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O Bacharelado em História: historiadores e o mercado de trabalho

O Blog de História da UNILA traz nesta postagem uma discussão sobre a atuação dxs bacharéis em História no mercado de trabalho. Nossa discussão toma como ponto de partida um importante artigo escrito sobre o tema, de autoria do prof. Pedro Telles da Silveira, doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Silveira é um historiador de formação que trabalhou no setor privado, atuando em agência de marketing político. A partir dessa experiência, e no contexto de um amplo debate sobre as pressões do mercado de trabalho numa economia neoliberal, escreveu o artigo “O historiador com CNPJ: depressão, mercado de trabalho e história pública” (2020), publicado na revista Tempo & Argumento. Silveira defende “a necessidade de uma discussão mais ampla sobre trabalho e relações trabalhistas no âmbito da história” (SILVEIRA, 2020, p. 2), escrevendo em momento em que o investimento na área de educação no Brasil estava no olho do furacão: 2019. Nesse período houve, por exemplo, quase 6.000 cortes de “bolsas de iniciação, mestrado, doutorado e pós-doutorado pelo CNPq” (SILVEIRA, 2020, p. 3). O autor entende que o corte de bolsas afeta diretamente o próprio espaço das disciplinas na universidade, assim como afeta também, diretamente, os estudantes e pesquisadorxs, o que segundo ele, pode ser medido através do aumento dos casos de depressão em cursos de graduação e pós-graduação. Ou seja, Silveira faz um cruzamento interessante: a falta da ampliação da área de atuação dxs historiadorxs, o corte de verbas destinadas às ciências humanas e o aumento da depressão em profissionais da área:

Torna-se necessário repensar a atuação de historiadoras e historiadores sob o prisma do trabalho, de modo a conceber novas identidades profissionais enquanto historiadoras e historiadores que atuarão em espaços que não o universitário ou escolar (SILVEIRA, 2020, p. 4-5).

Constata que, “existe uma ausência de teorização a respeito da atuação de historiadoras e historiadores “fora” da academia e da educação básica” (SILVEIRA, 2020, p. 7). Isto é, a partir da falta de financiamento para pesquisa e a ausência de universidades, a necessidade de sobreviver que emerge para o(a) historiador(a) pública, quer dizer, sobre a necessidade de atuação em outras áreas que não docência ou pesquisa. Atribui “o papel do Estado na desregulamentação do trabalho, fornecendo lastro institucional ao enfraquecimento dos direitos trabalhistas” (SILVEIRA, 2020, p. 8).

Existe uma discussão interna, no campo da historiografia que discute essas novas atuações. E, como a história comprometida é séria em relação aos critérios de metodologias de análise as fontes, essa discussão certamente viria à tona. Silveira abre debate com outro colega que se debruçou sobre essas questões, o prof. Rodrigo Turin (UNIRIO):

[...] oferecer os chamados “serviços em história” ou, mais exatamente, em “memória”, adequando-se às demandas de um mercado cada vez mais acelerado e flexível? Em que medida [...]essas novas demandas externas sociopolíticas não implicam o esvaziamento dos critérios internos, disciplinares, legados por sua tradição? É em torno dessas questões que a comunidade historiográfica parece estar procurando encontrar uma nova inserção em seu presente (SILVEIRA, op. cit.; TURIN, 2018, p. 192).  

Segundo Silveira, Rodrigo Turin também:

lembra que os parâmetros da autonomia universitária são corroídos por dentro, a partir da adoção e/ou imposição de um conjunto de práticas que enfatizam a medição do desempenho e se orientam pelos valores da “eficiência” e “excelência”, perfazendo o campo da transformação neoliberal da educação superior (SILVEIRA, 2020, p. 8).

Silveira discorda de Turin, considerando que a hierarquia praticada na academia também sofre influências neoliberais.  Resumindo o debate, a questão é: o modelo acadêmico não comporta todxs historiadorxs e, ao mesmo tempo, interesses neoliberais têm como “o principal resultado (...) o esvaziamento do mundo comum” (SILVEIRA, 2020, p.14).

