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Precisamos de uma "slow history"? História, acelerações e desacelerações

 Nos primeiros dias de 2021, a Associação Americana (isto é, estado-unidense) de História (American Historical Association, AHA) realizou de forma online sua palestra anual, a “Presidential Adress”. A palestra, que está disponível no canal do YouTube da AHA, foi ministrada pela historiadora Mary Lindemann, professora da Universidade de Miami, especialista em história da primeira modernidade na Europa e história da medicina, e teve seu texto disponibilizado online. A profa. Lindemann pergunta-se, na reflexão, sobre as razões da historiografia ter permanecido à margem dos chamados “slow movements”, movimentos em diversas áreas em defesa de uma desaceleração do tempo do capitalismo. Lindemann questiona se a pesquisa e escrita da história não seriam atividades “lentas” por natureza, imunes à aceleração do tempo na fase atual do capitalismo. Desse modo, seria a razão de não haver um movimento de “slow history” ("história lenta") o fato de se tratar de uma redundância?

Os “slow movements” originaram-se a partir do movimento “slow food”, que começou na Itália na década de 1980, liderado pelo militante socialista Carlo Petrini. O slow food (cujo nome propõe um contraponto com o fast-food) começou como uma defesa de tradições culinárias regionais, da agricultura local, da boa comida e de um modo de vida mais desacelerado, que permitisse aproveitar melhor o cotidiano. Hoje, o slow food está presente em questões agrárias, de segurança alimentar e, principalmente, nos debates políticos sobre ecologia e defesa do planeta diante do cenário de mudança climática.


Slogan para o movimento "Slow food" e capa da edição em inglês do livro Outra Ciência é Possível, de Isabelle Stengers. Imagens disponíveis em https://www.amoretravelguides.com/blog/italys-slow-food-movement.php e https://www.goodreads.com/book/show/35416921-another-science-is-possible, acesso em 05/08/2021)

A partir da comida, outros movimentos passaram a adotar a temática da desaceleração. Um dos movimentos mencionados por Lindemann é o de “slow science”. Organizados em Berlim, através da “Slow Science Academy”, um grupo de cientistas lançou um manifesto em 2010 em defesa de um tempo específico do trabalho científico, incompatível com o tempo acelerado do capitalismo atual (manifesto traduzido para o português). Declarando-se cientes de que seu trabalho envolve a necessidade de constante publicação em periódicos de avaliação por pares, bem como inserções públicas para divulgar suas pesquisas, participação em meios de comunicação de massa e redes sociais, o grupo defende, no entanto, um tempo específico para a ciência. “We are scientists. We don’t blog. We don’t twitter. We take our time” (“Nós somos cientistas. Não escrevemos blogs. Não twittamos. Nós tomamos nosso tempo”) é o chamado na abertura do manifesto. Embora reconhecendo as necessidades do atual tempo acelerado, a academia de “Slow Science” defende, em seu manifesto, que “A ciência precisa de tempo para pensar. A ciência precisa de tempo para ler, e tempo para falhar” (“Science needs time to think. Science needs time to read, and time to fail”). O manifesto defende inclusive que esse tempo desacelerado é fundamental para uma melhor compreensão entre pesquisadores das humanidades e das ciências naturais.

 

Precisamos de tempo para pensar. Precisamos de tempo para digerir. Precisamos de tempo para nos desentender, especialmente quando promovemos diálogos entre as humanidades e as ciências naturais. (...) A ciência precisa de tempo.

(“We do need time to think. We do need time to digest. We do need time to misunderstand each other, especially when fostering lost dialogue between humanities and natural sciences. […] Science needs time.”)

 

O lema da academia é, pois, “Fique conosco, enquanto pensamos” (“Bear with us, while we think”). O movimento por uma ciência “lenta” já gerou outros manifestos em sua defesa, como o da historiadora e filósofa da ciência Isabelle Stengers, intitulado “Outra Ciência é Possível”.

Embora as humanidades (dentre elas, a história) difiram das ciências naturais em certos aspectos de sua produção científica, também sofrem com a constante pressão por publicações e, nas últimas décadas, por intervenções públicas, divulgação científica e conexão contínua por meio das redes sociais. Seria isto compatível com o tempo da pesquisa e escrita da história? Se o dilema da aceleração do tempo e da produção científica também vale para a história, por que, perguntou Mary Lindemann, não surgiu entre os historiadores um “slow history movement”?

