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Os muitos futuros do tempo “presentista”

 

Quem ganhará as eleições de 2022, e o que podemos esperar depois delas? Será o metaverso o futuro da internet e do mundo digital? Por quantas décadas mais sobreviverá a espécie humana na Terra, se ações concretas para deter a mudança climática não forem tomadas? Que cotação alcançará o dólar, e em quanto ficará a inflação esse ano? O fim de semana será de calor ou frio?

As sociedades contemporâneas são marcadas por um olhar para o futuro em diferentes esferas, olhar expresso em previsões de curto alcance até previsões para décadas e séculos por vir. No entanto, segundo o historiador francês François Hartog, viveríamos em uma época “presentista”. Para Hartog, essa sensibilidade em relação a nossa experiência de tempo teria substituído o regime moderno de historicidade, marcado pela predominância da orientação para o futuro sobre as demais instâncias do tempo (passado e presente). Hartog debate as reflexões do historiador alemão Reinhardt Koselleck, para o qual o regime moderno, surgido por volta da Revolução Francesa (1789), desbancou uma experiência do tempo que constantemente visava o passado em busca de orientação. Ao se deparar com vivências consideradas inéditas, sem paralelo com o passado (como a própria Revolução Francesa), os sujeitos históricos (no Ocidente, ao menos) teriam restringido o uso do passado como um espaço de experiências, e percebido diante de si um futuro aberto a diferentes possibilidades. Inaugurou-se, assim, um período em que o olhar das sociedades se tornou voltado ao futuro, o espaço de realização de novos projetos de sociedade e de humanidade.

Para Hartog, contudo, essa experiência “futurista” do tempo durou cerca de duzentos anos, de 1789 a 1989. A queda do Muro de Berlim e eventos sucedâneos marcaram, em sua visão, o fim do futuro como instância dominante de nossa experiência do tempo. O fim das alternativas reais (ou realmente existentes) de socialismo, e a percepção do futuro como catástrofe (sobretudo, a perspectiva do fim da vida humana na Terra), teriam encerrado uma época de projetos para o futuro. Por outro lado, o que se seguiu não foi uma volta ao passado como ponto de referência. Continuamos a considerar nossas experiências únicas, sem paralelo na história, sendo inviável um retorno à ideia de uma história “mestra da vida”. Assim, caberia atualmente ao presente a posição de instância temporal organizadora de nossa experiência do tempo: vivemos para o presente - um longo presente.

Entretanto, a experiência moderna do tempo não se afirmou apenas em uma sensibilidade expressa por intelectuais, artistas, políticos, e manifestos e manifestações de diferentes modalidades propondo o futuro como espaço de realização de nossas aspirações, e, por conseguinte, como orientador das nossas ações no presente. Ao longo dos séculos XIX e XX, uma miríade de instituições e práticas integrou ao cotidiano das sociedades globais um pensamento orientado para o futuro. Previsões de diferentes tipos, e diferentes formas de moldar a ação no presente com base em modelos do futuro, passaram a fazer parte do dia a dia das sociedades. Em resumo, a vida cotidiana passou a incluir várias futuridades. Especialmente entre meados do século XIX e meados do século XX, um conjunto de práticas voltadas a diminuir a percepção de incerteza quanto ao futuro e orientar nossa ação presente de acordo tomou forma. A indústria de seguros passou a prever a duração de nossas vidas, e a perspectiva de controlarmos (ainda que minimamente) o que acontecerá com nossos descendentes após nossa morte, ou com nós mesmos em caso de acidente; a meteorologia transformou-se ao longo do século XIX, permitindo que previsões orientassem agricultores a uma colheita mais certa, além da antecipação de fenômenos climáticos potencialmente catastróficos, como temporais e nevascas; a economia passou a se organizar em torno de previsões de ciclos de prosperidade ou baixa; cientistas passaram a modelar cenários futuros do planeta, orientando as ações a serem tomadas na atualidade para a continuidade da vida na Terra; cientistas políticos e institutos de pesquisa passaram a prever resultados de eleições e cenários pós-eleitorais; além das inúmeras outras formas de previsão que incorporamos ao nosso cotidiano, começando pelos horóscopos diários que a imprensa passou a publicar.

