Imagem do videoclipe Eu não sou racista (Nego Max), 2017 |
Na velha Cuba, em algum dia do ano de 1835, o advogado, periodista, crítico e abolicionista (branco) Domingo del Monte (1804-1853) tomara um barco da cidade de Havana para o interior de Matanzas, na tentativa de convencer Juan Francisco Manzano (17xx-185x), um cozinheiro, costureiro, artesão, educador, dramaturgo, poeta improvisador e... escravizado, a escrever a sua autobiografia. O objetivo era que Manzano relatasse ao mundo as atrocidades vivenciadas por ele na sua condição de homem negro em uma sociedade ainda escravocrata, e em troca disso, receber a sua liberdade.
Filho de María del Pilar Manzano, escravizada de “estimación” da Marquesa Justiz de Santa’Ana - posição que a dotou de faculdades especiais em relação às demais negras da fazenda El Molino - Manzano havia aprendido a escrever praticamente sozinho, apesar de muitas vezes ter sido desestimulado por parte dos brancos. A sua Autobiografía de un esclavo, encomendada pelo círculo abolicionista delmontino foi, ao que tudo indica, concluída em meados de 1836, embora o pagamento de quinhentos pesos, por meio do qual seria obtida sua alforria, apenas se concretizasse no ano seguinte. Nela encontramos alguns fragmentos recortados de sua vida, escritos à luz de vela, tarde da noite, quando as atividades do dia já haviam sido concluídas. Quantas injustiças e punições podemos encontrar em seus versos carregados de oralidade? E ainda assim, a pluma de Manzano não se dirigia aos seus semelhantes. Nem também àqueles que podiam compreender as suas dores. Na verdade, nem mesmo ele viveria a ponto de ver o seu texto publicado em sua terra natal, circulando nos periódicos literários do dr. Del Monte. Longe disso, foi mesmo para as mãos dos leitores londrinos, curiosos e interessados de saber sobre a vida no “novo mundo”.
Ocorre que, naquele momento, Manzano não gozava da liberdade de escrever tudo o que pensava - ainda que lhe fosse imputada a demanda de escrever a sua autobiografia. Como poderia ele confiar em um branco estando ainda na condição de escravizado? Não foram poucas as vezes em que o menor dos problemas o levou a receber incontáveis açoites. O que faria aquela situação ser diferente?
O resultado dessas pressões, só percebidas nas entrelinhas do texto, é que o tempo criou um Manzano que hoje é demasiado complexo. Como entender alguém que naquela situação de injúrias e castigos constantes, impelidos por sua senhora, chegaria dizer: “La amaba a pesar de la dureza con que me trataba”?
Mais curioso é o fato de que a segunda parte de sua autobiografia tenha se perdido. O que haveria ocorrido com ela? Há de se notar que no fim da primeira parte paira uma expectativa: o momento em que ele narra o momento de sua fuga para Habana, ponto ápice do texto. Teria a segunda parte de sua autobiografia ter sido suprimida por censura? É talvez o que nos resta perguntar. Muito embora, confessemos, como seria bom que não lhe houvessem amarras, e que pudéssemos hoje conhecê-lo mais profundamente. Imaginamos o que ele diria ao senhor Domingo del Monte se acaso pudesse falar de igual para igual. Porém, sendo essa possibilidade “podada”, quem sabe observar os ecos da escravidão nos dias atuais seja a melhor forma de identificar as estruturas do racismo que ainda permanecem. Geralmente, pensamos no passado para compreender melhor o presente, mas e se fizéssemos ao contrário?
O rap é um
gênero musical muito presente na sociedade latino-americana contemporânea,
que tomou força como um gênero de protesto por parte dos latinos e afroamericanos
de bairros marginalizados de Nova York na década de 1970. Já no Brasil,
assimilado ainda na mesma década, foi ressignificado para atender demandas
de indivíduos em contextos diferenciados daquele de origem. Junto do Break
(dançado pelos b-boy), o Graffiti (arte gráfica realizada em
espaços públicos muitas vezes envolvendo críticas sociais), e o DJ (pessoa
responsável pela mixagem e criação dos arranjos musicais), o rap compreende a
expressão mais ampla que conhecemos por hip-hop. É cantado e interpretado pelos
rappers ao ritmo dos beats, e muitas vezes contam com improvisações
que revelam raciocínios rápidos e assertivos. As gírias, expressões e temas da
realidade local são a sua matéria prima.