Silveira relembra que “a história pública surgiu em meados da década de 1970 na Universidade da Califórnia em Santa Barbara como uma reação à crise de emprego entre os recém-graduados em história” (SILVEIRA, 2020, p.22). Segundo Nicolas Theodoridis, em “História Pública: origens e disseminação no Brasil” (2020), comunicação para o XIX Encontro de História da Anpuh-Rio, o primeiro curso de Introdução a História Pública acontece em 2011, ou seja, ainda muito recente. Para Theodoridis, há um consenso, entre pesquisadores da área, entendendo a história oral como o ramo que melhor se “associou à história pública”. Isso tem ligação com a metodologia aplicada no quesito das entrevistas “com lideranças e integrantes de movimentos sociais”, mapeando práticas, representações, revindicações e atuações (THEODORIDIS, 2020, p. 4). Também podemos ampliar as noções de história pública ao entender como nossas fontes e vestígios se acomodam fora dos muros universitários. Fotografias, ao se tornarem públicas, exercem função política ao transmitir estratégias e disputas de poder, junto aos textos que acompanham (THEODORIDIS, 2020, p.4). Os monumentos, associados à ideia de patrimônio, de certa maneira, também exercem uma função de divulgação de história ao se tronarem patrimônios públicos (THEODORIDIS, 2020, p.5). Dentro do campo da educação, pensando a relação professor x alunx, as “práticas didáticas na educação na história pública com a mídia são intercambiadas e estreitas entre si” (THEODORIDIS, 2020, p.5). Theodoridis, em síntese, apoiado a outrxs teóricxs, discorre sobre a ligação entre a história pública e a mídia. Apoia-se na ideia das mídias como forma de “apreensão e aquisição de conhecimentos, para além da escola e da universidade” (THEODORIDIS, 2020, p.6).

Silveira faz uma reflexão interessante ao compreender que, entre a história pública e o mercado de trabalho, há uma deficiência de compreensão quanto a sua articulação para um campo profissional no país. Assim compreendendo, Silveira, se propõe a fazer alguns encaminhamentos “relativos à historiografia acadêmica”, como uma “tentativa feita a partir de ‘dentro’ para se comunicar com o que está ‘lá fora’” (SILVEIRA, 2020, p. 23). Os encaminhamentos: “reconhecer a pluralidade das formas de atuação de historiadoras e historiadores”; “reconquistar a subjetividade do espectro do neoliberalismo”, considerando a atuação dxs historiadores em contextos mercadológicos, e, considerando que, a iniciativa privada e o mercado também fazem parte de um espaço que é público; “um resultado seria, na sequência, a transformação de valores neoliberais em valores das humanidades”; e “por último, o problema da relevância do conhecimento histórico” que “passa pela necessidade de repensar sua justificativa num momento no qual o conceito moderno de história perdeu sua obviedade e muito de sua efetividade”. (SILVEIRA, 2020, p. 23, 24, 25, grifos no original).

Silveira está pensando como resultado na “valorização do bacharelado em história” (SILVEIRA, 2020, p. 24, grifo no original), compreendendo-o como mal definido. A reflexão de Silveira é interessante, pois, para além de uma, “parcial”, aceitação do neoliberalismo, do mercado, e, consequentemente, do capitalismo, realoca xs historiadorxs como agentes históricos em outro mercado de trabalho e de produção. O saber histórico, qualquer que seja a área de atuação, é necessário, e, acima de tudo, um exercício ético e de cidadania. A História Pública é, enquanto campo de trabalho, uma necessidade, sobretudo, pela ampliação dos meios de comunicação.

Aqui, colocamos um acento para a nova lógica, mais veloz, de produção de conteúdo, após a popularização da internet e seu crescimento, e outro acento, no aceleramento dessa produção após a pandemia do COVID19, com início no ano de 2020. Quer dizer, toda a divulgação de conteúdos, porém, sem a preocupação mínima com trato das fontes e metodologia, teve como resultado maior produção e circulação de fake news.

Em 2018 o Instituto de Estudos Avançados (IdEA) da Unicamp, em parceria com o jornal Folha de S.Paulo, “promoveu o Seminário Pós-Verdade, formulando importantes questionamentos e buscando respostas com especialistas sobre as chamadas “fake news” e como elas influenciam os rumos do debate na sociedade” (GORGULHO, 2018). Em 2020, a organização Ifex, uma rede global de organizações comprometidas com a promoção de liberdade de expressão como um direito humano, noticiou o problema da disseminação de desinformação na região MONA, que engloba o Oriente Médio e Norte da África, classificando o problema como uma luta contra a infodemia (TARAWNAH, 2020). Em 2022, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), lançou uma campanha chamada Democracia em Pílulas. A campanha teve como objetivo a produção de 30 mensagens curtas, que foram divulgadas uma por dia nas redes sociais, “para reforçar a importância do combate à desinformação no processo eleitoral” (TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL).

