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AmarElo - É tudo pra ontem: história e diáspora africana


No ano de 2019, o cantor e compositor Leandro Roque de Oliveira (1985-, 36 anos), mais conhecido como Emicida, lançou seu terceiro álbum de estúdio, “AmarElo”. O álbum deu início a um projeto que incluía uma sequência de conteúdos em diversas plataformas, como os podcasts “AmarElo - O filme invisível” e “Amarelo Prisma”, ambos lançados em 2020 para complementar e expandir os conteúdos expostos no disco.

Em dezembro de 2020, dando sequência ao projeto, Emicida estreou pela plataforma Netflix o documentário “AmarElo - É Tudo Pra Ontem”, contando com a realização da Laboratório Fantasma, a produção de Evandro Fióti e a direção de Fred Ouro Preto. Utilizando-se de imagens, relatos e vídeos como fontes que perpassam a história da negritude no Brasil, o filme reconstrói e discute a contribuição da diáspora africana na cultura, a partir do fio genealógico que liga o Samba ao Movimento Hip-Hop. 

Emicida no Theatro Municipal de São Paulo. Imagem disponível em https://blogs.correiobraziliense.com.br/proximocapitulo/amarelo-e-tudo-pra-ontem-netflix/amp/, acesso em 02/09/2021

Os primeiros pontos deste fio destacados por Emicida estão ligados ao período da escravidão. Nesse aspecto, é fundamental ressaltar que, do continente americano, o Brasil foi o último país a abolir a escravidão. O documentário trata do processo de abolição no Brasil, que abandonou e empurrou os antigos escravizados para as margens de uma sociedade marcada por políticas de branqueamento, através do incentivo da imigração europeia e da demonização das culturas africanas e indígenas. Ressalta o apagamento da memória da escravidão e de toda contribuição não branca para o desenvolvimento da cultura do país.

Neste ponto, Emicida destaca como a ascensão de São Paulo foi marcada por um processo de gentrificação, que empurrou parte da população, maioritariamente preta, para as periferias da cidade. Além disso, pessoas pobres de outras regiões do país também migraram para a “terra das oportunidades”, em busca do que a cidade prometia oferecer - melhores condições de vida. Constrói-se assim então a cosmopolita e multicultural periferia de São Paulo. É neste contexto que na década de 1970, através da cultura Hip-Hop, que se espalhou dos Estados Unidos para o mundo, trazendo o Rap, o Break e o Grafite, como novas plataformas de se expressar com atitude, que jovens da periferia de São Paulo e de todo o país encontraram o primeiro grande veículo que conectaria as classes operárias às ideias dos intelectuais pretos em um movimento de conscientização a respeito do racismo e da desigualdade social.

Emicida e artistas convidados do espetáculo "AmarElo". Imagem disponível em https://vejasp.abril.com.br/blog/tudo-cinema/amarelo-e-tudo-pra-ontem-emicida/amp/, acesso em 02/09/2021

O documentário AmarElo é dividido em três atos. No primeiro ato, “Plantar”, Emicida argumenta sobre a importância de se reconectar com as tradições da terra, que ao longo das últimas décadas teve seu campo de saber totalmente alienado e substituído pelos resultados do desenvolvimento industrial. Assim, volta às raízes do pensamento negro na construção concreta de São Paulo, através do arquiteto Joaquim Pinto de Oliveira (1721-1811), mais conhecido como Tebas, nascido em Santos, na condição de escravizado e um dos arquitetos mais importante da história da cidade. Também explora a história do Samba através dos Oitos Batutas (1919-1927), conjunto musical criado no Rio de Janeiro em meio ao movimento Modernista. No âmbito das artes e cultura, o documentário nos remete a uma história cultural que pode ser interpretada à luz do contexto mais amplo do “Atlântico Negro”, conforme definido no importante livro de Paul Gilroy, O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Gilroy examina em particular a música produzida a partir da diáspora africana no capítulo 3, “‘Joias trazidas da servidão’: música negra e a política da autenticidade”.

No segundo ato, “Regar”, Emicida relembra o marco histórico que foi o dia 7 de julho de 1978, o dia da fundação do Movimento Negro Unificado (MNU), realizado nas escadarias do Theatro Municipal de São Paulo. Traz a biografia e o legado da filósofa e antropóloga Lélia Gonzalez (1935-1994), uma das principais intérpretes da Cultura Negra no Brasil e co-fundadora do (MNU); da professora e advogada Theodosina Ribeiro (1930-2020), primeira mulher negra a ser eleita como vereadora na Câmara Municipal de São Paulo e também a ocupar uma vaga de deputada estadual na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), e da cantora e compositora Leci Brandão (1944-76 anos), atualmente deputada estadual desde 2010.

No ato da “Colheita”, Emicida realça a importância do movimento produzido pela Negritude na construção cultural do Brasil, pois sem a presença na história de pessoas como o ator e ativista Abdias Nascimento (1914-2011), bem como da primeira atriz negra a se apresentar no Theatro Municipal, Ruth de Souza (1921-2019), a própria trajetória de Emicida na música não seria o que é. Para o rapper, o seu legado não consiste em ter chegado em um determinado ponto, mas sim ter retornado a ele, e isso só se faz possível graças à luta e o legado de todos que tornaram seu sonho iminente.


Para Emicida, a liberdade não é um estado fixo e é preciso manter-se lutando por ela. Por essa razão, defende em sua fala a importância simbólica que a população negra realiza ao ocupar lugares outrora construídos pelos seus ancestrais. Assim, o show de lançamento do disco AmarElo aconteceu no dia 27 de novembro de 2019 no Theatro Municipal de São Paulo, onde também foi gravado cenas do documentário.

Por fim, a última reflexão deixada por Leandro Roque de Oliveira expressa o mesmo ditado dos antigos iorubás, dito já no início do filme: “Exu matou um pássaro ontem, com a pedra que só jogou hoje”. Para Emicida, a natureza sempre completa o seu ciclo. Sendo assim, todas as possibilidades de consertar os desencontros, os erros, e os traumas do passado, moram no presente, no agora, por isso, é tudo pra ontem.


Referências:

AMARELO -  É Tudo Pra Ontem. Direção de Fred Ouro Preto. Produção de Evandro Fióti. Brasil: Netflix, 2020.

GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed. 34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.

"Com sensibilidade e aula de história, Emicida mostra poder do coletivo em 'AmarElo – É Tudo Pra Ontem'", por Soraia Alves. Disponível em https://www.b9.com.br/136050/amarelo-emicida-netflix-critica-review/, acesso em 02/09/2021.


Gilson José de Oliveira Neto, estudante do curso de História – América Latina da UNILA

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