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Soberania ecológica: reinterpretações de conceitos e práticas sul-asiáticas no século XXI

 

No final da primeira década do século XX, em uma viagem de retorno da Grã-Bretanha à África do Sul, Mohandas K. Gandhi escreveu o livro Hind Swaraj (Autogoverno da Índia). Nesta obra, ele sintetizou algumas de suas principais ideias sobre o tema da liberação da opressão colonial britânica. A noção de autossoberania (swaraj) que ali emergiu, e que inspirou debates e intervenções práticas durante a luta pela independência do subcontinente indiano, envolvia, pelo menos, duas dimensões: a soberania individual (o indivíduo livre da dominação colonial, objetiva e subjetivamente) e a soberania coletiva – comunidades organizadas no interior de um Estado independente. Em termos éticos, o autocontrole (da ambição, do desejo, da agressividade, da competitividade), operado em nível individual, tenderia a promover responsabilidade para com a coletividade que, somente então, poderia se considerar dotada de autossoberania – ou, em outras palavras, capaz de se autogovernar (GANDHI, [1909] 2010).

A formação da república indiana, após a independência, em 1947, colocou o país em uma rota diferente daquela preconizada por Gandhi durante seu período de vida. A Índia independente, sob a liderança de J. Nehru, tornou-se um Estado fortemente centralizado, marcado por políticas de desenvolvimento econômico que, por um lado, ofereceram possibilidades de enfrentamento das desigualdades sociais. Por outro lado, deslocaram a concepção de autossoberania de Gandhi para as margens deste modelo de desenvolvimento sustentado pelas noções de crescimento econômico e de centralização estatal.

Apesar de sua posição marginal, a concepção de swaraj (autossoberania) foi retomada e reinterpretada por ativistas e pesquisadores como Ashish Kothari, nas décadas iniciais do século XXI. Kothari é membro de grupos ambientalistas indianos como o Kalpavriksh e coordenador e participante ativo de redes como Vikalp Sangam (Confluência de Alternativas, em tradução livre), Radical Ecological Democracy (RED, Democracia Ecológica Radical) e do projeto global Academic-Activist Co-production of Knowledge on Environmental Justice (ACKnowl-EJ, Co-produção de Conhecimento Acadêmico-Ativista sobre Justiça Ambiental).

O ambientalista sintetiza a noção de swaraj que o levou ao renovado conceito de Eco-Swaraj (autossoberania ecológica):

Em muitos dos escritos de M. K. Gandhi – em Hind Swaraj, em especial –, ele observou que swaraj compreendia a autonomia e a liberdade humanas, do indivíduo à comunidade, [autossoberania] completamente vinculada à ética da responsabilidade em relação aos outros (incluindo o restante da natureza), a ao aprofundamento espiritual necessário para um comportamento autocontrolado e eticamente justo (KOTHARI, 2018, p. 50, tradução nossa).

Em entrevista ao portal da Deutsche Welle, em sua seção sobre Ideias Globais, Kothari destacou que a soberania coletiva requer o reconhecimento da interdependência entre humanos e não humanos e, portanto, da responsabilidade que, como humanos, temos em relação à nossa espécie e a todas as demais espécies que habitam nosso planeta. O termo Eco-Swaraj é aplicado por ele a várias iniciativas na Índia contemporânea que lidam diretamente com o tema da preservação ambiental. Essas iniciativas podem estar relacionadas à evitação de práticas nocivas ao meio-ambiente (como a mineração e a construção de barragens) ou à promoção de alternativas sustentáveis (ligadas à agricultura, ao tratamento da água e do lixo, à vida animal etc.).


Imagem de uma iniciativa de soberania ecológica em Kerala, estado do Sul da Índia. As iniciativas podem ser conhecidas na página de Vikalp Sangham. Disponível em: https://vikalpsangam.org/article/the-search-for-radical-alternatives-key-elements-and-principles/  Acesso em: 21/02/2022

 

A característica central para que o ecologista considere que uma dessas iniciativas está ligada ao princípio de autossoberania ecológica é o protagonismo de agentes da sociedade civil. São cidadãos – homens e mulheres residentes em diferentes partes do subcontinente indiano – que lideram ações locais de preservação do meio-ambiente e que, desta forma, se engajam em uma forma de “democracia radical”, orientada “de baixo para cima”, de acordo com Kothari (ABRAHAM, 2020). O ecologista acrescenta, em micro-documentário da série Eco India, que a ideia de democracia radical envolve o reconhecimento de que cada indivíduo é relevante e central para os processos de tomada de decisão nos sistemas políticos contemporâneos. Trata-se, neste caso, de problematizar uma concepção liberal de democracia, que limita a participação cidadã aos períodos eleitorais (SURESH e RAGHU, 2020). Eco-Swaraj pode ser entendida, desta forma, como uma reação tanto à centralização estatal característica das décadas de formação da Índia independente como a políticas neoliberais adotadas a partir da década de 1990 (KOTHARI, 2018, p. 50).