A história da historiografia já mostrou que sua produção é feita através de leituras do mundo, e que podem ser elaboradas novas narrativas sobre acontecimentos, considerando os diversos prismas de análise, porém, sempre embasados pelas fontes. No campo da história pública isso não é diferente.  Sendo assim não podemos ter medo da história. Há um código de conduta a ser seguido no trato das fontes; honestidade; integridade; respeito; justiça; transparência; equidade; solidariedade; responsabilidade profissional; responsabilidade socioambiental; comprometimento; cidadania. Assim, como em nossa profissão, quando bem exercida, pretende-se combater a retórica e falácias. Nosso reconhecimento enquanto historiadorxs, juridicamente falando, é responsabilidade do estado,  Lei Nº 14.038, de 17 de agosto de 2020. Publicamente falando, nosso reconhecimento, advém da importância dada à historiografia para além da legislação, assim como dentro e fora dos muros da universidade. O grande problema desse dilema estado x neoliberalismo, indivíduo x coletivo, é que nenhum dos dois vai resolver completamente o problema de ampliação do campo de trabalho. O que xs hitoriadorxs necessitam antes de tudo é reconhecimento e oportunidades para poder exercer a profissão levando uma vida digna. Caminhamos para um tempo em que se faz necessária maior fiscalização histórica, pública ou privada, e isso se faz justamente com a ampliação do campo de atuação do historiador. Não é demérito para nenhuma historiadora ou historiador exercer a profissão fora da docência. Como, por exemplo, trabalhar com bancos de dados e arquivos dentro das mídias digitais. Ou mesmo, em canais de divulgação de história, como já vemos em plataformas como YouTube. O jornalismo trata de notícias dia a dia, porém a história tem grande capacidade de trato com fontes, sobretudo pela experiência com metodologias de leitura em diferentes fontes. Tanto que não é incomum que muitos profissionais de outras áreas migrem para história na pós-graduação. Principalmente para conseguirem análises mais profundas e análises em recortes temporais variados.

Escrever através das fontes não é tarefa fácil, nem rápida. A história, enquanto faculdade, é super disciplinada ao se tratar de metodologias de análise das fontes. Em um mundo onde, a velocidade de comunicação cresceu e cresce imensamente, a necessidade de atuação de historiadorxs aumenta, em sentido interdisciplinar. Xs historiadorxs são capazes de adicionar informações importantes e contribuir para qualquer disciplina, setor, ofício, sendo público ou privado. E a ampliação do campo de trabalho dxs historiadorxs se faz necessária, tendo em vista a promoção da ética e cidadania no espaço público.


Print de tela - LIVE CNN - 13/10/2023. Minuto, 03:04:00. Disponível em: https://youtu.be/CsnvJlZMutQ?t=11051 . Acesso em: 13/10/2023.

Referências:

SILVEIRA, Pedro Telles da.O historiador com CNPJ: depressão, mercado de trabalho e história pública”. Tempo & Argumento, Florianópolis, v. 12, n. 30, e0204, maio/ago. 2020.

GORGULHO, Guilherme. “Crescimento das ‘fake news’ influencia agenda pública e requer ações”. Jornal da Unicamp, 2018. Disponível em: https://www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2018/09/14/crescimento-das-fake-news-influencia-agenda-publica-e-requer-acoes. Acesso em: 13/10/2023.

TARAWNAH, Nassem. La región de MONA y su lucha contra la infodemia en las batallas de información: de las noticias falsas al fenómeno de lavado de etiquetas. Ifex, 2020. Disponível em: https://ifex.org/es/la-region-de-mona-y-su-lucha-contra-la-infodemia-en-las-batallas-de-informacion-de-las-noticias-falsas-al-fenomeno-de-lavado-de-etiquetas/ . Acesso em: 13/10/2023.

THEODORIDIS, Nicolas. “História pública: origens e disseminação no Brasil”. XIX Encontro de História da Anpuh-Rio. Rio de Janeiro, 2020. Disponível em: https://www.encontro2020.rj.anpuh.org/resources/anais/18/anpuh-rj-erh2020/1593814835_ARQUIVO_f5d7a4b54098fa9d9e5e5e646e149e02.pdf . Acesso em: 08/10/2023.

Tribunal Superior Eleitoral. Pílulas contra a desinformação: notícias falsas circulam 70% mais rápido do que as verdadeiras. 06/06/2022. Disponível em: https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Junho/pilulas-contra-a-desinformacao-noticias-falsas-circulam-70-mais-rapido-do-que-as-verdadeiras . Acesso em: 12/10/2023.

TURIN, Rodrigo. Entre o passado disciplinar e os passados práticos: figurações do historiador na crise das humanidades. Tempo, Niterói, v. 24, n. 2, p. 187-205, maio/ago. 2018.

 

Acauã Allende Silva Capucho, bacharel em História pela UNILA

 

Revisão: Pedro Afonso Cristovão dos Santos

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