O caso da inserção dessas inúmeras futuridades no cotidiano dos EUA foi estudado por Jamie L. Pietruska, em Looking Forward: Prediction and Uncertainty in Modern America (Olhando para Frente: Previsão e Incerteza na América Moderna, 2017). O título do livro faz referência a outra manifestação do olhar para o futuro da modernidade: as utopias. Pietruska inverte o título da utopia best-seller de 1888, Looking Backward (Olhando para trás), de Edward Bellamy. Sua pesquisa delineia como o pensamento orientado para o futuro (“future-oriented thought”) foi se estabelecendo no século XIX, culminando, entre o fim do XIX e início do XX, no refinamento das previsões, concomitantemente à aceitação da incerteza quanto ao futuro. Previsões quanto aos desenvolvimentos da tecnologia, ao clima, à duração da vida das pessoas e as próximas gerações, ao rendimento de investimentos e ao futuro da economia, bem como sobre eventos de vidas pessoais (astrologia e “leitores” do futuro, no geral), tornaram-se características da modernidade, especialmente a partir do século XIX. Uma variada gama de formas de pensar e agir no cotidiano incorporaram o futuro ao dia a dia das pessoas (seja esse futuro o próximo fim de semana, na meteorologia, os próximos anos, nas finanças e economia, ou o tempo de toda uma vida e das próximas gerações, nos cálculos de seguros). Acostumamo-nos, assim, a viver com previsões, com o futuro sempre em nosso horizonte. Como Pietruska expõe, é uma narrativa da crise das certezas, que abre espaço para previsões “profissionais”, ao mesmo tempo que incorpora à vida a inevitabilidade da incerteza quanto ao futuro. As previsões se tornam baseadas em princípios mais rigorosos, mas sob o preço de renunciar à precisão dos prognósticos. A concepção determinista do universo dominante no século XIX cede lugar a uma concepção probabilista. O estudo de Pietruska nos mostra o controverso início do que se tornaria um traço decisivo de nosso cotidiano:

 

A onipresença das previsões e nossa paradoxalmente cética dependência delas tornaram-se um traço comum da vida cotidiana, na medida em que previsões locais, nacionais e globais são transmitidas pelos ciclos de notícias de vinte e quatro horas. Economistas fazem previsões sobre taxas de crescimento e emprego, analistas de mercado preveem a performance de ações para investidores, pesquisas de opinião preveem resultados de eleições com meses e anos de antecedência, e cientistas do clima modelam o sombrio futuro de nosso planeta. Diariamente consultamos previsões e as usamos para tomar decisões. De previsões do clima para os próximos cinco dias a leituras de cartomantes, passando por análises das perspectivas do mercado imobiliário, buscamos e, às vezes, compramos previsões em cuja precisão podemos ter mais ou menos convicção (PIETRUSKA, 2017, posição 252, tradução nossa).

 

No final do século XIX, porém, previsões eram um assunto muito mais polêmico, como aponta a autora. Não obstante, entre 1860 e 1920, segundo a autora, as previsões assumiram esse papel na vida moderna ocidental, inserindo simultaneamente um constante olhar para o futuro e a incerteza com relação à possibilidade de prevê-lo com precisão absoluta. Um processo de modo algum progressivo, marcado por debates e controvérsias, mas que termina por configurar esse traço fundamental do nosso cotidiano. A autora reconhece ainda a existência de outras tradições divinatórias em diferentes épocas e culturas. Aponta também para pesquisas de economia comportamental e psicologia afetiva que contribuem para a visão do ser humano como uma espécie orientada para o futuro (PIETRUSKA, 2017, posição 259).

