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Ruínas do Futuro: a Foz do Iguaçu sonhada e prometida nas páginas da revista Painel

 O arquiteto Grumbach dizia recentemente que a cidade nova que ele gostaria de construir seriam “as ruínas de uma cidade que teria existido antes da cidade nova”. Seriam as ruínas de uma cidade que jamais existiu, os traços de uma memória que não tem lugar próprio. Toda cidade verdadeira corresponde efetivamente a esse projeto.

Michel de Certeau e Luce Giard (1998, p. 201).

 

As palavras do arquiteto francês Antoine Grumbach, citadas pelos historiadores Michel de Certeau e Luce Giard, também franceses, nos inspiram para a série que iniciamos hoje no blog. O que faz parte da história de uma cidade? O que faz parte da história de Foz do Iguaçu? Na série que iniciamos hoje não priorizaremos os “grandes nomes e feitos” de nossa comunidade e de sua história. Eles já estão bastante representados em nomes de ruas, homenagens na Câmara de Vereadores e em livros e documentários sobre a história local. Pelo contrário, buscaremos as ruínas às quais Grumbach se refere. Buscaremos a cidade que foi sonhada e prometida, porém não realizada – ou não realizada conforme as expectativas iniciais. Essa história não é menos real, pois toda cidade é inconclusa. É inconclusa, pois as memórias dessas ruínas não desaparecem, apesar de não terem um “lugar próprio” conforme lembra Grumbach.

As memórias de uma cidade – e de toda coletividade – são como uma árvore no outono. A árvore continua lá, mas as folhas caem, perdendo o elo que ligava umas às outras. O vento bate e distancia as folhas, levando-as para diferentes lados. Porém, por vezes, o vento sopra forte na mesma direção e as folhas se chocam contra os que passam; invadem jardins e casas lembrando a todos que ainda continuam por aí.

As memórias da cidade que foi sonhada e prometida aos iguaçuenses – e às iguaçuenses – são como esse vento forte, pois, às vezes, buscam um “lugar próprio” nas histórias compartilhadas entre os mais velhos; nas histórias que contam aos mais jovens; buscam um “lugar próprio” nas associações de bairro que, a cada eleição municipal, se organizam para tirar eternas promessas do papel; buscam um “lugar próprio” em artistas locais que cantam, pintam e recitam a cidade sonhada e prometida; para parafrasearmos o historiador britânico Peter Burke, buscam um “lugar próprio” no trabalho de historiadores e outros profissionais do passado comprometidos em lembrar aquilo que muitos gostariam que fosse esquecido (BURKE, 2000, p. 89). São ruínas de um futuro que foi e ainda é aguardado. Com a série que iniciamos hoje pretendemos, muito modestamente, buscar mais um “lugar próprio” para algumas das ruínas da cidade sonhada e prometida.

A revista Painel, publicada entre 1973 e 2017 em Foz do Iguaçu, é uma fonte histórica que permite conhecer muitas dessas ruínas. A revista foi uma divulgadora entusiasta de Foz do Iguaçu como destino turístico e deu um espaço grande e frequente aos projetos que prometiam transformar a cidade. Esses projetos não mudariam somente a vida dos moradores, mas também consolidariam o turismo em Foz do Iguaçu. Segundo Aparecida Darc de Souza, mais do que um destino turístico, a revista representa Foz do Iguaçu como uma cidade “vocacionada” ao turismo (2009, p. 78), ou seja, seria algo inevitável e presente em toda a sua história.

Uma breve história da Praça Naipi e a promessa de praças, parques infantis e fontes luminosas por toda Foz do Iguaçu

