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Relembrando o Manifesto Ecológico Brasileiro (1976): o tempo da ação ecológica e a crítica ao crescimento econômico

 

Ontem, dia 5 de setembro, foi celebrado o Dia da Amazônia, em referência à data em que o imperador D. Pedro II sancionou a criação da Província do Amazonas, em 1850. Passados mais de 170 anos da data, esta assumiu uma conotação diversa. Atualmente, o Dia da Amazônia é uma data de luta pela preservação da floresta e de seus povos originários, relevante em escala global pelo impacto planetário que a região possui na era da mudança climática. No mês passado, os países cujos territórios compartilham o bioma reuniram-se em Belém do Pará para a Cúpula da Amazônia, entre os dias 8 e 9 de agosto. Uma agenda comum de defesa do bioma foi construída, sem consenso, porém, quanto a pontos polêmicos, como o veto à exploração de petróleo na região, defendido pelo presidente da Colômbia, Gustavo Petro, mas que não encontrou unanimidade, proibição defendida por organizações como o Observatório do Clima. O tom entre muitos políticos da região ainda contrapõe a preservação da floresta ao desenvolvimento econômico.

 

Livros sobre a Amazônia à disposição na Biblioteca Pública do Paraná, em Curitiba. Foto do autor, 05/09/2023.

Dentro do nosso Blog de História da UNILA, recuperamos arquivos e acervos cuja releitura possa realizar uma das principais potencialidades do estudo da história para a ação contemporânea: a visão de diferentes alternativas a formas de pensar e agir que possam parecer inevitáveis. Enxergar outras formas de conceber um problema, e conhecer sujeitos históricos que trabalhavam com perspectivas alternativas têm o potencial de nos fazer conceber outros mundos possíveis. Muitas vezes, esse exercício nos faz recuar no tempo concepções que julgaríamos, à primeira vista, recentes. O documento que recuperamos hoje, em referência ao Dia da Amazônia, é Fim do Futuro? Manifesto Ecológico Brasileiro, de José A. Lutzenberger, apresentado em 1976 e publicado em livro em 1978, pela editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (então URGS).

 José A. Lutzenberger (1926-2002), nascido em Porto Alegre, foi engenheiro agrônomo de formação, trabalhando por vários anos em uma das maiores empresas de química agrícola do mundo, a alemã BASF. Em 1970, Lutzenberger desligou-se da BASF por discordar das práticas da empresa, a partir de sua visão da ecologia. Passou, então, à militância em defesa do meio ambiente, criando a AGAPAN (Associação Gaúcha de Proteção Ambiental) e, em 1987, a Fundação Gaia. Foi palestrante e consultor e, entre 1990 e 1992, secretário especial do Meio Ambiente em Brasília, durante o governo Collor. Teve, dentre seus focos, a defesa do bioma amazônico.

 

Mural em homenagem a José A. Lutzenberger em Porto Alegre. Imagem disponível em https://bancodeimagens.portoalegre.rs.gov.br/imagem/101429, acesso em 05/09/2023


Em 1976 Lutzenberger lançou o Manifesto Ecológico Brasileiro, em evento em Cotia (SP). Para entender o contexto do manifesto, e do pensamento de José Lutzenberger, no geral, recomendamos a leitura do excelente estudo de Elenita Malta Pereira, a tese de doutoramento A ética do convívio ecossustentável: Uma biografia de José Lutzenberger (PEREIRA, 2016). Elenita Malta Pereira contextualiza o manifesto, mostrando seu lançamento no conjunto de outros manifestos ecológicos nos anos 1970, bem como de outros documentos e iniciativas que questionavam a lógica do modo de vida contemporâneo e das premissas do crescimento econômico, indicando seus efeitos nefastos sobre o futuro do planeta. Manifestos ecológicos na Alemanha, França, Inglaterra e EUA haviam sido lançados, inspirando Lutzenberger a pensar num manifesto brasileiro (PEREIRA, 2016, p. 141-142). Além disso, questionamentos à concepção de crescimento econômico também surgiam naquele momento, como no manifesto Limites do Crescimento (The Limits of Growth, 1972). Este último surgiu como resultado de pesquisa do Massachusetts Institute of Technology (MIT), a pedido do Clube de Roma, organização criada no final dos anos 1960 e dedicada a pensar os efeitos do pensamento econômico e político de curto prazo sobre o planeta (PEREIRA, 2016, p. 142). É nesse contexto que podemos entender algumas das formulações mais incisivas do Manifesto Ecológico Brasileiro, questionando a lógica econômica centrada no crescimento:

 

