Pular para o conteúdo principal

Potentados africanos na Londres vitoriana: a visita de Cetshwayo kaMpande em 1882

 Até o final da década de 1870, o reino Zulu era um dos principais centros de poder político no sul da África. No entanto, sua independência política era vista como uma ameaça pelos administradores e oficiais britânicos, que, naquele período, promoviam a expansão dos territórios coloniais naquela região para controlar as terras e explorar a mão de obra africana. Assim, em dezembro de 1878, o rei (inkosi) dos Zulus, Cetshwayo kaMpande (1826-1884), recebeu dos britânicos um ultimato que exigia a dissolução dos seus regimentos de guerreiros e a abertura do território aos interesses coloniais. A recusa de Cetshwayo levou à guerra com os britânicos, que, em julho de 1879, resultou na derrota dos Zulus. O território Zulu foi fragmentado em treze províncias, a partir daí administradas por chefes que se aliaram aos britânicos. Cetshwayo foi deposto, capturado e enviado como prisioneiro à Cidade do Cabo.

Mesmo na condição de prisioneiro, Cetshwayo passou a mobilizar uma rede de alianças com o objetivo de recuperar sua liberdade e autoridade política. Além de enviar cartas a autoridades na África do Sul (ao exemplo do influente bispo William Colenso e de sua filha, a escritora Harriette Colenso), Cetshwayo recebeu autorização para viajar a Londres em meados de 1882, com a missão de negociar seu retorno ao reino Zulu diretamente com os políticos britânicos e com a própria Rainha Vitória. A imprensa britânica, sobretudo os jornais e as revistas ilustradas, acompanhou de forma entusiasmada a viagem de Cetshwayo e suas reuniões com as autoridades coloniais.

Segundo a historiadora Catherine Anderson, as representações da visita de Cetshwayo a Londres são importantes para entender os imaginários coloniais sobre os Zulus. Até a metade do século XIX, as imagens e textos que circulavam na Europa retratavam os Zulus como curiosidades etnográficas, povos “exóticos” e “primitivos”, e que se destacavam pela inteligência e força física de seus guerreiros. No entanto, durante a guerra de 1879, os Zulus passaram a ser retratados nos jornais e nas revistas como “selvagens”, “bárbaros” e periculosos, admiráveis por sua disciplina militar e pela aptidão de seus guerreiros, mas, em última instância, ameaças ao projeto colonial britânico.


Essa caricatura, publicada na revista Punch em 1879, representava a captura de Cetshwayo ao final da guerra Anglo-Zulu. (“What will be done with him?” Punch, or the London Charivari, 27 de setembro de 1879, p. 137)

A visita de Cetshwayo a Londres promoveu outro tipo de representações textuais e imagéticas. Nos jornais e revistas, o rei dos Zulus passou a ser retratado como um cavalheiro vitoriano, respeitável e “civilizado”. Em um estúdio londrino, foi fotografado em roupas europeias, de cartola e sobrecasaca, mas ainda portando o isicoco - um adorno para cabeça simbolizando sua autoridade política entre os Zulus.

Fotografia de Cetshwayo kaMpande, feita em estúdio durante sua viagem em 1882. (National Portrait Gallery, Londres)

A partir dessas e outras fontes, é possível perceber que, em sua viagem, Cetshwayo estava mobilizando estratégias de autorrepresentação. Assim, ao vestir-se e apresentar-se como um cavalheiro londrino, Cetshwayo manifestava um anseio de ser visto e respeitado pelos políticos britânicos, seus antigos inimigos. Como concluiu Catherine Anderson, Cetshwayo reconhecia a fascinação dos britânicos por roupas “tradicionais” dos Zulus, mas também estava ciente de que as suas demandas políticas só seriam respeitadas se ele adotasse a imagem ‘civilizada’ daqueles a quem apelava. Em outras palavras, “percebia que sua própria autoridade seria mais aparente aos britânicos se eles reconhecessem símbolos de poder familiares (...), nesse caso, a sobrecasaca preta e a cartola de um cavalheiro” (ANDERSON, 2008, p. 310).