Começamos essa história das ruínas do futuro de Foz do Iguaçu com uma reportagem de 1998 sobre a inauguração da Praça Naipi, localizada no encontro das avenidas Paraná, Costa e Silva e Argentina, praticamente em frente ao shopping JL Cataratas. A praça é destacada como a “primeira da cidade com fonte luminosa, mural etrusco e palco para apresentações artísticas.” (PAINEL, 1998, p. 3). A obra contemplava ainda “o paisagismo e a iluminação, além de sanitários.” (PAINEL, 1998, p. 3). O então prefeito Harry Daijó “dedicou a praça às crianças” e destacou que o local se encontrava “em pleno corredor turístico”. (PAINEL, 1998, p. 3). O prefeito anunciou ainda um projeto que visava à construção de 50 praças, todas com “parques infantis e 70% com fonte luminosa.” (PAINEL, 1998, p. 3). Assim, a Naipi foi inaugurada como uma espécie de modelo a ser replicado pela cidade. A praça foi inaugurada em junho de 1998 como parte das comemorações pelos 84 anos do município. A inauguração da praça também foi destaque em meios de imprensa de outras localidades, como a Folha de Londrina. (MOURA, 19 jun. 1998).

 

Foto que acompanha a reportagem da Painel sobre a inauguração da Praça Naipi. Fonte da foto: PAINEL, 1998, p. 3

 

Em 2018, quando a inauguração completou 20 anos, o jornalista Jackson Lima escreveu sobre as mudanças sofridas pela praça e a necessidade de uma reforma no local. Uma das principais mudanças foi a desativação da fonte luminosa. “Logo após o fim da gestão Harry Daijó, a fonte ou chafariz foi, pouco a pouco, sendo desligada. Depois ficou abandonada e um dia apareceu “aterrada” (...).” (LIMA, 4 abr. 2018, s./p.).

Reportagem de Jackson Lima mostrou o uso que foi dado à antiga fonte luminosa. Fonte da foto: LIMA, 4. abr. 2018, s./p
 

Não foi a única mudança sofrida pela praça. Hoje os motoristas cruzam diretamente a Avenida República Argentina de ponta a ponta, mas nem sempre foi assim. Antes, parte da praça ficava “no meio” da avenida, o que obrigava os motoristas a realizarem desvios se quisessem prosseguir nela mais adiante. Uma reportagem de 2012 do ClickFoz noticiou que a Avenida República Argentina passaria a cruzar a praça:

 

Para a realização da abertura da avenida República Argentina, será usado um espaço de sete metros de largura da praça, área necessária para fazer o encaixe da pista. Essa intervenção não vai causar nenhum prejuízo ao espaço que continuará contando com bancos de descanso, árvores e sendo local de lazer para os moradores. (CLICKFOZ, 16 mar. 2012, s./p.).

 

A reportagem do ClickFoz defendia que a passagem da Avenida República Argentina pela praça não causaria nenhum prejuízo, apesar de tomar sete metros de largura do local. Contudo, a praça inicialmente “dedicada às crianças” cederia espaço para automóveis. A praça, outrora iluminada pela fonte luminosa, passaria a ser cruzada pelas luzes de carros.

Em 2010, a praça ganhou um memorial em homenagem às vítimas do terrorismo de Estado na América Latina. Trata-se de um pequeno grande monumento. Pequeno por suas dimensões, grande por seu simbolismo. O monumento ostenta um mapa da América Latina e traz uma placa que homenageia, em português e espanhol, as vítimas das ditaduras militares na região. O memorial é grande por seu simbolismo, pois rompe com o nacionalismo que marca os monumentos de nossas praças e ruas ao homenagear as vítimas do terrorismo de Estado de toda América Latina. Além disso, o memorial lembra das vítimas das ditaduras justamente ao lado da Avenida Costa e Silva, sobrenome do segundo presidente militar depois do golpe de 1964 no Brasil. A poucos metros dali também se encontra o 34º Batalhão de Fronteira, um dos espaços da repressão na cidade durante os governos militares. 

Apesar de sua importância e de seu potencial na ressignificação do espaço, é importante esclarecer que, originalmente, esse memorial seria “apenas” a pedra fundamental de um monumento maior, que seria erguido em uma rotatória no encontro das avenidas República Argentina e Paraná. O projeto do memorial contaria com o apoio da Itaipu, Prefeitura Municipal e Secretaria de Direitos Humanos do governo federal. Onze anos depois, as lideranças e entidades locais ligadas aos direitos humanos – como o Centro de Direitos Humanos e Memória Popular – continuam à espera da rotatória e do memorial. Por enquanto, a pedra fundamental se tornou o próprio memorial.

