Greve é uma ação que pode ser descrita como uma paralisação coletiva e voluntária da força de trabalho empregada como um instrumento na luta por melhores condições de trabalho e pela conquista de direitos. Esse instrumento muitas vezes utilizado para pressionar os empregadores é frequentemente associado ao desenvolvimento do capitalismo e da industrialização, à emergência da classe operária e ao desenvolvimento de suas formas de organização, especialmente os sindicatos. Apesar disso, esse tipo de ação coletiva relacionada a reivindicações trabalhistas está presente em outros períodos da história e foi mobilizada não apenas pela classe operária em centros urbanos.
No
Brasil, a origem das greves em território nacional tende a ser rapidamente
associada ao cenário de crescimento urbano e industrial, com o surgimento de
uma classe operária no país, e principalmente nas suas ações nas primeiras
décadas do século XX. Essa classe contava então com expressiva participação de
imigrantes europeus (no caso de São Paulo, com destaque para a presença de
italianos) e com a influência de ideias libertárias, anarquistas, socialistas e
sindicalistas revolucionárias. Uma história, portanto, associada à consolidação
do trabalho livre e assalariado em oposição à escravidão e que envolveu a
realização de vários movimentos grevistas entre o final do século XIX e as
primeiras décadas do século XX. De acordo com Biondi e Toledo,
Em
julho de 1917, uma greve de enormes proporções – envolvendo mais de cinquenta
mil trabalhadores, homens e mulheres, adultos e menores, contando a
solidariedade e a contribuição de milhares de outros cidadãos – paralisou São
Paulo e transformou a cidade no palco de uma verdadeira revolta urbana, na ação
mais intensa do movimento operário brasileiro até então (BIONDI; TOLEDO, 2018,
13).
A greve de 1917 em São Paulo, a primeira greve geral realizada no país, constitui um marco nacional das lutas dos trabalhadores. A história das lutas do movimento operário brasileiro foi registrada e escrita no próprio período em que ocorreram. A militância operária dedicou parte importante de seus esforços na produção de jornais próprios nos quais denunciavam os diversos problemas e injustiças e suas condições de vida e de trabalho, apresentavam suas propostas de organização, luta e transformação social, enfrentavam as narrativas dos empregadores quando debatiam com os jornais de grande circulação e assim também registravam a sua própria perspectiva a respeito desses acontecimentos. Vários militantes anarquistas, socialistas, sindicalistas revolucionários e comunistas - como Edgard Leuenroth, Gigi Damiani, Everardo Dias, Astrojildo Pereira, entre muitos outros - também registraram essas histórias na publicação de livros. Grande parte desses registros foram produzidos, portanto, por aqueles que ocuparam posições de lideranças nas associações e nos movimentos. Assim, eles tendem a destacar o papel dos sindicatos e das lideranças, espaços que haviam sido ocupados principalmente por homens.
A partir da segunda metade do século XX, além de obras produzidas pela militância, e em diálogo com elas, ocorreu o crescimento do interesse e da produção acadêmica no campo das ciências humanas sobre as lutas dos trabalhadores no Brasil. Nas décadas de 1960 e 1970, predominaram os estudos posteriormente criticados por expressarem o que foi descrito como paradigma da ausência: os trabalhadores aparecem quase sempre “no negativo” diante dos principais acontecimentos da história nacional, com ausência de consciência de classe e incapacidade de organização e ação estratégica (CHALHOUB; SILVA, 2009). A partir da década de 1970, ocorreu uma virada na produção historiográfica que ampliou as abordagens que consideravam os trabalhadores como capazes de estratégia e ação e, portanto, como sujeitos da história (POPINIGIS; TERRA, 2019). Essa produção no campo da História passou por uma significativa ampliação em relação aos limites cronológicos (incluindo períodos anteriores ao surto de industrialização e períodos cada vez mais recentes), recorte geográfico (para muito além do eixo Rio-São Paulo) e procurando investigar não apenas os aspectos que unificavam os trabalhadores, mas também os que promoviam divisões como origens étnicas, diferenças de ganho, crenças, etc (BATALHA, 2006). As investigações ampliaram o foco para além das lideranças e das associações dos trabalhadores, o que contribuiu para um redimensionamento da expressiva participação de mulheres e de menores de idade nos espaços de trabalho e nos movimentos grevistas e das histórias daqueles que se envolveram menos nesses espaços de luta, não participavam das associações, mas que eventualmente engrossavam as fileiras das greves em situações específicas.