Como resultado de suas estratégias e demandas, Cetshwayo foi reinstaurado como chefe de parte do território Zulu em 1883. Porém, em consequência da divisão do reino Zulu promovida pelos britânicos, seu povo estava agora em meio a uma guerra civil, e a morte de Cetshwayo, no ano seguinte, pode ter sido causada por chefes rivais.

Cetshwayo não foi o único líder africano a mobilizar essas estratégias políticas de negociação e diplomacia na luta por sua independência. Em 1895, três dikgosi (chefes) da Bechuanalândia (atual Botswana) -- Khama III, o chefe dos BaNgwato; Sebele I, chefe dos Bakwena; e Bathoen I, chefe dos BaNgwaketse -- viajaram para a Inglaterra em uma missão política: protestar, junto às autoridades britânicas, a invasão das suas terras por Cecil Rhodes, o “magnata” da mineração no sul da África e primeiro-ministro da Colônia do Cabo. Esses e outros episódios da história política africana ainda aguardam maiores pesquisas, as quais poderão revelar informações preciosas sobre as estratégias e iniciativas de potentados e chefes africanos diante do colonialismo no final do século XIX.

Gravura publicada em uma revista londrina, retratando a visita de Khama III, chefe dos Tswana BaNgwato, ao secretário de colônias em 1895. (“Bung in Africa”. Punch, or the London Charivari, 21 de setembro de 1895, p. 139)

Referências e sugestões de leitura

BOAHEN, Albert Adu. African perspectives on colonialism. Baltimore: John Hopkins University Press, 1987.

ANDERSON, Catherine. A Zulu King in Victorian London: Race, Royalty and Imperialist Aesthetics in Late Nineteenth Century Britain. Visual Resources, v. 24, n.3, 2008, pp.299-319.

CHANAIWA, David. Iniciativas e resistências africanas na África meridional. In: BOAHEN, Albert Adu. História Geral da África, v.VII: África sob dominação colonial, 1880-1935. Brasília: UNESCO, 2010.

 

Evander Ruthieri Saturno da Silva, professor de História da África da UNILA

Postagens mais visitadas deste blog

A perspectiva na pintura renascentista.

Outra característica da pintura renascentista é o aprimoramento da perspectiva. Vejamos como a Enciclopédia Itaú Cultural Artes Visuais se refere ao tema: “Técnica de representação do espaço tridimensional numa superfície plana, de modo que a imagem obtida se aproxime daquela que se apresenta à visão. Na história da arte, o termo é empregado de modo geral para designar os mais variados tipos de representação da profundidade espacial. Os desenvolvimentos da ótica acompanham a Antigüidade e a Idade Média, ainda que eles não se apliquem, nesses contextos, à representação artística. É no   renascimento   que a pesquisa científica da visão dá lugar a uma ciência da representação, alterando de modo radical o desenho, a pintura e a arquitetura. As conquistas da geometria e da ótica ensinam a projetar objetos em profundidade pela convergência de linhas aparentemente paralelas em um único ponto de fuga. A perspectiva, matematicamente fundamentada, desenvolve-se na Itália dos séculos XV e

"Progresso Americano" (1872), de John Gast.

Progresso Americano (1872), de John Gast, é uma alegoria do “Destino Manifesto”. A obra representa bem o papel que parte da sociedade norte-americana acredita ter no mundo, o de levar a “democracia” e o “progresso” para outros povos, o que foi e ainda é usado para justificar interferências e invasões dos Estados Unidos em outros países. Na pintura, existe um contraste entre “luz” e “sombra”. A “luz” é representada por elementos como o telégrafo, a navegação, o trem, o comércio, a agricultura e a propriedade privada (como indica a pequena cerca em torno da plantação, no canto inferior direito). A “sombra”, por sua vez, é relacionada aos indígenas e animais selvagens. O quadro “se movimenta” da direita para a esquerda do observador, uma clara referência à “Marcha para o Oeste” que marcou os Estados Unidos no século XIX. Prof. Paulo Renato da Silva. Professores em greve!