A importância desse gênero musical reside, entre outras coisas, em sua
capacidade de harmonizar e ressignificar experiências e saberes populares que
são socialmente marginalizados. É por isso que o Rap deve ser identificado como
uma expressão artística contra hegemônica. Importante dizer que os negros em
outros momentos da história também produziram expressões musicais de
contestação social e racial contendo posicionamentos semelhantes, como
foi o Blues, Jazz, Samba, Reggae, Funk, entre outros.
Sabendo que podemos pensar a escrita e a oralidade negra como forma de entender certas transformações e permanências ao longo da história, decidimos discutir, ainda que a contrapelo, a produção audiovisual brasileira intitulada Eu não sou racista, produzida pelo selo musical DropAllien.
Trata-se de uma composição do rapper rio-voltense Erickson Max Fortes Pereira (vulgo Nego Max), de 29 anos, e que representa o debate racial entre dois homens - um negro e um branco - em uma sala fechada, sentados à mesa. A ambiência que se inicia com o beat dá um toque desconcertante à toda cena. Cria-se um estranhamento, uma tensão que vai sendo envolvida na batida. De repente, o homem branco, loiro, vestindo camisa polo, começa a falar. Poderíamos dizer que o seu discurso expressa duas posições: não existe dívida histórica e a escravidão é algo ultrapassado e imemorial. Em suma, para ele a escravidão não se constitui como um fato do presente pois:
[...] se ela existisse
ainda, 'cês 'tavam passando mal
Já passaram duzentos anos e 'cês ainda tão nessa
Não consegue sair da fossa e diz que a culpa é nossa?
Aliás, culpar os outros é o
que cês mais adora
Culpa o Estado, a Igreja, culpa a polícia e os branco
Branco morre e cês não faz um gesto
Preto morre e cês quer parar o mundo com seus protesto
Eu não sou racista, eu não
Inclusive a empregada e o jardineiro da família são negros
A babá também era, mas foi desligada
Depois que começou a fazer a facul, chegou duas vez atrasada
Olha tamanha irresponsabilidade
Depois quer vim falar de falta de oportunidade?
Engraçado, né? Cês gosta memo' é de pegar atalho
Mas a conquista só vem com o mérito do trabalho
Já o outro personagem, adornado com brincos, piercings e braceletes de metal; com roupas de cores vivas, parece carregar em si diversos traços de ancestralidade. Sua fala contestatória é repleta de argumentos irrefutáveis. É o momento do seu lugar de fala:
Primeiro
que isso não é nenhuma novidade
Que somos humanos, eu sei, explica isso pra sociedade
Mas depois de séculos de atrocidade
Percebi que, na verdade, o homem branco que perdeu a humanidade
[...] Trago marcas profundas na minha memória
Abolição aqui só aconteceu nos livro de história
Nessa conversa só existe dois lados
Um com o passado escravocrata e o outro com o passado escravizado
Polícia brasileira é a que mais mata no mundo
No Brasil morre um preto a cada vinte e três minuto
Agora, sejamos francos
Quantas pessoas cê conhece que morreu só por ser branco?
[...] Você é racista.
No rap escrito e interpretado pelo rapper Nego Max podemos perceber o preconceito do homem branco em relação ao homem negro manifestando-se no próprio modo como o personagem percebe a sua realidade; o seu discurso evidencia o autoritarismo que continua existindo na sociedade, uma sociedade ainda com muitas desigualdades e reparações pendentes. Refletir o nosso presente através dos escritos de Manzano e da composição do rapper Nego Max é reconhecer uma luta pelo sentido que ambos buscam no reconhecimento do passado e da desigualdade social que se mostra no presente, e que pode perdurar no futuro.
Referências:
MANZANO, Juan Francisco. Autobiografía
de un esclavo. Biblioteca Libre Omegaalfa.
2018.
SILVA MIRANDA, Waldilene. Diálogos possíveis: do rap a literatura marginal. Darandina Rev. Eletrônica. Programa de Pós-graduação em Letras (UFJF). Volume 4. Número 1. 2011.
SCATENA FRANCO, Stela Maris. Palavras que libertam. 2021, p. 37-53. In: Utopias latino-americanas: política, sociedade, cultura. (Org.) Maria Lígia Prado. – São Paulo : Contexto. 2021.
Eu não sou racista. Nego Max. Prod. DropAllien. 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=v2DCHWp2XyA
Carol Salluco Tenorio, José Luciano da Costa Júnior e Ulisses Manoel da Silva
(*) Esta postagem originou-se de trabalho para a disciplina "Textos e Imagens na América Latina: grupos sociais marginalizados na produção visual e literária depois das 'Independências'", do Mestrado em Literatura Comparada da UNILA, ministrada pela profa. Rosangela de Jesus Silva.