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Existe um “agora”? O tempo abstrato na literatura, física e história

Em nossa última postagem de Teoria da História no Blog de História da UNILA, discutimos como a adoção em escala global de um tempo abstrato, matemático, possibilitou a emergência de um tipo de evento cotidiano passível de antecipação. Concomitantemente, a adoção dos fusos horários globais permitiu a sensação de sincronicidade, de podermos saber o que ocorre simultaneamente em diferentes partes do globo. Concluímos apontando que as viagens espaciais, por dependerem de precisão matemática e serem acompanhadas simultaneamente por bases localizadas na Terra, epitomizavam singularmente esse novo evento produzido pelo tempo matemático, o evento desenrolado regressivamente e acompanhado sincronicamente. No entanto, é justamente em escala espacial que a noção de “presente”, de um “agora” comum e compartilhado, se torna mais problemática, como veremos na postagem de hoje.

 

As expedições espaciais dependem de precisão matemática para que as espaçonaves atinjam a órbita dos corpos celestes em momentos específicos, acionem os propulsores em momentos precisos e, especialmente, retornem à atmosfera de forma calculada. Inaugura-se, desse modo, um tipo distinto de acontecimento, definido pela expectativa de seu ocorrer em um momento preciso, que pode ser aguardado com a precisão de segundos. O romance Vento da Lua (El viento de la luna, 2006) do autor espanhol Antonio Muñoz Molina, retrata a expectativa de um garoto de treze anos acompanhando a viagem da Apollo 11, que levaria os primeiros astronautas a pisarem a superfície lunar. Na cidade fictícia de Mágina, na Andaluzia, o garoto divide seu tempo entre a escola e os afazeres familiares no campo e as notícias sobre o trajeto da Apollo 11.

Durante o período da ditadura franquista na Espanha, o protagonista contrasta o tempo da expedição espacial ao tempo quase imóvel e repetitivo da rotina da família horticultora. Nesse tempo da vida local, marcado pelos ciclos da natureza, a perspectiva para o futuro era reproduzir o passado:

 

O máximo que pedem do futuro é que se pareça com o melhor do passado. O chumbo do passado é a força da gravidade que rege suas vidas e as mantém atadas à terra, sobre a qual se abaixaram para trabalhar desde crianças; para cavá-la com suas enxadas, para semeá-la, para ceifar com foices de folha curva e dentada os talos altos do trigo, da cevada e do milho, para arrancar os pés secos e ásperos do grão-de-bico, para desmanchar seus torrões procurando as batatas e as batatas-doces, os rabanetes vermelhos, a brancura esférica das cebolas, para apanhar as azeitonas (MUÑOZ MOLINA, 2009, p. 100).

 

O protagonista, comparando o tempo vivido na cidade com o tempo matemático da viagem espacial, assinala a diferença fundamental: o tempo abstrato tem um ritmo incondicional: “Ainda falta muito tempo: um tempo longo, demorado, quase imóvel, como o do meu preguiçoso despertar, não o tempo sincopado e matemático que os computadores marcam na base de Houston e nos painéis de comando da nave Apollo” (MUÑOZ MOLINA, 2009, p. 124, grifo nosso). As notícias de jornal e as reportagens no rádio permitem ao garoto protagonista participar da precisão matemática do evento, intercalado a seu cotidiano:

 

Justo neste instante, às dezoito horas e vinte e dois minutos (...) uma labareda vermelha explodiu na face oculta da lua. (...) O propulsor principal da nave Columbia foi acionado para situá-la numa órbita elíptica. Os astronautas penetram numa escuridão que nunca antes o olho humano tentou atravessar, e durante os próximos quarenta e oito minutos permanecerão isolados de toda a comunicação com a Terra, navegando por essa região de sombra aonde os sinais de rádio não chegam. (...) Dentro de menos de vinte e quatro horas o módulo lunar Eagle se separará do módulo de comando Columbia, desdobrará suas pernas articuladas e ligará seus motores para empreender uma descida de cem quilômetros até um ponto situado no Mar da Tranquilidade. Sós dois dos três astronautas realizarão esse trecho da viagem. O terceiro, Michael Collins, permanecerá sozinho no módulo de comando, desde a tarde de domingo até a de segunda-feira, girando em volta da lua, quase trinta horas nesse tempo insone sem noites nem dias medido pelo relógio do painel de comando. (...).

Às 22h44 desta noite, o propulsor voltará a ligar-se automaticamente para a nave entrar em uma órbita circular, a cem quilômetros de altura (MUÑOZ MOLINA, 2009, p. 182-183).

 

O evento permite precisão na sua cronologia (“Justo neste instante, às dezoito horas e vinte e dois minutos”; “Às 22h44 desta noite”). Ao mesmo tempo, o garoto pode acompanhá-lo ao traduzir para seu fuso horário a hora vivida pelos astronautas no espaço. Dada a necessidade de precisão nos movimentos da nave, que deve atingir pontos específicos em instantes específicos, é possível saber o que acontecerá, e qual duração de cada estágio da aventura (“Dentro de menos de vinte e quatro horas”; “desde a tarde de domingo até a de segunda-feira, girando em volta da lua, quase trinta horas nesse tempo insone sem noites nem dias medido pelo relógio do painel de comando”). Acontecimentos que ainda não ocorreram, mas que devem ocorrer nesses momentos precisos e ter essas durações estimadas. Naturalmente, acidentes são possíveis. Mas a viagem depende, como poucos outros acontecimentos antes na história, da possibilidade de ser matematicamente planejada, o que garante poder ser também antecipada com razoável precisão.