Finalmente,
entre alguns dos desdobramentos dessa transformação historiográfica, destaco
aqui alguns elementos com relação ao tema da greve e apresento alguns exemplos.
O avanço na investigação sobre o comportamento organizado entre cativos inclusive
com o recurso a paralisações coletivas (LONER, 2009), como, por exemplo, a
análise de João José Reis sobre a greve dos carregadores na cidade de Salvador
em 1857. Os negros chamados de ganhadores – escravizados, libertos ou livres –
eram responsáveis por todo o transporte, de gente e de carga, na cidade. E na segunda-feira,
dia primeiro de junho de 1857, “os negros haviam decidido cruzar os braços, em
protesto contra uma postura municipal em vigor a partir daquela data” (REIS,
1993, p. 8). O rompimento do mito da origem da classe operária brasileira como
essencialmente imigrante, masculina e fabril (BATALHA, 2006); o incremento de
estudos sobre a numerosa presença de mulheres e menores nos espaços de trabalho,
nas ações grevistas e nas lutas por direitos (FRACCARO, 2017); o aprofundamento
de abordagens transnacionais das lutas trabalhistas e construídas muito além do
eixo Rio-São Paulo, como o estudo de Oliveira sobre o movimento organizado
pelos trabalhadores marítimos na região da Bacia do Prata até o Mato Grosso. Os
trabalhadores que atuavam nas embarcações no trajeto entre Corumbá (Brasil),
Assunção (Paraguai), Buenos Aires (Argentina) e Montevidéu (Uruguai) foram
responsáveis pela realização de três movimentos grevistas entre 1918 e 1920 que
envolveram a articulação e solidariedade de classe entre trabalhadores
brasileiros, paraguaios, argentinos, uruguaios e ainda com a presença de
imigrantes de outras nacionalidades (OLIVEIRA, 2009); a importante ampliação de
investigações sobre movimentos grevistas entre trabalhadores rurais e inclusive
articuladas com trabalhadores urbanos (SILVA, 2013; PRIORI, 1996). Finalmente,
a produção de estudos que incluem “trabalhadores livres e não livres, urbanos e
rurais, assalariados e autônomos, contratados e sazonais” (BATALHA, 2006, p. 89).
Com isso, espero ter apresentado alguns elementos a respeito de como a produção
historiográfica brasileira das últimas décadas tem contribuído para contar a
história dos movimentos grevistas no país.
Fonte: A Razão,
18 jun. 1919. p. 1. Hemeroteca Digital – Biblioteca Nacional apud CAMPOS,2021.
Referências
BATALHA, Claudio. Os desafios atuais da
história do trabalho. Anos 90, Porto Alegre, v. 13, n. 23/24, p. 87-104,
jan./dez. 2006.
BIONDI, Luigi; TOLEDO, Edilene. Uma
revolta urbana: a greve geral de 1917 em São Paulo. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2018.
CAMPOS, Beatriz Luedemann. Companheiras
em greve: o movimento paredista da União das Costureiras em junho de 1919. Revista
Angelus Novus, ano XII, n. 17, 2021.
CHALHOUB, Sidey; SILVA, Fernando
Teixeira. Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e trabalhadores na
historiografia brasileira desde os anos 1980. Cadernos AEL,
v.14, n.26, 2009.
FRACCARO, Glaucia Cristina Candian.
Mulheres, sindicato e organização política nas greves de 1917 em São Paulo. Revista
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LONER, Beatriz Ana. Sobre greves,
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OLIVEIRA, Vitor W. N. Nas águas do Prata: os trabalhadores na
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Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009.
POPINIGIS, Fabiane; TERRA, Paulo Cruz.
Classe, raça e a história social do trabalho no Brasil (2001-2016). Estudos
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PRIORI, Ângelo. O protesto do
trabalho: histórias das lutas sociais dos trabalhadores rurais do Paraná:
1954-1964. Maringá: EDUEM, 1996.
REIS, João José. A greve negra de 1857
na Bahia. Revista USP,
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Trabalho, Florianópolis, v. 4, n. 8, p. 124–160, 2013.
Endrica Geraldo, Professora da área de História da UNILA.