Como índice de progresso calcula-se o “Produto Nacional Bruto” [atualmente utiliza-se o Produto Interno Bruto como medida preferencial da produção de um país]. Mas o PNB não passa de uma indicação do fluxo do dinheiro ou do movimento unidirecional dos materiais que este dinheiro movimenta. No cálculo do PNB nada se desconta. Não é descontada a descapitalização da Ecosfera. Ali não se debita o esgotamento da mina, o desaparecimento dos peixes no rio e nos oceanos, a perda do ar puro, os custos sociais. Mas, a descapitalização da Ecosfera é uma descapitalização real, tão real quanto o empobrecimento de quem esbanja, despreocupadamente, seu capital monetário. O PNB é a soma aritmética do valor monetário das transações entre humanos, nada mais. O preço da madeira no mercado interno e as divisas de sua exportação são adicionadas sem que haja nenhum desconto pela descapitalização na floresta. Se, depois da exploração da madeira sobra um deserto, o PNB não leva em conta este fato. Ele apenas registra “criação de riqueza”. Assim, a pessoa que mais dinheiro esbanja em futilidades, que mais materiais movimenta, que mais impacto ambiental negativo causa, contribui mais para o incremento do PNB que a pessoa frugal, que dedica suas energias ao estudo e ao deleite espiritual, ao avanço da ciência, das artes, da harmonia social. Quando a saúde pública chegar a decair drasticamente em consequência da contaminação ambiental e desestruturação social, o PNB crescerá na mesma proporção que os gastos com remédios, médico, psiquiatra, hospital e funerária. De fato, o PNB é proporcional à descapitalização da Ecosfera. Longe de ser um índice de progresso real, o PNB é medida de autodestruição (LUTZENBERGER, 1978, p. 15).

 

Estas concepções desenvolvimentistas são muito recentes, surgiram após a guerra de 1939-45, mas decorrem do dogma fundamental que postula a necessidade do “crescimento” ilimitado. Produção, consumo e população não podem parar de crescer. Queremos consumo material individual crescente para uma população igualmente crescente. “Progresso”, nestes termos, implica a substituição gradativa e mesmo na substituição total da Ecosfera pela Tecnosfera, isto é, a substituição de tudo que é natural por algo de artificial. Enquanto durarem estas concepções não poremos fim à demolição da primeira na ânsia de construir a segunda (LUTZENBERGER, 1978, p. 17).

 

Conforme explica o autor, a Ecosfera é “uma unidade funcional em que cada peça tem sua função específica, complementar de todas as demais. As espécies são no contexto da Ecosfera o que são os órgãos no organismo” (LUTZENBERGER, 1978, p. 12, grifos no original). Em contraposição à concepção de crescimento, Lutzenberger defende a ideia de equilíbrio (homeostase, no caso dos sistemas ecológicos). Dessa maneira, as necessidades humanas estariam satisfeitas (para todos, e não apenas para uma minoria), sem a destruição do planeta.

 

Fotografia de Wank Carmo, parte da exposição "Último Jardim", exibida no Sesc Mecejana, Boa Vista (Roraima). Para conhecer mais sobre o fotógrafo e a exposição, recomendamos a reportagem da página Amazônia Real: https://amazoniareal.com.br/exposicao-mostra-abraco-de-wank-carmo-com-a-floresta/, acesso em 06/09/2023

 

Para xs historiadores, o Manifesto Ecológico Brasileiro guarda uma importância já revelada no título, a pergunta “Fim do Futuro?” O manifesto participa de uma concepção de temporalidade histórica a se acentuar nas décadas seguintes dentro do pensamento ecológico, sendo hoje uma de suas características mais notáveis. Essa temporalidade indica o momento presente como decisivo para o futuro da vida humana no planeta Terra, apontando efeitos visíveis nas próximas décadas caso ações concretas não sejam tomadas. É a concepção de tempo que baseia o senso de urgência em ações de organizações como a Fridays for Future. O argumento baseia-se numa divisão da história da humanidade que leva em conta a relação do homem com o planeta. Pela maior parte dessa história, essa relação manteve-se em equilíbrio, sendo que o modo de vida de povos originários por todo o mundo ainda se caracteriza por esse equilíbrio. A Revolução Industrial trouxe, porém, um desequilíbrio que fez com que o homem, em um espaço relativamente curto de tempo, comprometesse suas condições de vida no planeta, adotando um modo de vida cada vez mais destrutivo. Viveríamos, assim, em um presente curto, um intervalo breve de tempo no qual ações drásticas precisariam ser tomadas para reverter esse quadro, com consequências previsíveis para os próximos séculos, senão milênios. Para Elenita Malta Pereira, a concepção de tempo do Manifesto é orientada pelo passado, lugar de práticas relativas à natureza voltadas para o equilíbrio, e não para a destruição do sistema, uma inspiração para o modo de vida que deveríamos adotar (PEREIRA, 2012). Acrescentaríamos a esta interpretação o quanto a temporalidade do pensamento ecológico contemporâneo se mostra complexa: ao mesmo tempo em que o passado é fonte de inspiração, o presente é o momento decisivo, no qual a ação deve necessariamente ocorrer. Ainda assim, é um presentismo marcado por futurismos: orienta-se por um olhar para o futuro (catastrófico) e por tecnologias de previsão desse futuro que dão fundamento aos diagnósticos de destruição do planeta e tornam reais as ameaças à vida humana na Terra (discutimos no Blog como o presentismo atual ainda é marcado por um olhar para o futuro marcado por nossas capacidades de prever e modelar as próximas décadas; ver aqui a postagem).