A abordagem localizada e liderada por comunidades – que, em muitos casos, são apoiadas por organizações não governamentais – tem uma particularidade considerada importante por especialistas em ecologia: as intervenções são inspiradas e fundamentadas por conhecimentos locais. Isso quer dizer que os saberes de cada uma das comunidades envolvidas podem ser diretamente aplicados ao desafio ambiental em questão. A eficácia dessas iniciativas locais tende a ser maior, uma vez que respeita a biodiversidade. Não bastasse isso, ações de autossoberania ecológica tendem a mobilizar e fortalecer grupos historicamente vulneráveis nesta região do mundo, como mulheres e pessoas sem castas ou de castas baixas (ABRAHAM, 2020). Do ponto de vista ético, Kothari destaca valores que são resgatados e fortalecidos por movimentos ecológicos afins à noção de Eco-Swaraj: solidariedade; cooperação; simplicidade; equilíbrio e irmandade com a natureza; respeito à diversidade (humana e não humana) (SURESH e RAGHU, 2020).


Mapa que detalha iniciativas de autonomia ecológica em várias regiões da Índia. As iniciativas podem ser conhecidas na página de Vikalp Sangham. Disponível em: https://vikalpsangam.org/article/the-search-for-radical-alternatives-key-elements-and-principles/  Acesso em: 21/02/2022

 

O ambientalista afirma que esta concepção de autossoberania ecológica, estreitamente relacionada à participação cidadã ativa em nível local, é um incentivo para que “cada um de nós possa assumir o controle de nossas vidas, com responsabilidade (...) em relação aos outros, como comunidades, como coletividades” (SURESH e RAGHU, 2020, tradução nossa). Esta mensagem é um eco das palavras e ações de Gandhi. Ao afirmar que “Swaraj está na palma de nossas mãos”, o líder indiano reivindicava que atos cotidianos fossem compreendidos e reconhecidos como atos políticos.

Gandhi queria que víssemos a liberdade como algo que está ali e pode ser conquistado no momento presente, por meio de atividades cotidianas que não tinham nada que ver com o Estado – fiando algodão para fazer o próprio tecido, fazendo o próprio sal, cuidando da própria saúde, resolvendo seus próprios conflitos (KHILNANI, 2017, tradução nossa).

 

Referências e sugestões de leitura:

ABRAHAM. M. Gandhi and green democracy: The evolution of eco-Swaraj. Deutsche Welle English, 20.08.2020. Disponível em: https://www.dw.com/en/eco-swaraj-environment-india-democracy-climate-change-agriculture-gandhi/a-54572712 Acesso em: 21 de março de 2022.

GANDHI, M. K. Hind Swaraj: Autogoverno da Índia. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2010.

KHILNANI, S. Gandhi: “In the palms of our hands”. In: KHILNANI, S. Incarnations. India in 50 lives. Penguin Random House India, 2017.

KOTHARI, A. Eco-Swaraj vs. Global Eco-Catastrophe. Asia-Pacific Perspectives. V. 15, N. 2, Spring/Summer 2018, 49-54. Disponível em: http://usfca.edu/center-asia-pacific/perspectives/v15n2/kothari Acesso em: 21 de março de 2022.

SURESH, S.; RAGHU, S. Eco-Swaraj: An old concept for a new green world. Eco India Series. 2020. DW/Scroll India. Disponível em: https://p.dw.com/p/3jHVM Acesso em: 21 de março de 2022.

 

Documentários:

Série Eco India (em inglês): https://www.youtube.com/watch?v=z9Ta3g5V7Vk&list=PLw3TDbfl2YpMSJrPZi0Ipd-WmgcZOVEwu 

 

Mirian Santos Ribeiro de Oliveira, professora de História da Ásia na UNILA.

 

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