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Pedra-sabão ou Esteatita: História, viagens e ofícios

 

A prótese dentária é uma profissão ingrata, ele costumava dizer. Os dentistas lidam com os pacientes, enquanto os técnicos - verdadeiros construtores dos dentes - ficam enfurnados em salas pequenas. Em salas empoeiradas e por vezes escuras, com suas mãos calejadas por conta do polimento dos metais, ficam na retaguarda da produção da mercadoria sorriso.

Uma memória preenche minha cabeça sempre que, e mesmo de relance, algo me remete ao ofício dos meus pais. Na praia, por exemplo, nas raras vezes que fomos, eu observava as crianças da minha idade ou mais jovens fazendo castelos de areia com seus pais e mães. A engenhosidade de cada família se expressava na perfeição de uma fortaleza, de uma torre. Assim como as brigas de clãs e nobres famílias da Escócia, as famílias pobres de Guaianases disputavam, exibindo toda sua criatividade e capacidade para a engenharia civil de lazer. Talvez muitos pedreiros estivessem naqueles momentos com seus filhos, e claro, com suas cervejas, construindo um castelo amaldiçoado que pudessem derrubar logo em seguida, sabendo que nunca o poderiam habitar. É por ironia do destino, ou de classe, que os trabalhadores da construção civil a duras penas constroem seus barracos. Como diz aquela canção de Adoniran: “Eu arranjei o meu dinheiro/Trabalhando o ano inteiro/Numa cerâmica/Fabricando potes/E lá no alto da Moóca/Eu comprei um lindo lote dez de frente e dez de fundos/Construí minha maloca/Me disseram que sem planta/Não se pode construir/Mas quem trabalha tudo pode conseguir”.[1]

Ora! Que mais é a cerâmica do que argila? Barro, feldspato, mita e caulim. Esse sim, caulim ou caulino, composto também por areia. Não é com algum apreço pela Mineralogia, pela Engenharia de Materiais ou pela Geologia que faço o comentário. Não! É conhecimento de causa, os protéticos são os pedreiros da prótese, artesãos, maçons[2], quando de fato, não são também pedreiros mesmo, construtores de casas e edifícios, tal como meu pai. Dizem alguns dentistas que, “basta olhar para a mão de um protético para perceber se ele é formado ou se é pedreiro”. Eles falam a verdade, mas não possuem razão!

O meu pai, obstinado com o trabalho, mesmo em seu momento de lazer, esculpia dentes de forma regressiva, após criar um cubo na areia. Com um graveto qualquer, achado na praia, dava forma ao cubo de areia que se transformava aos poucos em um molar, com todos os sulcos, com as arestas bem definidas formadoras das cúspides e até mesmo com o anômalo Tubérculo de Carabelli. Minha mãe ria, sentada sob a sombra do guarda-sol. Eles nunca saíram do Estado de São Paulo e, naquela época, eu também não havia saído. Minha mãe e meus irmãos conhecem apenas a região metropolitana e o litoral próximo a Santos, como boa parte dos trabalhadores da capital. Meu pai apenas conhece outro estado, porque nasceu fora. Embora sejam filhos de retirantes, as raízes já não existem mais, não há passado, não há terra para onde voltar. Somos sujeitos que não tem para onde voltar se a vida na cidade grande não der certo, seres tristes que nascemos e vivemos em meio aos arranha-céus.[3]

Em 2017 fui o primeiro da família a sair do estado e o primeiro a entrar na universidade pública. Conheço agora o Paraná, terra para onde a família de meu pai veio, saindo do norte de Minas Gerais para trabalhar, como sempre, na terra dos outros, na década de 1960. Do Paraná foram para Rondônia, já nos anos 1970, onde nasceu meu pai, e de Rondônia para São Paulo nos anos 1980, onde anos mais tarde, já no fim da década de 1990, eu nasceria. Recentemente conheci Minas Gerais. Passei pelo Sul, fui em direção ao centro, Belo Horizonte, Ouro Preto, Ouro Branco, Congonhas e rumei para o norte, em direção a Teófilo Otoni. Foi uma viagem em certa medida planejada. Estudo o período colonial brasileiro e o escravismo colonial. Motivado pela leitura do livro Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Júnior, me organizei financeiramente, e com a recepção de uma amiga mineira (conhecida na UNILA), consegui passar pelas mesmas cidades que Caio fotografou em 1942 quando preparava a pesquisa para a escrita de seu livro célebre.