Aurelio Peccei, um dos idealizadores do Clube de Roma, escreveria, ao lado do pensador budista Daisaku Ikeda, o livro Antes que seja tarde demais (1984), outro documento do período que, já em seu título, revela essa temporalidade simultaneamente urgente e futurista. No livro, Peccei e Ikeda tocam em questões que hoje preocupam historiadores e teóricos da História, como o planeta como categoria histórica (ver CHAKRABARTY, 2020) e a necessidade de uma escala temporal maior para se pensar historicamente o planeta:

 

Nossa perspectiva deve ser não só planetária em termos de escala espacial, mas também muito ampla em termos de escala temporal. A posição dominante que nossa espécie ganhou na Terra é o resultado de um perseverante processo de multiplicação, conquista e colonização, conduzido por nossos ancestrais ao longo de incontáveis gerações e agora levado a um novo clímax por nós. Para imaginar o futuro como decorrência do presente, precisamos entender como nossa situação veio a diferir de situações do passado e conscientizar-nos de que as diferenças futuras, que serão provavelmente ainda maiores, serão mais qualitativas do que quantitativas (PECCEI; IKEDA, 1984, p. 15).

 

Documentos como o Manifesto Ecológico Brasileiro nos permitem traçar a história dessa concepção de tempo, fundamental para compreendermos a ação política atual e as mudanças que a questão climática impõe ao pensamento histórico da nossa época. Assim se expressa José A. Lutzenberger no Manifesto:

 

A alternativa que a Humanidade hoje enfrenta é implacável. Podemos decidir-nos pela não tomada de posição. Deixaremos, então, curso livre às tendências atuais. Continuará, por mais algum tempo, a Sociedade de Consumo naqueles países e naqueles lugares onde atualmente impera e continuará em aumento a distância entre ricos e pobres, mas, com a crescente degradação ambiental e pela exaustão dos recursos, aumentarão gradativamente, para todos, as dificuldades e tensões. O sistema se tornará cada vez mais frágil e vulnerável, não somente pelo solapamento de suas estruturas, mas, e possivelmente de maneira mais fatal e antes mesmo do fim dos recursos, pelas inevitáveis e sempre incontroláveis convulsões sociais e conflitos internacionais. Em poucas décadas nos veremos confrontados, todos, com o momento da verdade. A calamidade será global e irreversível. Nossos filhos, as crianças e os jovens de hoje, sentirão em carne e osso o preço de nossa imprevidência atual (LUTZENBERGER, 1978, p. 59).

 

A história nos permite traçar genealogias, estabelecer vínculos e comparações com os movimentos atuais, e, acima de tudo, contextualizar trajetórias e documentos do passado, indicando-nos as condições originais de sua ação e surgimento. Permite-nos ainda compreender como uma concepção de história também se faz presente, mesmo quando não explicitada dessa maneira, sobretudo nas reflexões sobre a temporalidade (no caso, o futuro). Desse modo, conseguimos dispor de um conjunto de tradições e visões alternativas que nos possibilitam questionar a imposição de dogmas (estes também com suas tradições e genealogias), como o dogma do crescimento econômico ou de sua suposta oposição à preservação da natureza.

 

Referências:

CHAKRABARTY, Dipesh. O planeta: uma categoria humanista emergente. Zazie Edições, 2020.

LUTZENBERGER, José A. Fim do Futuro? Manifesto Ecológico Brasileiro. Porto Alegre: Movimento; Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1978.

PECCEI, Aurelio; IKEDA, Daisaku. Antes que seja tarde demais. Rio de Janeiro: Record, 1984.

PEREIRA, Elenita Malta. “Fim do Futuro? O tempo no Manifesto Ecológico Brasileiro de José Lutzenberger. Anais Eletrônicos do XI Encontro Estadual de História Anpuh – RS. Disponível em http://www.eeh2012.anpuh-rs.org.br/resources/anais/18/1346155397_ARQUIVO_temponomanifesto.pdf, acesso em 04/09/2023.

PEREIRA, Elenita Malta. A ética do convívio ecossustentável: Uma biografia de José Lutzenberger. Porto Alegre: Tese de doutorado apresentada junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2016.

 

Pedro Afonso Cristovão dos Santos, professor de Teoria e Metodologia da História na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), membro do Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIS) da UNILA.

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