A historiadora expõe, inicialmente, uma história cultural das noções de velocidade e de lentidão, mostrando como, a partir do século XIX, velocidade passou a ser visto como virtude. Por oposição, a lentidão ganhou conotação negativa (como ao dizermos, de forma depreciativa, que uma pessoa é “lenta”, no sentido de pouco inteligente). Ao longo do século XX, a revolução informática reforçou a (percepção da) aceleração da vida. Lindemann expõe, então, os muitos modos pelos quais a pesquisa e escrita da história seria, intrinsecamente, lenta.

Dentre estes modos, o tempo dos arquivos e dos documentos é um tempo que inevitavelmente, segundo Lindemann, desacelera o(a) historiador(a). Não apenas porque compreender um documento pode nos levar muito tempo, mas devido ao processo intelectual de dar sentido ao que encontramos nas fontes. Lindemann usa os argumentos de Arlette Farge no já clássico O sabor do arquivo (2009), a respeito do lento trabalho de organizar e reorganizar as evidências, os constantes recomeços impostos pela pesquisa. A documentação nunca é transparente ou óbvia, aponta Farge, forjando um lapso temporal entre seu acesso, leitura, decifração e a constituição de uma narrativa convincente a partir das fontes. Esse lapso de tempo, porém, é espaço para criatividade, segundo Farge.

Lindemann aponta como algumas metáforas reforçam essa ideia de um tempo lento de formação dos conceitos históricos. A ideia de uma “marinação” nos documentos, por exemplo, remete (como a slow food) a um tempo necessário de formação dos sabores (“fermentação” poderia ser outra boa metáfora). Lindemann também recupera relatos de grandes achados de historiadores em arquivos, achados que envolveram sorte e acasos cujo catalisador foi o tempo de contato dos historiadores com os arquivos. O tempo de conhecer os arquivos (como destacou a historiadora Alexandra Walsham) e tomar sua estrutura e organização como objeto de questionamento é fundamental.

A interdisciplinaridade inerente ao trabalho do historiador também é uma fonte de desaceleração. Conhecer uma nova disciplina para aplicá-la à pesquisa envolve tempo. Novas abordagens, como a história global, nos levam a questionar e mesmo redesenhar nossos objetos de estudo. Viradas interpretativas como as que têm proliferado desde os anos 1960 (a virada linguística, a espacial, a cultural, a imagética, a arquivística, entre outras) também forçam os historiadores a parar e examinar os questionamentos teóricos propostos, aceitando-os ou rejeitando-os. Equívocos e becos sem saída encontrados na pesquisa também forçam desacelerações (muitas vezes frutíferas, segundo Lindemann).

O tempo do ensino também atua como um desacelerador. Pensar como ensinar, que materiais utilizar, a preparação das aulas, envolve paciência, trabalho e repetição. A obrigação de publicar regularmente por vezes constrange xs historiadorxs a “acelerar” a finalização (mesmo que provisória) de alguma parte de suas pesquisas. O tempo da publicação, seria, no entanto, outro tempo a ser desacelerado. Lindemann toma como caso emblemático a experiência da historiadora norte-americana Christine DeLucia, relatada no texto “Sobre uma ‘história lenta’: Descolonizando metodologias e a importância de processos editoriais sensíveis”. DeLucia, pesquisadora dos povos nativo-americanos, em particular da tomada de seus pertences para exposição em museus, analisava coleções indígenas obtidas em processos de apropriação colonialista nos EUA. Após um longo processo de escrita, revisão, reescrita, apresentação de seu texto preliminar em eventos e diálogo com colegas, ela finalmente chegara ao momento de publicação do texto. DeLucia já havia recebido os prazos finais para entrega do texto, quando descobriu por postagens em redes sociais que a universidade de Yale havia firmado um acordo com a etnia Mohegan, para devolução de objetos tomados por colonizadores. DeLucia interessou-se por incluir o caso na conclusão de seu artigo, mas precisava de tempo para realizar verificações: queria, em particular, saber como os próprios Mohegans haviam participado do processo, qual papel tiveram, e não apenas se contentar com o conteúdo divulgado pela assessoria de imprensa de Yale. Entrou em contato com a etnia, e obteve sua visão do processo. A revista na qual publicaria seu artigo concordou com uma extensão do prazo, e DeLucia pôde inserir esse caso em sua conclusão. Mas isso dependeu da revista (a William and Mary Quarterly) aceitar conceder-lhe tempo. Mais do que isso, seu contato com os Mohegans só ocorreu devido a anos de projetos em parceria com a etnia. O episódio levou DeLucia a defender a necessidade de se criar tempo e espaço dentro dos processos de publicação acadêmica, por oposição ao que chama de “‘fast’ history” (a versão historiográfica de uma fast-food).

