historiadores a repensar as possibilidades de acesso ao passado na reconfiguração de uma temporalidade.

Conclui-se, então, que no presente a História se situa em uma era de dúvida; dúvida que antecede a pesquisa e se instala como um princípio de conhecimento. No entanto, deve-se admitir que mesmo se considerada como uma forma de ficção, a História é ao mesmo tempo controlada pelos indícios recolhidos pelo historiador, que testa e submete esses indícios a sua metodologia.

José Ramos Tinhorão, entre Henricão e Carmen Costa. Imagem disponível em: https://ims.com.br/titular-colecao/jose-ramos-tinhorao/, acesso em 12/08/2021

O Blog de História da UNILA aproveita para lembrar também, com essa postagem, o historiador e crítico musical brasileiro José Ramos Tinhorão (1928-2021), um dos pioneiros na história da música popular brasileira, falecido no último dia 3 de agosto.

 

Referências:

MORAES, José Geraldo Vinci de. “História e música: canção popular e conhecimento histórico”. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 20, no. 39, p. 203-221, 2000.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & história cultural. 3ª Edição. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.


Gilson José de Oliveira Neto, estudante do curso de História – América Latina da UNILA.

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