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O tempo abstrato e matemático na História: eventos antecipados e o tempo regressivo

 

A noção moderna de História está vinculada a uma concepção de tempo linear e progressiva. A sucessão entre passado, presente e futuro, orientada para este último, gerou um regime de tempo considerado “futurista”. As sociedades modernas são marcadas por projeções e expectativas e pela contagem cumulativa do tempo.

Isso não impediu, porém, que perspectivas associadas a uma contagem regressiva do tempo persistissem. Movimentos milenaristas cristãos no Ocidente continuaram a surgir ao longo dos séculos XIX e XX. Nestas perspectivas, a orientação é voltada para um ponto no futuro (por isso, progressiva), mas a experiência do tempo é vivida como uma contagem regressiva, até a chegada da data esperada.

No século XIX, inovações tecnológicas e mudanças de costumes permitiram uma maior exatidão na expectativa de eventos do cotidiano. Para isso contribuíram as comunicações e transportes da era industrial, a partir do telégrafo, das estradas de ferro e da navegação a vapor, associadas às (conflituosas) tentativas de estabelecer um tempo uniforme global (por meio do sistema de fusos horários), padronizando e sincronizando os relógios “úteis” (que marcavam os horários dos trens, por exemplo). Para eventos do cotidiano, o cálculo matemático (quase) preciso da hora da chegada de um trem ou de um navio criou a possibilidade de uma experiência do tempo regressiva, vivida pelas horas e minutos que faltam para o acontecimento marcado.

A historiadora Vanessa Ogle mostrou como a disseminação desse tempo matemático, abstrato e artificial (desconectado das referências naturais do tempo, como a posição do Sol) foi um processo difícil e complexo, marcado por muitas dinâmicas locais. Grosso modo, deu-se globalmente entre 1850 e 1950; a era das ferrovias e do telégrafo, no século XIX, marcou o início da pressão por um tempo uniforme, que se concretiza, como o conhecemos hoje, com a era da aviação, após a Segunda Guerra Mundial. Em paralelo, cientistas e governos debateram a implementação de zonas horárias uniformes, que pudessem ser comparadas, permitindo o cálculo das horas em qualquer parte do mundo em determinado instante: os fusos horários. Este foi um processo igualmente conflituoso, uma história global marcada por interesses nacionais e locais. Em 1884, em uma conferência em Washington, nos EUA, representantes de vários países escolheram o Meridiano de Greenwich, na Inglaterra, como ponto zero do cálculo das longitudes. O horário oficial do Observatório Astronômico de Greenwich tornou-se, então, o fuso horário de base para cálculo dos demais (como permanece até hoje). A conferência de 1884 não significou, no entanto, a aceitação imediata do horário de Greenwich como base. De modo geral, apenas nas primeiras décadas do século XX o horário alcançou aceitação global. Sua adoção deu-se em função de necessidades e interesses locais, combinadas a rivalidades nacionais. Países como a França, por exemplo, se recusavam a aceitar a hora “britânica” como base mundial. Isso fez com que, durante várias décadas, localidades pelo mundo permanecessem com várias horas diferentes em uso.

 

Tabela de horários de trens de ferrovias brasileiras de 1917. Periódico O Excursionista. Horario Official das E. de Ferro Brazileiras. Digitalizado pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=24897, acesso em 20/07/2022) 

Capa d’O Excursionista, de setembro de 1917


O Brasil é um exemplo destas disputas e indefinições. Politicamente próximo da França, e em conflito com a Grã-Bretanha em função do tráfico de escravizados, a delegação brasileira foi uma das duas únicas a votar contra a adoção do meridiano de Greenwich na conferência de 1884. (Vale acrescentar que sequer a própria França votou contra o meridiano, optando pela abstenção – a França adotaria Greenwich apenas na década de 1910.) Até o início do século XX, algumas localidades brasileiras conviviam com diferentes “fusos horários”, às vezes dentro de uma mesma cidade. Na cidade de Santos, por exemplo, sede do importante porto, as ferrovias usavam a hora do Rio de Janeiro como referência, enquanto a administração local usava a hora da cidade de São Paulo (capital da província), além da população seguir usando a própria hora local de Santos. (As horas locais eram geralmente determinadas pelo momento em que o Sol, em cada cidade, atingia a posição do meio-dia em um relógio de sol, sua altura máxima, ou, o chamado “tempo solar verdadeiro”. Por esse ângulo ser diferente para cada localidade, como nos explica esta página do Departamento de Astronomia da UFRGS, mesmo municípios próximos poderiam ter horas diferentes.) Três diferentes fusos horários, pois, conviviam em uma mesma cidade, Santos, dependendo do propósito. O Brasil viria a adotar o meridiano de Greenwich somente em 1914, dividindo o país inicialmente em quatro diferentes zonas, a partir do ponto zero determinado pela hora do observatório britânico (OGLE, 2015, posição 247). 