O amor pelo Brasil é uma das características de Caio e, também do meu pai. Não como um Major Quaresma[4], personagem quixotesco do também apreciador crítico do Brasil, Lima Barreto. Eles não encucaram com as línguas tupis, não propunham sua adesão como língua oficial do Brasil. Não reivindicavam uma cultura popular idealizada, estática, parada no tempo e engolida pela memória. Mas sim, por um lado, um amor sereno e resignado, pois não havia de ser diferente para quem só conhece essa terra. E, por outro, um amor rebelde, engenhoso, animado, de jovem indignado com as desigualdades e espantado com as potencialidades da gente brasileira, como típico de um jovem aristocrata sensato. Caio Prado Jr. e meu pai apenas tinham de diferente o antagonismo de classe: um era neto de latifundiários escravistas de São Paulo e o outro provavelmente neto de negros forros, cujas gerações anteriores foram raptadas e trazidas para plantações de cana-de-açúcar no Nordeste, e as gerações seguintes, impelidas pelo boom da mineração, se viram obrigadas a migrar para o Sudeste. Cena que se repetiria, mais tarde, com o café de São Paulo para o norte do Paraná. Nas famílias pobres e, sobretudo nas negras, ou de descendência indígena, a colonização e o capitalismo impediram a demarcação da genealogia.

Caio Prado Júnior na década de 1940. Divulgação/Acervo IEB-USP https://oglobo.globo.com/cultura/livros/biografia-de-caio-prado-junior-mostra-lacos-entre-sua-obra-sua-atuacao-politica-19044715  (Acesso em: 23/03/2020).


A viagem para Minas Gerais inaugurava, para mim, uma nova percepção do Brasil e uma nova percepção da gente brasileira. Acostumado a conhecer os lugares por meio de fotos, por meio de textos, por meio de palavras que comportam histórias, normalmente evidentes no vocabulário regional; tão acostumado ademais, com as enciclopédias, as informações sobre densidade populacional, sobre PIB per capita e IDH (curiosidades de criança), além, evidentemente, dos contos e causos familiares. Pela primeira vez visitei pessoalmente um lugar antes visitado pela imaginação, pelas histórias da família ou pelo livro de Caio e por suas fotografias.

Trouxe para casa, como lembrança, uma pedra-sabão, amplamente reconhecida como pedra típica do centro de Minas Gerais. Famosa pelas esculturas de Antônio Francisco Lisboa[5]. Trouxe, sobretudo, para o meu pai. O curioso é que, quando eu a entreguei, ele, um sujeito contraditório, sensível para o trabalho e para as dificuldades da vida, homem negro, retirante, todavia duro e turrão no que diz respeito ao afeto e ao carinho, me disse: “foi pra Minas para me trazer uma pedra? Era melhor ter pegado uma aí, do quintal mesmo”. É certo que a explosão pode ser, por vezes, mais forte que a racionalidade. O corpo pode não responder aos comandos da mente, pode também mentir para o cérebro e nos fazer chorar enquanto lembranças são emitidas rapidamente como um trailer no cinema. Para quem está empolgado com o início do filme parece uma eternidade, mas é só uma fração de segundos comparado a duração e toda a filmagem. Assim que, uma série de memórias da infância me passou pela cabeça quando ouvi isso, as nossas brigas pareciam estar resumidas nessa frase irônica e ao mesmo tempo reveladora da contradição do sujeito simples, porém embrutecido pela vida de trabalho alienado, pelo qual eu mantinha raiva e admiração.