Um regime de tempo orientado para o futuro (como o moderno, a partir do final do século XVIII) certamente desenvolveria várias maneiras de incorporar essa orientação para o futuro ao cotidiano. A questão que se coloca, em relação ao nosso próprio momento contemporâneo, é: abandonamos de fato a orientação para o futuro, quando permanecemos ainda tão imersos em previsões em nosso cotidiano, e em práticas que têm modelos de futuro como referência? Por certo, François Hartog tinha em mente uma orientação para o futuro mais radical como constituinte da experiência moderna de tempo. Pensava em um tempo dos projetos, das projeções para os próximos séculos e para o destino da humanidade que marcariam o funcionamento de sociedades inteiras, e não em previsões de curto prazo, para os próximos dias, ou anos, no máximo restritas ao tempo de vida dos sujeitos contemporâneos. Porém, as futuridades das previsões vão além do curto prazo. Discute-se as próximas décadas e séculos de vida no planeta, por exemplo, por meio de projeções de quanto devemos reduzir de carbono até determinada data para revertermos os efeitos da mudança climática. (O futuro apocalíptico da mudança climática seria um indício de falta de perspectiva de futuro; no entanto, seu movimento globalmente mais emblemático chama-se justamente Fridays for Future – Sextas pelo Futuro -, liderado por ativistas em grande parte nascidos após 1989, como Greta Thunberg, nascida já no século XXI.) Discutimos o futuro das nossas cidades para os próximos séculos – embora aqui com manifestações presentistas, movimentos interessados em viver já as novas cidades do futuro (como o movimento Gap Filler, da cidade neozelandesa de Christchurch, que cria instalações para vivências urbanas imediatas inspiradas na cidade que desejam para o futuro). A política e a economia continuam também a produzir previsões para orientar a ação atual, mesmo que estas sejam constantemente recebidas com ceticismo. Em relação ao século XIX, e primeira metade do XX, a capacidade de cientistas de construírem modelos de cenários futuros aumentou nas últimas décadas, sobretudo com o avanço da computação. O próprio mundo digital é um caso de constante busca de antecipar o futuro, manifestado atualmente nos debates em torno do “metaverso” como o futuro da vida digital.  Em resumo, continuamos a debater nossas ações e escolhas presentes tendo em vista suas consequências futuras, seja em situações pessoais, ou em escolhas políticas coletivas. O fato de nossas referências ao futuro não mais convergirem para manifestos, projetos e palavras singulares significa efetivamente o fim da perspectiva de futuro na vida contemporânea? Sendo assim, vivemos de fato em um tempo que não tem o futuro como referência? Seríamos de fato “presentistas”, mesmo tão cercados de olhares para o futuro, orientando nossas ações no presente? A resposta certamente não é simples, e a questão aponta menos para uma conclusão categórica, e mais para a perspectiva de que reflexões sobre nossa experiência de tempo têm muito a ganhar com a incorporação de múltiplos aspectos da vida cotidiana impactados por nossas percepções de passado, presente e futuro.

 

Mudanças projetadas nas temperaturas máximas globais em razão do aquecimento global, em gráfico do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês). Disponível em https://www.ipcc.ch/sr15/graphics/#cid_541, acesso em 14/06/2022.

Pensar temporalidades e os regimes de tempo e historicidade é um dos principais temas da teoria da História contemporânea. É também uma de suas principais formas de nos ajudar a pensar a época em que vivemos. Por meio de hipóteses como o presentismo podemos examinar alguns dos parâmetros que motivam os sujeitos históricos contemporâneos, bem como a maneira como suas identidades e posições são forjadas em relação a passados e projetos de futuro. 

 

Referências e sugestões de leitura:

 

HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Tradução de Andréa S. de Menezes, Bruna Breffart, Camila R. Moraes, Maria Cristina de A. Silva e Maria Helena Martins. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

PIETRUSKA, Jamie L. Looking Forward: Prediction and Uncertainty in Modern America. Chicago: Chicago University Press, 2017, edição Kindle.

 

Pedro Afonso Cristovão dos Santos, professor de Teoria e Metodologia da História da UNILA.

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