Ao mostrar o quão problemática e difícil foi a adoção e disseminação desse tempo abstrato do relógio, Ogle problematizou a célebre interpretação do historiador britânico E. P. Thompson sobre a imposição do tempo do relógio, das fábricas, da produção industrial, ao tempo natural e comunitário dos trabalhadores. Thompson defendeu, em “Tempo, disciplina de trabalho e o capitalismo industrial”, texto incluído na coletânea Costumes em Comum (1998), que este processo de imposição do tempo do relógio sobre o tempo comunitário deu-se com a Revolução Industrial, a partir do fim do século XVIII. Vanessa Ogle mostra, porém, que ainda no início do século XX não é possível dizer que tal forma de conceber o tempo estivesse globalmente aceita e difundida. Pelo contrário, é entre o fim do século XIX, e o pós-Segunda Guerra Mundial, que a transformação de fato ocorre. Para ela, concorreram não apenas a imposição de uma disciplina capitalista do trabalho, mas também diversos fatores de ordem global, nacional e local, inclusive interações entre agentes imperialistas e sujeitos colonizados.

A partir da adoção global de um tempo abstrato, matemático, eventos cotidianos puderam ter seus horários sincronizados e acompanhados em qualquer parte do mundo. Disso decorreu uma sensibilidade de tempo específica, aquela da experiência sincrônica do tempo, mas também um tipo de tempo vivido regressivamente, o tempo da expectativa de realização de um acontecimento (como os dias e horas que faltam para o início de uma Copa de Mundo de futebol, por exemplo, sempre marcados pela imprensa nos anos de Copa). Por certo, em outras épocas havia a expectativa quanto à ocorrência de um evento; por exemplo, a expectativa do retorno de um navio, em outros séculos. O desenvolvimento dos meios de transporte e das comunicações, porém, e a adoção de um tempo matemático, tornaram, a partir do século XIX, essa experiência passível de controle e precisão maiores.

Um caso histórico da expectativa gerada pelos horários “precisos” (até certo ponto) dos trens é a famosa chegada de Vladimir Lênin (1870-1924) à estação Finlândia, em 16 de abril de 1917. Lênin e outros revolucionários russos exilados embarcaram em um trem alemão que partiu de Zurique, na Suíça, às 3h10 da tarde de 9 de abril de 1917. Chegaram na estação Finlândia, em São Petersburgo, às 11h00 da noite do dia 16 de abril, onde foram recebidos por uma multidão entusiasmada, e preparada, com banda de música e outros arranjos para receber o líder, a caminho com precisão germânica (embora Alemanha e Rússia fossem rivais na Grande Guerra que se desenrolava então, foi do interesse dos alemães facilitar a ação dos bolcheviques, com vistas a acelerar a derrocada do regime czarista). Lênin, ali, proferiu um de seus mais famosos discursos.

Estátua de Lênin em frente à Estação Finlândia, em São Petersburgo. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Statue_of_Lenin_at_Finland_Station#/media/File:LENIN_-_panoramio.jpg, acesso em 05/07/2022
 

Acontecimentos marcados para ocorrer também passaram a ter no tempo matemático do relógio seu marco, e nos fusos horários a possibilidade de seu acompanhamento de forma “sincrônica”. A independência da Índia em relação ao Império Britânico, por exemplo, combinada com sua divisão em dois estados nacionais distintos (Índia e Paquistão), foi estabelecida para ter validade a partir das 00h00 do dia 15 de agosto de 1947. Os 75 anos deste evento comemorados neste 2022 podem ser marcados, pois, com precisão absoluta. Assim, na véspera do dia estabelecido, o líder da luta pela Independência indiana Jawaharlal Nehru (1889-1964), futuro primeiro-ministro da Índia independente, pôde antecipar com precisão, em seu famoso discurso de 14 de agosto de 1947: “No toque da meia-noite, quando o mundo dorme, a Índia acordará para a vida e a liberdade” (“At the stroke of the midnight hour, when the world sleeps, India will awake to life and freedom”, https://sourcebooks.fordham.edu/mod/1947nehru1.asp, tradução nossa, acesso em 04/07/2022). Apenas o tempo matemático do relógio, e a possibilidade de sua tradução para o horário de qualquer lugar no mundo, através do estabelecimento dos fusos horários globais, garantiu plenamente essa sensibilidade em relação ao tempo e à sincronicidade. Garantiu, também, a possibilidade do tempo regressivo, do evento antecipado.

Em nenhum outro tipo de evento isso é tão forte como nas viagens espaciais. Trataremos destes eventos de tempo matemático em nossa próxima postagem de Teoria da História no Blog. Nela, veremos ainda que a noção de “presente” e a possibilidade de acompanhar um evento “simultaneamente” se tornam muito mais complexas quando os eventos passam a ocorrer no espaço sideral.

 

Referências:

 

OGLE, Vanessa. The Global Transformation of Time 1870-1950. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2015, Edição kindle.

THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.


Adendo à postagem original (incluído em 25/08/2022): Para saber mais sobre a implementação da Hora Legal no Brasil, recomendamos o ótimo texto da historiadora Sabina Luz (UNIRIO), "Observatórios, Hora e Fusos Horários: Tempo e Ciência nos periódicos na Primeira República do Brasil", publicado na página da Biblioteca Nacional: http://bndigital.bn.gov.br/dossies/historia-da-ciencia/observatorios-hora-e-fusos-horarios-tempo-e-ciencia-nos-periodicos-da-primeira-republica-do-brasil/, último acesso em 25/08/2022.


Pedro Afonso Cristovão dos Santos, professor de Teoria e Metodologia da História da UNILA

 


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