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Do murmuro da mocidade nasce um jornal: o Paládio e o projeto de modernidade para a cidade de Itacoatiara (1908-1911)

 

Em 1850, o Amazonas passa por uma relevante mudança ao ser elevado à categoria de Província, tornando-se independente do Grão-Pará. Nesse contexto, o governador Tenreiro Aranha estabelece uma tipografia em Manaus, de onde surgiu o Cinco de Setembro, em 1851. As atividades de imprensa representaram, no Estado do Amazonas, um espaço amplo de debates e disputas entre as elites locais, além de servirem como forma de resistência das classes populares.

 

Esse texto tem como proposta expandir o olhar da historiografia da Imprensa Amazônica do início do século XX, na expectativa de sair da repetição de trabalhos cujo foco ainda é fortemente direcionado às relações construídas na Capital, Manaus. Nosso foco é a primeira década do século XX e o jornal Paládio, que circulou na cidade de Itacoatiara (cidade interiorana do Amazonas), entre os anos de 1908 e 1911. O recorte temporal representa um período de consolidação da expansão do periodismo amazonense. 

Outro elemento que justifica a escolha pelo recorte, e do Paládio como objeto, parte da percepção que a primeira década do século XX representa a consolidação da “ilusão do fausto”, expressão usada por Edneia Mascarenhas Dias (1999) para representar o momento do imaginário das elites letradas do Estado, as quais tinham a idealização de uma modernidade plena, onde a elevação moral e material, se não alcançada, estaria muito próxima de acontecer.

Na edição de 9 de setembro de 1908 ressoava nas páginas do Jornal do Commércio, periódico de grande tiragem publicado na cidade de Manaus, uma pequena e espremida nota sobre o surgimento de uma pequena folha jornalística na cidade de Itacoatiara, a qual dizia,

Acaba de sahir à luz da publicidade, n’aquela cidade do Baixo Amazonas, o ‘Paládio’ órgão do Club Recreativo Itacoatiarense. E’ um jornal de pequeno formato mas feição moderna. (Jornal do Comércio, nº1604, Manaus – AM, 09 de setembro de 1908.)

O Jornal do Commércio adota as chamadas “práticas de civilidade” em contraste a um imaginário de barbárie que deveria ser superada. Essa perspectiva norteia a apresentação do Paládio de Itacoatiara como um “jornal pequeno, mas de feições modernas”. Contudo, isso não é feito sem hierarquizações. O Jornal do Commércio, ao se referir ao Paládio como um jornal “pequeno”, marca uma diferença entre ambos. Além disso, ao se referir ao surgimento do Paládio “naquela cidade do Baixo Amazonas”, estabelece uma distância – física e qualitativa – entre Manaus e Itacoatiara. Entretanto, suas “feições modernas” seriam o elo comum, possivelmente representadas no layout do nascente jornal de Itacoatiara, e nos seus projetos. 

O jornal Paládio nasce, assim, legitimado pelo Jornal do Commércio, mas colocado em uma posição “à margem” da imprensa da capital, vista como referência. A história do Paládio é marcada por essa tensão entre o ideal da modernidade, de princípios universais, e as particularidades de Itacoatiara. O Paládio reitera constantemente o ideal do moderno. Na coluna “Indiscutível Progresso”, do seu terceiro número, diz:

O opulento Brazil, esse gigante formidável ora representado na figura sympathica de um selvagem de tanga a cinta e empunhando o temível arco e a mortífera flecha de bico envenenado, esse Briareu que tanto pasmo causa ás velhas nações da culta Europa, vae em agigantados passos conquistando uma culminância considerável apesar dos não poucos óbices que surgem á sua marcha. (Paládio, nº3, Itacoatiara – AM, 17 de setembro de 1908.)

Esse fragmento do Paládio apresenta uma questão relevante que atravessa toda sua trajetória, esse “ar” de moderno que se percebia também no Jornal do Commércio. Não se está argumentando que a folha de Itacoatiara é fruto dos projetos do grande da Capital, mas é importante de destacar que a atuação de figuras como Libanio Bezerra dos fundadores do Paládio e correspondente do Jornal do Commércio, aproxima os debates que guiam as ideias de ambos os títulos. O “simpático” indígena da fala do Paládio ou o bárbaro índio/mestiço que discute o Jornal do Commércio, resvalam na representação de uma identidade selvagem e mortífera, portanto atrasada, que deveria ser superada em direção à civilidade que se espelhava na tradição europeia.

Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro propõe uma relação intrínseca entre o desenvolvimento da imprensa nas cidades interioranas com o urbanismo decorrente da economia da borracha e do consequente deslocamento de contingentes populacionais para essas regiões. Pinheiro destaca: “tanto é assim, que é possível perceber nos registros catalográficos, a maior incidência de títulos em áreas e períodos alcançados pela expansão da borracha” (PINHEIRO, 2017, p. 23), o que explicaria uma maior produção de jornais em municípios como Itacoatiara, Borba e Manicoré, como também nas regiões de Lábrea e Rio Branco (ainda vinculado ao Amazonas) no período de 1880 a 1920, enquanto localidades mais afastadas das áreas de seringais teriam tido pouca ou nenhuma atividade periódica.

A própria existência e duração do Paládio se confunde com o cenário político que o circunda. O jornal era fruto do Club Recreativo Itacoatiarense, composto por figuras como Ozorio Alves da Fonseca (diretor da folha e secretário da superintendência de Itacoatiara entre os anos de 1908 e 1910, recorte em que o jornal circulou), major Francisco Domingos do Lago (presidente do Club Recreativo Itacoatiarense e membro da Loja Maçônica “Esperança e Harmonia”, ocupou o cargo de prefeito de segurança pública da cidade) e José Libanio Bezerra (secretário do Club Recreativo Itacoatiarense, representante do Jornal do Commércio em Itacoatiara e fundador do Paládio).

Esses nomes encabeçam a organização do periódico enquanto atuam próximos da superintendência municipal chefiada pelo coronel João Pereira Barbosa. A própria duração do jornal aponta sua aproximação com a administração de Barbosa, onde este assume seu segundo mandato na superintendência em 25 de janeiro de 1908 (SILVA, 1998, p. 104), enquanto o jornal surge mais tarde, em setembro; a gestão do coronel se encerra em dezembro de 1910, com o Paládio tendo seu último número lançado em 23 de julho de 1911.

No seu primeiro número posto em circulação no dia 5 de setembro de 1908, anunciava-se como “Órgão do Club Recreativo Itacoatiarense”. Em sua primeira edição, o jornal apresenta sua razão de ser, quando diz:

Quando suspendeu < O Avança> a sua publicação um mumurio immenso de saudade invadiu a alma da mocidade Itacoatiarense. 

Todos inqueriam do motivo porque tão inopinadamente se encontravam privados da visita de tão querido companheiro. 

Modéstia á parte não falhava razão ás nossas gentilíssimas leitoras e prezados leitores.

- Si ao romper a aurora das quintas-feiras tinham a desventura de deixar o leito presa de algum desalento que toldasse a risonha esperança da véspera, ahi estava <O Avança>, portas a dentro de tantos lares queridos desfraldando a bandeira da paz espiritual, a reavivar os áureos sonhos dessa mocidade querida.

Por isso mesmo é que a nossa gratidão ainda hoje se manifesta a tantos espíritos bem formados, lançando outra vez á luz da publicidade o sucessor d’ <O Avança> - o <Paládio>, órgão do <Club Recreativo Itacoatiarense>.

Defensor impertérrito do mesmo Club, mantendo o mesmo programma que se havia traçado <O Avança>, arrostará todos os sacrifícios que se antepuzerem á sua marcha, até que possa, mais dias menos dias, conquistar a palma da victoria ao lado dos paladinos do progresso desta formosa Itacoatiara. (Paládio, nº1, Itacoatiara – AM, 05 de setembro de 1908.)

A coluna permite a observação de um panorama acerca dos temas que se tornaram recorrentes dentro do Paládio, além de indicar seu lugar social, as relações das quais ele é produto e projeto, e questões mais abrangentes acerca do periodismo interiorano no Amazonas. Um primeiro elemento é a interrupção do O Avança, jornal do ainda Club do Pessoal do Avança, e o aparecimento do Paládio como seu sucessor. Esse era um movimento comum aos pequenos jornais, os quais eram marcados por interrupções e retomadas, por vezes com novos nomes. 