O tempo de conhecer e investigar arquivos, o tempo de se familiarizar e se situar com uma época e costumes que não são os nossos, o tempo de conhecer uma disciplina da qual necessitamos (ou com a qual dialogamos), o tempo de responder a desafios teóricos, o tempo de preparar e executar aulas, o tempo de reelaborar publicações, seriam, para Lindemann, tempos inevitavelmente desaceleradores. (Somem-se a estes tempos mais prosaicos, mas não menos desaceleradores, como os tempos dos departamentos universitários e das escolas, o tempo das reuniões e da burocracia). Por isso, a história seria, por definição, “lenta”. Viria efetivamente daí o fato de não termos um movimento “slow history”? Precisamos de um?

Em outro sentido, a história tem sido um excelente apoio para pensar o tempo acelerado em que vivemos, como nos mostram alguns ótimos exemplos de estudos. O historiador Rodrigo Turin investiga, por exemplo, os impactos da aceleração do tempo contemporâneo sobre as humanidades, parte de uma pesquisa mais ampla sobre as experiências de tempo na contemporaneidade e suas dessincronizações (visíveis em tempos vistos como de transição). Mateus Pereira e Valdei Araujo elaboraram a categoria de “atualismo” para pensar a temporalidade contemporânea, marcada pela pressão por constantes atualizações. Transcender esse tempo de acelerações, dessincronizações e atualizações é, evidentemente, impossível para historiadoras e historiadores contemporâneos. Qual historiografia é possível nesse contexto, e a qual deveríamos almejar?

A rápida resposta das ciências ao desafio da Covid-19, demonstrada no desenvolvimento de mais de uma vacina contra o novo coronavírus em tempo recorde na história da ciência, aponta para uma necessidade de precisar melhor a questão “lento X rápido”.  A própria capacidade que xs historiadorxs têm demonstrado de pensar o tempo presente mostra uma historiografia respondendo “rapidamente” aos desafios da contemporaneidade. Os manifestos por uma ciência “lenta” não defendem um afastamento das questões atuais, ou uma recusa deliberada em produzir. Antes, a desaceleração coloca em debate os critérios que regem o produtivismo acadêmico, critérios como os que definem publicações em periódicos de referência (questionamento que historiadoras e historiadores têm feito com cada vez mais frequência; cf. AVILA; NICOLAZZI; TURIN, 2019). É uma defesa, para Isabelle Stengers, da “pluralidade das ciências”, da atenção a diferentes modos de avaliação e diferentes tipos de pesquisa (STENGERS, 2013, p. 55). Afinal, uma vacina pode ser produzida em um ano, mas o mesmo tempo não bastará para formar o pesquisador e constituir a tradição de pensamento de institutos de pesquisa e laboratórios sem os quais a vacina jamais virá à luz. São, de fato, muitos tempos condensados nos eventos das descobertas científicas e publicações, alguns deles bastante lentos, e nem todos compatíveis com os tempos acelerados do capitalismo atual.

 

Referências e sugestões de leitura

 

AVILA, Arthur Lima de; NICOLAZZI, Fernando; TURIN, Rodrigo (orgs.). A História (in)disciplinada: teoria, ensino e difusão do conhecimento histórico. Vitória: Editora Milfontes, 2019.

FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009.

PEREIRA, Mateus & ARAUJO, Valdei. Atualismo 1.0: Como a ideia de atualização mudou o século XXI. Mariana, MG: Editora SBTHH, 2018.

PETRINI, Carlo. Comida e liberdade: slow food – histórias de gastronomia para a libertação. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2015.

STENGERS, Isabelle. Une autre science est possible! Manifeste por un ralentissement des sciences [Uma outra ciência é possível! Manifesto por uma desaceleração das ciências] Paris: Éditions La Découverte, 2013.

TURIN, Rodrigo. Tempos precários: aceleração, historicidade e semântica neoliberal. Zazie Edições, Coleção Pequena Biblioteca de Ensaios, 2019.

 

Pedro Afonso Cristovão dos Santos, professor de Teoria e Metodologia da História da UNILA.

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