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Viagem à Terra de Gandhi: Martin Luther King Jr. na Índia (1959)


Na postagem sobre Quadrinhos e História, apresentamos algumas possibilidades de exploração das relações entre o gênero das histórias em quadrinhos e a disciplina da História. Concentrando-nos em trabalhos produzidos na Ásia ou que remetessem àquela região do mundo, conhecemos um pouco da proposta editorial da Tara Books, companhia estabelecida no Sul da Índia.

No texto desta semana, adotaremos como ponto de partida para nossa discussão outro quadrinho da Tara Books publicado em língua portuguesa, chamado Vejo a Terra Prometida: A Vida de Martin Luther King (2011). Nesta obra, as ligações entre um dos líderes da luta pelos direitos civis nos EUA e o Sul da Ásia aparecem em, pelo menos, duas dimensões diferentes: a colaboração entre artistas das duas regiões; a representação da viagem de King à Índia, entendida pelo reverendo estadunidense como “uma peregrinação” à terra daquele que havia inspirado sua própria percepção de não violência, Mohandas Karamchand Gandhi (1869-1948).

Martin Luther King e Coretta King são recebidos no aeroporto, em Nova Delhi, no ano de 1959. Imagem disponível em: https://kinginstitute.stanford.edu/liberation-curriculum/lesson-plans/lesson-plan-martin-luther-king-jr-s-pilgrimage-india Acesso em: 27/09/2021

A trajetória de Martin Luther King (1929-1968) é revisitada por três artistas. Arthur Flowers, estadunidense, é professor do Departamento de Inglês da Universidade de Syracuse, escritor e artista performático. Em Vejo a Terra Prometida, Flowers atua como um griot, um músico e contador de histórias afro-americano, que desafia as fronteiras entre a oralidade e a escrita, a música e a palavra gravada nos livros. A história contada com habilidade e leveza quase nos faz ouvir a sua voz e a de seu companheiro nesta aventura, o artista bengalês Manu Chitrakar, que desenhou as passagens contadas por Flowers, mantendo o diálogo com a produção de pergaminhos e sua apresentação, característica da tradição artística patua – compartilhada por Moyna Chitrakar, indiana que participou da elaboração de Sita conta o Ramayana. O traço de Manu Chitrakar indica aos leitores semelhanças (ou possiblidades de aproximação) entre experiências de discriminação racial e opressão social vividas nos dois continentes, por povos conquistados e dominados por potências ocidentais. Guglielmo Rossi, designer italiano radicado em Londres, acompanhou os dois contadores de histórias nesta obra.

Os três autores percorrem toda a trajetória de vida de Martin Luther King. Interessa-nos aqui, especificamente, a relação do reverendo com o Mahatma, o que nos leva à segunda dimensão da conexão estabelecida pelo livro com a Ásia, mencionada anteriormente. O quadrinho destaca, já em suas primeiras páginas, a influência de Gandhi – juntamente com a concepção de desobediência civil de Thoreau – sobre King, principalmente no que se refere à elaboração de “um plano de protesto e ativismo não violentos” (FLOWERS, CHITRAKAR, ROSSI, 2011, p. 8). A viagem à Índia teria propiciado ao protagonista consolidar sua visão global (idem, p. 72) sobre o racismo e seu caráter estrutural, bem como sobre as melhores estratégias para combatê-lo. É importante lembrar que, no período da viagem de King, a ideia de solidariedade entre povos africanos (ou de origem africana) e asiáticos se fortalecia. Como o próprio reverendo destacou, para além da cor da pele, “o laço mais forte de fraternidade era a causa comum de povos minoritários e colonizados na América, na África e na Ásia lutando para liberar-se do racismo e do imperialismo” (KING, 1959, p. 85, tradução nossa).

Capa da versão original do livro Vejo a Terra Prometida. Disponível em: https://tarabooks.com/shop/i-see-the-promised-land/  Acesso em: 19/07/2021

Entre 10 de fevereiro e 10 de março de 1959, Martin Luther King Jr., sua esposa Coretta King e o biógrafo e amigo de King, Dr. Lawrence Reddick visitaram a Índia. A viagem teve grande cobertura da imprensa indiana e o próprio reverendo escreveu um artigo intitulado “Minha viagem à terra de Gandhi” (My Trip to the Land of Gandhi, no original em inglês), publicado na revista Ebony, em julho de 1959.  O artigo de sua autoria é ricamente ilustrado com fotografias tiradas na Índia, onde o trio teve uma recepção calorosa. A legenda da primeira foto destaca uma das declarações de King ao chegar ao país: “Posso visitar outros países como um turista; mas à Índia venho como um peregrino” (KING, 1959, p. 84, tradução nossa). E, de fato, acompanhado da esposa e do amigo, o reverendo estadunidense percorreu os principais lugares associados à vida de M. K. Gandhi, assassinado em 1948. Além disso, o grupo participou de vários encontros com autoridades indianas, ativistas sociais e estudantes africanos então residentes no país, como lembra Ajay Kamalakaram (2021), em texto para o canal independente de notícias Scroll India. No artigo escrito por King, há uma passagem, acompanhada de foto, que registra seu encontro com Vinoba Bhave, incansável defensor da reforma agrária considerado por muitos como o sucessor de Gandhi e uma inspiração para aqueles que gostariam de seguir os passos do Mahatma, como era o caso do reverendo.

