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A "Primavera dos Povos" na Era do Capital: historiografia e imagens das revoluções de 1848

 

Segundo a leitura de Eric J. Hobsbawm em A Era do Capital, a Primavera dos Povos foi uma série de eventos gerados por movimentos revolucionários (liberais; nacionalista e socialistas) que eclodiram quase que simultaneamente pela Europa no ano de 1848, possuindo em comum um estilo e sentimento marcados por uma atmosfera romântico-utópica influenciada pela Revolução Francesa (1789).

No início de 1848 a ideia de que revolução social estava por acontecer era iminente entre uma parcela dos pensadores contemporâneos e pode-se dizer que a velocidade das trocas de informações impulsionou o processo revolucionário na Europa, pois nunca houvera antes uma revolução que tivesse se espalhado de modo tão rápido e amplo.

Com a monarquia francesa derrubada pela insurreição e a república proclamada no dia 24 de fevereiro, a revolução europeia foi iniciada. Por volta de 2 de março, a revolução havia chegado ao sudoeste alemão; em 6 de março a Bavária, 11 de março Berlim, 13 de março Viena, e quase imediatamente a Hungria; em 18 de março Milão e, em seguida, o restante da Itália.

Segundo Hobsbawm, a revolução triunfou através de todo o centro do continente europeu, mas não em sua periferia. Países como a Península Ibérica, Suécia e Grécia, eram muito isolados em sua própria história para serem diretamente atingidos pelas influências que rondavam a época. Já países como Rússia e o Império Otomano eram considerados atrasados para possuir uma estrutura social e política explosiva como a da zona revolucionária. Parte destes países eram dirigidos por monarcas ou príncipes absolutos, diferentemente da França, que já era um reino constitucional burguês e até então, a única república significativa do continente. Cada cenário local da "primavera dos povos" possui muitas semelhanças, inclusive em termos de duração, portanto, é preciso olhar suas características comuns. O primeiro ponto destacado por Hobsbawm é que todas as revoluções foram vitoriosas e derrotadas rapidamente e na maior parte dos territórios.

Com os governos da zona revolucionária derrubados ou reduzidos à impotência, todos passaram a entrar em colapso e recuar sem resistências. Em um curto período de tempo, a revolução perdeu sua iniciativa em todos os lugares; na França, pelo fim de abril; no resto da Europa revolucionária, durante o verão.

 

Litografia representando a tomada de uma barricada em Paris, durante a revolução de 1848. Imagem disponível em http://www.fulltable.com/VTS/r/revolution/1848/a.htm, acesso em 10/09/2021


Outro ponto em comum destacado por Hobsbawm reside no fato de que todas as revoluções foram realizadas por trabalhadores, justamente porque foram eles que enfrentaram a morte nas barricadas urbanas, o que no fundo assustou os moderados liberais, contribuindo para o fracasso da revolução social. Entretanto, esse perigo não era igualmente agudo em todos os lugares, pois camponeses poderiam ser atraídos por governos conservadores. A burguesia, diante da ameaça à propriedade, preferiu a ordem à chance de pôr em prática o seu programa, cessando de ser uma força revolucionária.

O povo, sujeito revolucionário desde o fim do século XVIII, objeto da historiografia romântica do século XIX. Imagem disponível em http://www.fulltable.com/VTS/r/revolution/1848/a.htm, acesso em 10/09/2021

Ainda assim, para Hobsbawm 1848 não foi apenas um “breve episódio histórico” sem consequências. As revoluções de 1848 não são facilmente definidas em termos de regimes políticos, leis e instituições, porém elas marcaram o fim, na Europa ocidental, da política da tradição que até então era posta em prática pelas monarquias, que acreditavam que o povo  aceitaria a lei do direito divino que apontava para dinastias que iriam presidir sociedades hierarquicamente estratificadas. Isso tudo sancionado pela tradição religiosa que defendia a crença dos direitos e deveres patriarcais dos que eram superiores social e economicamente. Além disso, os defensores da ordem social foram obrigados a aprender a política do povo, e esta foi sem dúvida a maior inovação trazida pelas revoluções de 1848, pois ficou claro que classe média; liberalismo; democracia; política; nacionalismo e as classes trabalhadoras eram, daquele momento em diante, presenças permanentes no panorama político.

Eric J. Hobsbawm, ao tentar compreender as revoluções de 1848 em seu contexto, afasta-se de interpretações historiográficas que veem a “Primavera dos Povos” a partir de sua incompletude, do que faltou para que aquelas revoluções atingissem as consequências que revoluções anteriores e posteriores atingiram. Como define Jonathan Sperber, são análises que enxergam as revoluções de 1848 entre dois marcos revolucionários modernos: a Revolução Francesa de 1789 e a Revolução Russa de 1917. “Presa” entre estas duas revoluções de marcadas consequências, a “Primavera do Povos” foi vista por parte da historiografia (que se inspirou em avaliações contemporâneas aos eventos) por suas falhas, ou faltas, sendo medida por parâmetros externos a seu contexto. Nessa linha, três interpretações se difundiram, segundo Sperber: a romântica, que via grandeza e ousadia nos gestos e líderes revolucionários, porém destacava sua falta de conquistas políticas concretas; a visão crítica, que apontava as fraquezas dos revolucionários (comparados implicitamente aos jacobinos de 1789 e aos bolcheviques de 1917); e a interpretação concentrada na questão do fracasso das revoluções de 1848 em estabelecer regimes políticos duradouros. Interpretações comumente centradas nas grandes figuras e centros da época, como indica Sperber, e que ignora, nas suas comparações com a Revolução Francesa, o próprio peso que o fantasma dessa revolução tinha sobre os agentes de 1848. Compreender a interpretação de Hobsbawm, em sentido mais amplo, envolve compreender as diferentes visões da historiografia sobre estes acontecimentos de alcance global no século XIX, independentemente de como foram comparados, retrospectivamente, com outros movimentos revolucionários.

 


As revoluções de 1848 expuseram, nas gravuras da imprensa, as figuras nacionais e simbólicas que se consolidavam na cultura europeia desde o final do século XVIII. Tais figuras representavam valores, como a Liberdade, ou cada povo, especificamente. Acima, litografias mostram a “Liberdade” (no alto) e a “República” (acima) triunfantes. Imagem disponível em http://www.fulltable.com/VTS/r/revolution/1848/a.htm, acesso em 10/09/2021


Gravura no periódico alemão Eulenspiegel, de 1849. O século XIX também consagrou imagens de figuras genéricas representando seus povos, como o “Deutscher Michel” (o alemão Michel). Acima, uma gravura satírica na qual o “alemão Michel” é posto a representar as diversas fases da revolução de 1848, da revolucionária “primavera” dos povos ao sonolento outono que sucedeu o insucesso da revolução. Notar que o revolucionário Michel da primavera porta um barrete frígio, a touca que simbolizava os revolucionários desde a Revolução Francesa de 1789 (seria um símbolo dos escravizados emancipados na Roma antiga). No outono, Michel trocou seu símbolo revolucionário por uma touca de dormir. Imagem disponível em https://haab-digital.klassik-stiftung.de/viewer/image/128672855X_1849000000/61/, acesso em 10/09/2021

 

Referências

 

HOBSBAWM, E. J. A era do capital: 1848-1875. 15. ed. rev. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

SPERBER, Jonathan. The European Revolutions, 1848-1851. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.

 

 

Gilson José de Oliveira Neto, estudante do curso de História – América Latina da UNILA


Colaboração de Pedro Afonso Cristovão dos Santos

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