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A Erva-mata(e): Um ensaio sobre a exploração da mão de obra escravizada no costume fronteiriço

Imagem: Trabalhador em condição análoga à escravidão no corte da erva-mate. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2017/03/21/existe-trabalho-escravo-na-regiao-sul-sim-diz-auditora-fiscal-do-trabalho Acesso em: 02/02/2024

Na intenção de realizar um recorte regional mais específico, assim como, de demonstrar a historicidade crítica de um aspecto cultural importante para o processo de integração desta mesma região, destinei a análise a região fronteiriça de Foz do Iguaçu, Puerto Iguazu e Ciudad del Este, com ênfase no consumo da erva-mate como processo sociocultural de integração.

Quando trabalhamos ao analisar a região sul do Brasil, assim como os países fronteiriços da mesma, já criamos uma pré-conceituação de quais aspectos culturais correspondem a estes espaços. De maneira geral, e enfática, a Erva-mate, seja ela como Chimarrão; Tereré; Chá-Mate ou derivados, torna-se um aspecto sociocultural determinante para as dinâmicas interpessoais nesta região. 

Tal processo de familiarização com o consumo da Erva-mate, detém em sua conjuntura temporal um processo histórico bastante importante, no qual podemos começar a analisar a partir do seguinte trecho:

As comunidades indígenas do centro-sul brasileiro mantêm estreita relação com as espécies do gênero Ilex (ou seja, Erva-mate grifo meu) desde épocas imemoriais e, nesse contexto, o estabelecimento da relação histórico-cultural entre os Kaiowá e Guarani e a erva-mate nativa torna-se fundamental como alternativa de desenvolvimento local, visando à recomposição da vegetação nativa, com a recuperação ambiental e resgate de um elemento cultural, de modo a possibilitar a interlocução com a comunidade para a melhoria da sua qualidade de vida (CONTINI; CASTILHO; COSTA, 2012).

Este trecho torna-se importante para nós, no que concerne à especulação da importância do consumo e relação existente entre populações Kaiowá e Guarani (as quais ocuparam o território sul do Brasil, assim como, as Fronteiras deste com Paraguai; Argentina e Uruguai), de maneira que nos demonstra como esta planta torna-se fundamental para as dinâmicas sociais das populações originárias anteriormente citadas. 

Mas, trabalhar com a importância de tal mecanismo cultural não é o que nos interessam de fato neste ensaio, mas sim, entender quais são suas repercussões críticas de um processo de colonização e escravização que forneceram o cenário ideal, para que, este produto cultural fosse expropriado de seus “donos originários” e fosse posto como mais um produto a ser consumido na lógica capitalista. Quando me refiro ao termo “expropriado”, derivado do verbo expropriar, não o utilizo atoa. Poderia, sem dúvidas, realizar a consumação do conceito “apropriação cultural originária”. Todavia, quando analisamos os aspectos precursores das relações de consumo existentes no cerne Erva-mate, entendemos que a historicidade por trás de tal produto, fez com que tal se tornasse uma “propriedade regional” (no que me refiro a região sul) sendo, portanto, privada a consumo daqueles que se atribuem do imaginário nacional. Fato que periferiza e subalterniza as populações originárias, fazendo com que estas estejam privadas de utilizar/consumir esta planta tão importante para as suas relações sociais. 

Prosseguindo com a análise da relação histórica entre o consumo de Ilex paraguariensis, temos um conceito chave, que torna possível essa virada de chave, na qual, a erva deixa de ser um aspecto cultural originário, e passa a ser proveito do mundo capitalista de consumo. Este conceito chave é o escravismo. 

No final do século XIX estava implantado no oeste do Paraná o sistema de Obrages, caracterizado pela exploração da erva-mate e da madeira existentes nas matas. As obrages eram de capital argentino e inglês e utilizavam mão de obra paraguaia de origem indígena, em regime de escravidão (CONTE, 2018, p. 246).

As Obrages, ou seja, sinteticamente, propriedade para exploração em regiões subtropicais, foram as demandas de trabalho (escravizado) que impulsionaram a dinamização da extração da Erva-mate, assim como, de sua inserção, acentuada, no mercado de consumo desenfreado. O que, por sua vez, possibilitou com que este aspecto cultural Guarani e Kaiowá, torna-se um aspecto cultural paranaense, ou até mesmo, sulista. 

Quando reflito no título do ensaio e produzo o neologismo “Erva-mata(e)”, intensifico a ideia de que o processo com que se deu a incorporação da Erva-mate como um aspecto cultural sulista não foi, de forma alguma, harmonioso, como se vê no sentido comum civil. O que se deu, foi uma exploração desenfreada da Mata Atlântica (DEAN, 2004), adjunto da exploração da mão de obra indígena, negra e paraguaia, perpetuando o processo colonial até o século XIX.