 

Pedra fundamental do projeto de memorial previsto para o encontro das avenidas República Argentina e Paraná. Fonte da foto: NOHAMA, 3 jun. 2015, s./p

 

Em 2019 a Praça passou por reformas. Quem passa pelo local neste novembro de 2021 sente que – mais uma vez – falta manutenção nas reformas realizadas.

A fonte luminosa já não existe – e não chegaram a existir as 35 fontes prometidas para toda a cidade quando a Praça foi inaugurada. O asfaltou cruzou parte do local. A pedra fundamental continua a “olhar” para o cruzamento da Paraná com a República Argentina à espera do memorial inicialmente previsto às vítimas da ditadura. Todo espaço público está sujeito a mudanças e novos usos. Entretanto, esse breve histórico sobre as mudanças sofridas pela Praça Naipi é um exemplo de projetos que continuamente mobilizam a comunidade, mas não têm prosseguimento. Trata-se de uma praça de apenas 23 anos. Mudanças e novos usos não precisam necessariamente levar ao abandono de projetos iniciais. Com criatividade, políticas públicas adequadas e envolvimento da comunidade, todo espaço público comporta diferentes usos e significados.

Por sorte continua ali o mural etrusco que conta a lenda caingangue sobre a origem das Cataratas do Iguaçu e que também dá nome à Praça. Naipi é a jovem indígena que, prometida ao deus M’Boy, foge com o seu amado Tarobá. Enfurecido, o deus teria assumido a forma de serpente e “rasgado” o solo, dando origem às quedas d’água. Se M’Boy se revoltasse contra toda promessa não cumprida, nossa cidade certamente teria muitos outros atrativos.

 

Praticamente toda a coleção da revista Painel está digitalizada e disponibilizada para leitura de qualquer interessado. As instruções para acesso à revista estão disponíveis em <https://unilahistoria.blogspot.com/p/acervo-digitalizado-da-revista-painel.html>.

 

Referências

 

BURKE, Peter. Variedades de História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

CLICKFOZ. Em Foz do Iguaçu, Praça Naipi terá abertura parcial. ClickFoz, Foz do Iguaçu, 16 mar. 2012. Disponível em: <https://www.clickfozdoiguacu.com.br/em-foz-do-iguacu-praca-naipi-tera-abertura-parcial/>. Acesso em: 11 nov. 2021.

DE CERTEAU, Michel; GIARD, Luce. Entremeio. In: DE CERTEAU, Michel; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1998. v. II.

LIMA, Jackson. 20 anos da Praça Naipi: restauração seria um bom presente. H2Foz, Foz do Iguaçu, 4 abr. 2018. Disponível em: <https://www.h2foz.com.br/pontofoz/20-anos-da-praca-naipi-restauracao-seria-um-bom-presente/>. Acesso em: 10 nov. 2021.

MOURA, Lúcio Flávio. Lenda inspira praça com chafariz. Folha de Londrina, Londrina, 19 jun. 1998. Disponível em: <https://www.folhadelondrina.com.br/geral/lenda-inspira-praca-com-chafariz-82270.html>. Acesso em: 10 nov. 2021.

NOHAMA, Norton. Ruas de Foz do Iguaçu farão tributo à liberdade, aos direitos humanos e valores democráticos. Fórum Paranaense de Resgate da Verdade, Memória e Justiça. Disponível em: <http://www.forumverdade.ufpr.br/sobre/parceiros-2/>. Acesso em: 11 nov. 2021.

PAINEL. Festa na Praça Naipi. Painel, Foz do Iguaçu, ano 25, n. 192.

SOUZA, Aparecida Darc de. Formação Econômica e Social de Foz do Iguaçu: um estudo sobre as memórias constitutivas da cidade (1970-2008). 2009. Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo (USP), São Paulo. Disponível em: <https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8137/tde-21102013-162826/publico/2009_AparecidaDarcDeSouza.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2021.

 

Paulo Renato da Silva, professor de História da América Latina da UNILA

 

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