 

Panorama da superfície da Lua após o pouso da Apollo 11, na região do Mar da Tranquilidade. O panorama foi produzido a partir de imagens feitas pelo astronauta Neil Armstrong.

A sensação de sincronicidade, de que estamos vivendo acontecimentos simultâneos, tornou-se palpável com o cálculo dos fusos horários, através da possibilidade de medir a hora exata em outro ponto do espaço. Do ponto de vista da Física, porém, a ideia de “presente”, de que compartilhamos um mesmo momento no tempo, um “agora”, e de que sabemos o que outros fazem “ao mesmo tempo que nós”, é bem restrita – praticamente inexistente. O físico Carlo Rovelli considera esta uma das descobertas mais impressionantes da física moderna: a inexistência de um “agora” compartilhado. Conseguimos saber o que acontece “agora”, se esse agora diz respeito a algo que ocorre próximo a nós, uma informação que chega a frações de segundos até nós (nanossegundos, ou bilionésimos de segundos). Por isso, explica Rovelli, “A noção de ‘presente’ diz respeito às coisas próximas, não às distantes”.

 

Nosso “presente” não se estende a todo universo. É como uma bolha perto de nós.

Qual a extensão dessa bolha? Depende da precisão com que determinamos o tempo. Se é de nanossegundos, o presente é definido apenas por poucos metros; se é de milissegundos, o presente é definido por quilômetros. Nós humanos distinguimos, quando muito, os décimos de segundo, e podemos tranquilamente considerar todo o planeta Terra como uma única bolha, onde nos referimos ao presente como um instante comum a todos nós. Não passa disso (ROVELLI, 2018, p. 41).

 

A descoberta, parte da revolução einsteiniana da física contemporânea, nos indica que saber o que astronautas fazem no espaço “ao mesmo tempo” em que fazemos algo na Terra, como no romance Vento da Lua, é um exercício abstrato: os dois espaços não compartilham de um mesmo presente. Curiosamente, as proposições de Albert Einstein a respeito da relatividade de tempo-espaço surgem no mesmo período em que, globalmente, o mundo começa a implementar um tempo absoluto, matemático, para fins funcionais – o período entre o final do século XIX e o início do século XX. As descobertas da física referentes a nossas noções de passado, presente e futuro têm muito a contribuir para os debates em teoria da História sobre esses temas.

Um aspecto notável do romance Vento da Lua é como Muñoz Molina mescla o tempo “sincopado e matemático” das naves e painéis de controle e o tempo cotidiano a vida dos horticultores em Mágina:

 

Quando forem duas e meia da tarde a Apollo 8 terá decolado de Cabo Kennedy queimando duas mil toneladas de combustível nos quatro primeiros segundos da ignição; quando der cinco horas, minha mãe, meu avô e eu estivermos voltando para Mágina pelos caminhos novamente tomados de gente, juntando à exaustão da jornada o cansaço da caminhada de regresso, os motores da última fase do foguete estarão lançando novas chamas para atingir a velocidade de escape da órbita terrestre (MUÑOZ MOLINA, 2009, p. 234).

 

O tempo calculado, antecipado, que pode ser previsto e acompanhado regressivamente, aponta para eventos previsíveis, programados; mas eventos novos, inéditos, que levam o ser humano a espaços nunca antes visitados. Já o tempo de Mágina é marcado pela “consciência de que amanhã toca levantar de novo ainda de noite e atravessar um dia idêntico ao de hoje, e ao de depois de amanhã, ordenados numa sucessão tão monótona quando dos renques de oliveira” (MUÑOZ MOLINA, 2009, p. 234).

Reflexões da física e da literatura podem ajudar a história a elaborar um tema fundamental para si: a pluralidade do tempo. O tempo do cotidiano, o tempo da precisão matemática, o tempo das novas tecnologias e o das práticas seculares, o tempo vivido de forma conjunta e sincrônica, o tempo dos seres humanos e o tempo do universo. A interação e coexistência de temporalidades é um dos pontos que mais merecem atenção dxs historiadores, e diferentes fontes podem nos ajudar a pensá-lo de novos ângulos.

 

Referências:

 

MUÑOZ MOLINA, Antonio. Vento da Lua. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

ROVELLI, Carlo. A ordem do tempo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.

 

Sobre a imagem: Extraída da “Astronomy Picture of the Day”, publicada pela Agência Espacial Norte-Americana (NASA) em 23 de julho de 2022. Acompanha a imagem uma explicação de autoria de Robert Nemiroff e Jerry Bonnell.

 

Pedro Afonso Cristovão dos Santos, professor de Teoria e Metodologia da História da UNILA.


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