Em Vejo a Terra Prometida, aprendemos sobre o que mais marcou King após sua viagem à Índia: a renovação da convicção de que a estratégia de não violência era a mais adequada para as comunidades negras dos Estados Unidos; a observação das mazelas das desigualdades sociais impostas pelo sistema de castas, dos desafios dos programas de ação afirmativa (implementados a partir das definições da Constituição Indiana, promulgada em 1950) e de semelhanças entre as estruturas de opressão social (e racial) nos dois países (FLOWERS, CHITRAKAR, ROSSI, 2011, p. 73-4).

Os três viajantes prestam homenagem a Gandhi em Rajghat, local que preserva as cinzas do líder indiano. Imagem disponível em: https://scroll.in/magazine/1000134/pilgrimage-to-india-when-martin-luther-king-jr-followed-in-gandhis-footsteps Acesso em: 27/09/2021

Esses são temas abordados em Minha viagem à Terra de Gandhi. Destacamos que, ali, Martin Luther King Jr. sintetiza sua renovada confiança nos métodos não violentos de ação política. É interessante observar que, em sua opinião, o encontro com os estudantes africanos residentes na Índia propiciou-lhe a oportunidade de identificar e enfrentar incompreensões da definição e prática da não violência. Para ele, os estudantes tendiam a confundir resistência passiva com não resistência.


A verdadeira resistência não violenta não é submissão irrealista ao poder do mal. É, mais precisamente, o confronto do poder do mal com o poder do amor, com a fé de que é melhor ser receptor de violência do que ser alguém que infringe violência, uma vez que a última postura apenas multiplica a existência de violência e amargura no universo, ao passo que a primeira postura pode evocar um sentimento de vergonha no oponente, e, dessa forma, provocar transformação e inversão da postura inicial (KING, 1959, p. 88, tradução nossa).


Crucial para a resistência não violenta era, então, o planejamento e o direcionamento para a ação. A ênfase na ação remete à desobediência civil – que, na prática, promoveria o questionamento de uma ordem social e jurídica injusta. A dimensão individual da adesão à não violência requereria um compromisso ético e, em última instância, exigiria que o indivíduo adotasse uma conduta exemplar – como Gandhi o teria feito. A dimensão coletiva da resistência não violenta poderia ser entendida como um instrumento de luta para grupos oprimidos, tais como as nações africanas em defesa de sua independência política (KING, 1959, p. 88). Desta forma, Martin Luther King Jr., em seu discurso de despedida da Índia, em programa da All India Radio, indicou que a inspiração gandhiana que o acompanharia em suas lutas pela igualdade racial nos Estados Unidos, no início da década de 1960, seria, também, um modelo para os povos e nações oprimidos do mundo:


Depois de ir à Índia, estou mais convicto do que nunca de que o método de resistência não violenta é a arma mais poderosa dos povos oprimidos na luta por justiça e dignidade humana. Na verdade, Mahatma Gandhi encarnou em sua vida certos princípios universais inerentes à estrutura moral do universo, princípios tão indiscutíveis quanto a lei da gravidade (KING apud FLOWERS, CHITRAKAR, ROSSI, 2011, p. 73) 


Referências bibliográficas e sugestões de leitura

ARNI, S. CHITRAKAR, M. Sita conta o Ramayana. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.

FLOWERS, A.; CHITRAKAR, M.; ROSSI, G. Vejo a terra prometida. A vida de Martin Luther King. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.

KAMALAKARAM. A. Pilgrimage to India: When Martin Luther King Jr. followed in Gandhi’s footsteps. Scroll.in. 14 jul. 2021. Disponível em: <https://scroll.in/magazine/1000134/pilgrimage-to-india-when-martin-luther-king-jr-followed-in-gandhis-footsteps> Acesso em: 19 jul. 2021.

KING, M. L. Farewell Statement for All India Radio. All India Radio. March 1959. Transcrição disponível em: <https://kinginstitute.stanford.edu/king-papers/documents/farewell-statement-all-india-radio> Acesso em: 19 jul. 2021.

KING, M. L. My trip to the land of Gandhi. Ebony Magazine. July 1959. Disponível em: <https://kinginstitute.stanford.edu/king-papers/documents/my-trip-land-gandhi> Acesso em: 19 jul. 2021.

 

Websites:

Arthur Flowers

Tara Books

The Martin Luther King, Jr. Research and Education Institute – Universidade de Stanford


Mirian Santos Ribeiro de Oliveira, professora de História da Ásia da UNILA.


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