Quando analisamos este processo em uma determinante racial, percebemos a queda de uma narrativa muito comum na região sul do Brasil, assim como, em grande parte da Argentina e do Paraguai, que é a inexistência, ou a não participação da população negra na história regional destes lugares. Como podemos ver no trecho a seguir, isto não há uma fundamentação teórica, mas sim, ideológica racista:

No estado do Paraná o escravo negro esteve presente de forma significativa no Litoral ou no Planalto, nas cidades, vilas e freguesias, na mineração, na pecuária, na agricultura de subsistência, no cultivo da erva-mate ou no café (HARTUNG, 2005, p. 148).

Isto nos auxilia a entender o porquê o Paraná é o estado mais negro na região sul do Brasil, assim como, tem uma das maiores populações quilombolas e de negros tradicionais residindo aqui (PARANÁ NEGRO, 2008).

Na primeira metade do século 19, o número relativo de escravos negros chegou a 40% da população da província do Paraná, que se emancipou politicamente em 1853… e, os escravos trabalhavam na colheita, transporte e comercialização da erva-mate (PARANÁ NEGRO, 2008, p. 14).

Essa realidade chocante, com a qual referimos a realidade deste costume fronteiriço, escancara uma fragilidade de nossos aspectos culturais, quase todos, ou de alguma forma todos estão tingidos com as manchas do colonialismo e do ideal modernista. Tal dinâmica serve de entendimento para a questão de 1888, a Lei Áurea, que em sua narrativa acaba com a escravidão (BARRET, p. 125), porém, serve de justificativa para que realidades como a reafirmada pela auditora fiscal do trabalho, Luize Surkamp, sigam existindo: "Existe trabalho escravo na região Sul, sim", diz a auditora fiscal do trabalho.

Carne estremecida por los últimos latigazos del jefe político y las últimas patadas del cuartel, carne oscura y triste ¿qué hay en ti? ¿La sombra de la tiranía y de la guerra? ¿La fatalidad de la raza? (BARRET, p. 125).

Derivando do trecho acima, parto para o encerramento de tal ensaio. É portanto, importante analisar os fenômenos culturais e costumes comuns que realizamos em nosso dia-a-dia e pensamos que são simples e a-históricos e nos questionarmos a que narrativa e memória estamos dando ênfase e a qual estamos silenciando (POLLAK, 1989), para não perpetuamos uma realidade distópica daquela que carrega em seu cerne histórico uma imensidão de devastação, sangue e resistência.

Por fim, com a análise desenvolvida, conseguimos perceber como aspectos reproduzidos no seio do senso comum que move a identidade fronteiriça e regional da tríplice fronteira nacional, parte de uma narrativa extremamente ilusória, onde, os aspectos culturais são narrados como harmoniosos (no que se refere ao consumo de Erva-mate) e que na verdade, tal efeito detêm em sua causalidade diversos aspectos históricos importantes, como o processo de colonização, devastação da Mata Atlântica, a escravização, assim como o processo de expropriação da memória originária e negra.

Referências:

 

BARRET, Rafael. El Dolor Paraguayo. Caracas: Fundación Biblioteca Ayacucho, s/d.

CONTE, CLÁUDIA HELOIZA. A aglomeração urbana de fronteira de Foz do Iguaçu/PR, Ciudad del Este/PY e Puerto Iguazú/AR e suas dinâmicas. Revista Espaço e Geografia, v. 21, n. 1, 2018, p. 246.

CONTINI, Adriana Zanirato; CASTILHO, Maria Augusta de; COSTA, Reginaldo Brito da. A erva-mate e os Kaiowá e Guarani: da abordagem etnobotânica à promoção do desenvolvimento local. Interações (Campo Grande), v. 13, p. 161-168, 2012.

DEAN. Warren. A segunda leva de invasores humanos. In: A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica Brasileira. São Paulo: Companhia das Letras. 2004.

HARTUNG, Miriam. Muito além do céu: escravidão e estratégias de liberdade no Paraná do século XIX. Topoi (Rio de Janeiro), v. 6, 2005, p. 148.

Paraná Negro / Jackson Gomes Júnior, Geraldo Luiz da Silva, Paulo Afonso Bracarense Costa (orgs.); fotografia e pesquisa histórica: Grupo de Trabalho Clóvis Moura. Curitiba: UFPR/PROEC, 2008.

POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio.” In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro: vol. 2, nº 3, 1989.

 

Reportagens online:

Disponível    em: https://www.brasildefato.com.br/2017/03/21/existe-trabalho-escravo-na-regiao-sul-sim-diz-auditora-fiscal-do-tra balho Acesso em: 11/10/2023.

Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2011/07/erva-mate-cinco-casos-de-trabalho-escravo-em-20-dias/ Acesso em: 11/10/2023.

Disponível    em: https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2020/07/21/pouco-mais-de-um-terco-da-populacao-do-parana-e-formada- por-negros-e-governo-estadual-nao-tem-politicas-publicas-especificas.ghtml Acesso em: 11/10/2023.

 

Victor Evangelista Santos, estudante do curso de História- Grau Licenciatura da UNILA.


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