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Vestimentas, história e memória: pensando a partir da Ásia

 

O que as vestimentas teriam a nos dizer sobre as relações sociais, em diferentes períodos históricos? Poderiam nos ensinar algo sobre a memória e as emoções de quem veste ou herda uma roupa, um calçado, um chapéu?

Na exposição virtual Entramar la Nación. Trajes típicos de las minorías étnicas de China, organizada conjuntamente pelo Museo de la Historia del Traje, pela Embaixada da República Popular da China em Buenos Aires e pelo Centro de Estudios de Argentina-China (CEACh),[1] podemos conhecer e refletir sobre os modos como as vestimentas expressam diferenças e semelhanças nas relações sociais, a partir do caso chinês. Em diferentes períodos da história, grupos étnicos, religiosos e linguísticos variados habitando um mesmo território utilizaram vestimentas (e acessórios) como símbolos de demarcação, de inclusão ou exclusão a uma comunidade de referência. O mesmo é válido quando temos em mente diversos estratos sociais, quer pensemos do ponto de vista da distribuição de recursos materiais ou simbólicos. As roupas das camadas mais baixas de uma sociedade em geral diferem das vestimentas das camadas mais altas.


Tela de abertura da Exposição Entramar la Nación. Trajes típicos de las minorías étnicas de China. Disponível em: https://eltrajevirtual.cultura.gob.ar/ Acesso em: 22/11/2021

Ao visitar a exposição sobre a história dos trajes de diversos grupos étnicos chineses, aprendemos, assim, sobre a riqueza e a complexidade das relações sociais naquele território que hoje chamamos de República Popular da China. Como uma atividade desenvolvida em um museu, em colaboração com instituições diplomáticas e acadêmicas, a exposição também nos diz algo sobre a construção da memória coletiva, já que se faz a opção por apresentar ao público de fala espanhola uma nação chinesa marcada pelo pluralismo cultural e pela convivência com o diferente.

Do ponto de vista da memória individual, Peter Stallybrass, dialogando com o trabalho do historiador britânico Christopher Bayly sobre a resistência indiana ao colonialismo britânico por meio da fabricação do próprio tecido e das próprias roupas, observou que

[as] roupas recebem a marca humana. As joias duram mais e também podem nos comover. Mas embora tenham uma história, elas resistem à história de nossos corpos. Duradouras, elas reprovam nossa imortalidade, imitando-a apenas no arranhão ocasional. Por outro lado, a comida, que, como as joias, é uma dádiva que nos liga uns aos outros, rapidamente se integra ao nosso corpo e desaparece. Tal como a comida, a roupa pode ser moldada por nosso toque; tal como as joias, ela dura para além do momento imediato do consumo. Ela dura, mas é mortal (STALLYBRASS, 2016, p. 14-15).

 

Para além das características que nos indiquem diferentes formações sociais – e posições ali ocupadas –, as observações de Stallybrass nos permitem pensar sobre as emoções que se vinculam a estes objetos considerados inanimados. Um vestido que guarde a forma ou o cheiro de sua proprietária, por exemplo, pode evocar dor e saudade (se se tratar de uma pessoa falecida) ou anseio pelo reencontro (se pensamos em alguém temporiamente distante).  

Os processos de migrações acrescentam possibilidades interessantes de reflexão sobre as vestimentas, seus usos, memórias e sentimentos que lhes atribuímos. Na exposição Da Cabeça aos Pés, que esteve aberta ao público entre 2 de dezembro de 2017 e 21 de outubro de 2018, o Museu da Imigração do Estado de São Paulo exibiu vestimentas e acessórios de imigrantes nacionais e internacionais. As peças foram doadas ou emprestadas pelos próprios imigrantes ou por seus descendentes. Apesar de a exposição não se restringir a objetos trazidos da Ásia ou portados por pessoas asiáticas em diferentes períodos de suas vidas, consideramos que algumas das reflexões elaboradas pela equipe do Museu quando de seu lançamento são relevantes para o parágrafo de encerramento de nossa postagem. Gostaríamos de registrar, entretanto, que há outra exposição, organizada e disponibilizada virtualmente pelo Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil, em que se pode conhecer mais sobre a vestimenta específica que dá título ao evento: Quimonos: história visual do Japão.


Quimono Furisode, uma das peças da exibição virtual Quimonos: história visual do Japão. Disponível em: http://www.acervo.sp.gov.br/Quimonos/JP/quimonosJP.html Acesso em: 23/11/2021.

Retomando a discussão proposta pela exposição Da Cabeça aos Pés, em se tratando de processos migratórios – e do que se pode chamar de “patrimônio da migração” –, os objetos guardados e transportados pelos sujeitos que migram podem estar relacionados a identidades culturais que se gostaria de preservar. Este é apenas um dos aspectos a serem observados, no entanto, pois há objetos que atuaram “como receptáculos de vivências passadas, outros demarcaram sua chegada [a de quem migra], sua adaptação a uma nova sociedade” (MUSEU DA IMIGRAÇÃO, 2017). No caso específico das vestimentas e, principalmente, dos acessórios (como anéis, colares, cintos, lenços e chapéus), que podem ser considerados dispensáveis ou substituíveis, podemos perguntar pelos motivos da escolha por levar consigo e guardar uma peça de roupa específica, ou uma joia, por exemplo, em detrimento de outras. Considerações relacionadas à utilidade ou ao valor monetário de algumas vestimentas ou acessórios podem ter sido influentes em alguns casos. Em outros, não podemos ignorar a preponderância de escolhas orientadas pelo afeto, o que nos descortina uma riqueza de possibilidades de (re)construção das memórias de processos de imigração.  

 

Referências bibliográficas e sugestões de leitura

BAILY, C. A. Los orígenes de la swadeshi (industria doméstica): Telas y sociedad [h]indú,1700-1930. In: APPADURAI, A. (Ed.) La vida social de las cosas. Perspectiva cultural de las mercancias. DF México: Grijalbo/Consejo Nacional para la Cultura y las Artes (Conaculta), 1991.

MUSEU DA IMIGRAÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Exposição Da Cabeça aos Pés. 12/01/2017. Disponível em: <https://museudaimigracao.org.br/en/blog/sobre-nossas-exposicoes/exposicao-da-cabeca-aos-pes> Acesso em: 22 nov. 2021.

STALLYBRASS, P. A vida social das coisas: roupa, memória, dor. In: STALLYBRASS, P.; TADEU, T. (Org. e Trad.) O casaco de Marx: roupa, memória, dor. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, p. 14-15.

 

Websites

Museo de la Historia del Traje

Museo Nacional de Arte Oriental

Museu da Imigração do Estado de São Paulo

Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil

 

Mirian Santos Ribeiro de Oliveira, professora de História da Ásia da UNILA.



[1] Agradecemos a Matías Maximiliano Martínez pela indicação desta exposição à equipe do Blog. 

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