O tom do jornal também é um elemento a ser destacado nesse discurso, quando, direcionado à população de Itacoatiara, ou mais detidamente aos grupos que compõem seus membros e leitores, observa-se um discurso de exaltação daquela “mocidade”, o que aparece como elemento de jovialidade que permitiria a caminhada ao progresso esperado.

Ainda considerando essa aproximação do espraiamento do periodismo no Amazonas com a expansão da borracha, e o próprio lugar do Paládio como elemento imerso no processo de crescimento urbano e econômico da cidade de Itacoatiara, se torna importante uma aproximação com a perspectiva de “capitalismo editorial” de Benedict Anderson. O autor caminha, na esteira de Francis Bacon, e considera que a imprensa transformou o aspecto e a condição do mundo, e, nas palavras de Anderson, resvalaria em uma “(...) nova maneira de unir significativamente a fraternidade, o poder e o tempo” (ANDERSON, 2008, p. 69.).

A relação do capitalismo com o desenvolvimento da imprensa, como se observa em Nelson Werneck Sodré, na História da Imprensa no Brasil (1966), resulta nesse desenvolvimento da imprensa como mercadoria. Sendo o Paládio fruto desses empreendimentos que se intensificaram no alvorecer da primeira década do século XX no Amazonas, consequências da exploração da borracha, o jornal, apesar de pequeno e de pouca ressonância para além de Itacoatiara, se insere na busca de um espaço de sociabilidade e de construção de um elo que constituísse uma comunidade leitora.

Propondo observar o jornal como elemento de construção de uma “comunidade imaginada”, seguindo a perspectiva de Anderson, o Paládio, mais do que defensor do programa traçado pelo Club Recreativo Itacoatiarense e mantenedor do programa de seu antecessor, O Avança, se coloca como uma ferramenta que “arrostará todos os sacrifícios que se antepuzerem á sua marcha”, como dito anteriormente em sua primeira edição, se propondo a conquistar o progresso dos “paladinos” daquela localidade.

A construção de um projeto de cidade é o que pauta esse discurso associado a uma marcha ao progresso. Havia um discurso de “aformoseamento da cidade”, de melhoramento moral e material, que resvalava tanto na arquitetura – com a construção de prédios e melhorias do porto – como na higiene, limpeza e conduta moral – como a reprovação aos que “falavam da vida alheia”. Para usar da perspectiva de Edneia Mascarenhas Dias (DIAS, 1999, p. 11.), o que o jornal procura ao discutir o “embelezamento” de Itacoatiara é a projeção de um “fausto”, a projeção de uma cidade que deveria seguir as idealizações daquela elite política que circundava o periódico.

Sendo a imprensa fruto do espraiamento dos tentáculos do capitalismo e a própria urbanização um elemento da expansão dos mercados exportadores, no caso, da borracha, especialmente no século XIX, o jornal Paládio, imerso nesses contextos, assume uma postura de emissor dessa civilidade almejada em pleno interior do Amazonas, o que nos leva à necessidade de pensarmos a história local/regional “dos interiores” de forma conectada/global, a despeito de suas particularidades e desigualdades características do capitalismo e da modernidade ocidental.


Referências

ANDERSON, Benedict R. Comunidades imaginadas: Reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: Momentos Decisivos. 6ª ed. São

Paulo: Fundação da Editora da UNESP, 1999.

DIAS, Edineia Mascarenhas. A Ilusão do Fausto: Manaus, 1890 – 1920. Manaus: Valer, 1999.

PINHEIRO, Luís Balkar Sá Peixoto (Org.). Imprensa e Sociedade na Amazônia 1870 1930. Manaus – AM: Editora CRV. 2017.

SILVA, Francisco Gomes da. Cronografia de Itacoatiara. Imprensa Oficial do Estado do Amazonas. Manaus. v.2. 1998.

SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4 ed. ed. Rio de Janeiro: MAUAD, 1999. 501 p.


Gabriel Cruz Carneiro, Mestre em História pelo PPGHIS-UNILA e doutorando em História pela Universidade Federal do Amazonas - UFAM

Revisão: Paulo Renato da Silvaprofessor de História Contemporânea da América Latina na Unila

 


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