Em Carta ao Pai[6], Franz Kafka relata a relação conflituosa com seu progenitor. A figura severa, rígida, onipotente e onipresente, capaz mesmo de permear os sonhos mais inóspitos do garoto ou as atividades mais displicentes e relaxadas, como um panóptico, atormentava sua personalidade em constantes sabotagens. É assim que faço das palavras do autor, as minhas: “Naturalmente não se podia exigir de você [pai] entusiasmo por qualquer ninharia de criança, vivendo como vivia, cheio de preocupação e trabalho pesado.” Como muitos trabalhadores do mundo, viveu para construir para outros, as mercadorias das quais nunca desfrutou. Se nem Jesus tem dentes no país dos banguelas[7], meu pai, protético de primeira linha, aos 40 anos de idade tinha a face marcada pela desnutrição e pela pobreza de Rondônia. Corintiano, preto, periférico e banguela. Seria comum, perfeitamente trivial, poderíamos lotar estádios com sujeitos como meu pai. O curioso, entretanto, era que aos 40 anos de idade já havia construído centenas de dentes para outras pessoas e nenhum para si. 

Pois bem, eu disse. E por uma semana me mantive imerso, esculpindo a pechinchada pedra trazida de Minas, que imaginei servir à habilidade e destreza das mãos do meu pai. Esculpia uma torre de xadrez, quando obtive mais uma pérola do velho. – O que você está esculpindo, ele perguntou. Uma torre de jogo de xadrez. – Pois não parece, concluiu com arrogância! Era mais uma sabotagem.

Foto tirada em fevereiro de 2019, por Cíntia Renata Souza: Ouro Preto-MG

Naquele momento as lágrimas, que pensei que fossem cair, secaram. Tudo fez sentido para a criança que sou, e para o adulto que era meu pai. Ele também percebeu! Maldita pedra com a qual milhares de escravizados ergueram os também malditos prédios e casarões de Vila Rica. Pedra porosa, sensível à dor e ao sangue desses, antes rebeldes que acomodados. O árduo trabalho escravo que moldou o Brasil colônia, trabalho também escravo do Brasil Império, remodelado e reconfigurado à uma nova ordem. Trabalho livre, como dizem uns e outros, veio apenas no Brasil República. Em termos gerais, trabalho humano. Essa atividade que nos conecta a outras pessoas, sem a qual não se formam as sociedades, pela qual os seres humanos primordialmente interagem entre si e com a natureza, com a terra. Naquele momento, ele soube e eu também. Ele soube que eu não seria protético, nem pedreiro, e eu soube que seria historiador. A torre é a única peça do xadrez formada por pedras, em seu contorno podemos observar as linhas que separam uma da outra, linhas de cimento e cal também provenientes de outras pedras. Mas aquela maldita torre era mais que a representação material, para mim, concretude do jogo e do mundo. Aquela torre era a redenção de meu pai, uma torre de castelo de areia.

 

Foz do Iguaçu, 20 de maio de 2020.

 

Henrique Roberto Figueiredo, historiador formado na UNILA e mestrando em História na PUC-SP.

 



[1] Adoniran Barbosa, nome artístico de João Rubinato, foi um músico, compositor, boêmio, ator e poeta do povo, nascido no estado de São Paulo. A música citada é “Abrigo de vagabundos” do álbum Adoniran Barbosa de 1974.

[2] O termo maçon do francês se refere a construtor, maçonnerie podemos traduzir como alvenaria e maçonne como pedreiro.

[3] Frase dita por Lima Duarte em uma apresentação da música “Princesa do meu lugar” por Belchior: https://www.youtube.com/watch?v=FaY55w6PwRQ (Acesso em: 23/03/2020).

[4] Protagonista do romance Triste fim de Policarpo Quaresmo lançando em 1915 do escritor pré-modernista Lima Barreto, autor negro e marginalizado pela academia brasileira, até meados dos nos 1990. A personagem possui um amor idealista pela pátria, e ao longo do livro recupera símbolos que considera tradicionais, como a língua Tupi e o folclore.

[5] Escultor, arquiteto, entalhador negro que viveu em Minas Gerais no século XVIII, produziu importantes obras do gênero barroco mineiro, conhecido por Aleijadinho.

[6] Carta ao Pai é um livro do escritor tcheco Franz Kafka nunca entregue a seu pai. Foi publicado em 1919 e pode ser considerado como sintetizador da angústia sofrida pelo autor, angústia essa que era motivo de sua escrita. A relação conflituosa com o pai pode ser percebida em outros livros.

[7] Jesus não Tem Dentes no País dos Banguelas é o quarto álbum da banda paulista Titãs, lançado em 1987. 

 


 

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