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Violências do agronegócio: perspectivas de uma vivência desde o território de São Manuel (SP)

Nesta semana o blog de História da Unila nos apresenta uma análise, a partir da experiência de Joselaine Pereira, dos impactos da monocultura em uma cidade do interior de São Paulo. História que pode ser estendida para pensar outras regiões que vivenciam situações similares. 

Nasci e cresci no município de São Manuel, interior de São Paulo, sem conhecer praticamente nada da história, do bioma, ou da fauna e da flora da região. Esse território com ocupação ancestral de mais de 11.000, com registro de presença dos povos Kaingang e Guarani (chamados pejorativamente de bugres), faz parte da Mata Atlântica e está próximo à fronteira com o Cerrado. Localizado às margens do Rio Tietê, Rio Capivara e Rio Araquá, com destaque especial para o Ribeirão Paraíso que por seus usos fundamentais deu nome à cidade, cujo nome, por algum tempo, foi São Manuel do Paraíso. Hoje em dia, praticamente não há presença indígena no município.

Imagem 1: Mapa das regiões administrativas do estado de São Paulo

Fonte: Municípios de São Paulo - Grande SP, Santos, Campinas (mapas-sp.com)

Em minhas tentativas de leituras sobre a cidade, – onde encontrei pouquíssimo material, até mesmo na biblioteca municipal – encontrei principalmente dois livros de meu interesse: “Raízes de São Manuel” (1986), de Luiz Sicchiera, e “São Manuel ontem e hoje” (1996), de Gildo Sanches. No primeiro encontrei apenas uma breve menção aos povos indígenas da região, referindo-se a eles como “bugres”, e escassas informações sobre a presença histórica das mulheres, dentre as quais gostaria de destacar a nomeação de Carolina Gomes, benzedeira e curandeira que utilizava, segundo o autor, a “medicina cabocla”, e Eunice Weaver, que ficou conhecida como “O anjo dos lázaros”, por seu exemplar trabalho cuidando de enfermos com hanseníase. Esta última foi a primeira mulher a receber a Ordem Nacional do Mérito, no grau de Comendador, e a primeira pessoa sul-americana que recebeu o troféu Damien-Dutton (SICCHIERA, 1986). 

No segundo livro, nenhuma menção aos povos originários, e poucas menções a mulheres, exceto para referir-se às esposas de homens considerados historicamente importantes. O mesmo acontece em outros livros e até mesmo no museu municipal de São Manuel. Isso demonstra a invisibilização e o apagamento da presença desses grupos subalternizados na história local e regional, o que se dá de maneira proposital e constitui uma violência ao expor bandeirantes, colonos e latifundiários como heróis do “desenvolvimento”, quando na realidade foram os precursores de uma série de violências que a destruição da biodiversidade do território geraram.

Imagem 2: Mapa da região administrativa de Sorocaba ampliado, com São Manuel no centro superior. 

Fonte: Municípios de São Paulo - Grande SP, Santos, Campinas (mapas-sp.com)

Segundo Gildo Sanches (1996), aqui encontravam-se plantas silvestres e medicinais como jenipapo, jabuticaba, copaíba, sucupira, sassafrás, baunilha, orquídeas, além de uma extensa fauna aquática de peixes como jaús, pintados, dourados, pacus, piracanjubas, mandis, piabas, camarões, curimbatás. Entre os animais terrestres existiam antas, veados pardos, capivaras, lontras, pacas, cutias, quatis, emas, veado galheiro (raro), variedade de macacos, macucos, jacutingas, jacus, patos e marrecos do mato, pombas, nambus, urus, pavões do mato, tucanos, papagaios, maritacas, e abelhas de diversas espécies. 

Preciso confessar que não conheço a grande maioria desses nomes, e menos ainda as espécies referidas. Atualmente grande parte da cidade serve apenas para o monocultivo de cana de açúcar da usina que aqui se instalou há muitos anos. Eu que nasci em 1999, já conheci um território devastado e uma população (humana e não humana) adoecida, por conta disso foi pouquíssimo o contato que tive com plantas e alimentos nativos, e os únicos animais que via eram gatos, cachorros, alguns pássaros, cavalos, vacas e bois quando saía para fora do perímetro urbano. 

A promulgação da Lei Pró álcool (decreto 76.593 de 14 de novembro de 1975) – Programa Nacional que visava incrementar a produção de álcool no país, facilitando financiamento para a modernização tecnológica das usinas açucareiras e destilarias – incentivou ainda mais a concentração de terras decorrente da aquisição de grande parte do território municipal pela usina, por conta disso muitos camponeses se viram obrigados a migrar para a cidade em busca de trabalho, – incluindo meu pai – conformando um grande processo de êxodo rural. 

No ano de 1950 a população da cidade era formada por 29.354 habitantes, sendo que 76% morava em área rural e apenas 24% na área urbana, já no final da década de 1980 esses números se inverteram radicalmente para 70% de população urbana e 30% rural. Segundo o Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010), a população total é de 38.342, sendo 97% urbana. Os dados de 1996 – Não encontrei dados mais atuais. Na verdade, foi muito difícil encontrar os dados apresentados de forma online, para isso foi preciso recorrer à Biblioteca Municipal Dr. Francisco Câmara Ferreira, de São Manuel – demonstram claramente o monopólio de terras pela usina: 40% das terras municipais serviam ao monocultivo de cana de açúcar, enquanto apenas 10% da vegetação total era de matas naturais (400 hectares). (SANCHES, 1996)

Imagem 3: Colheita mecanizada de cana de açúcar da Usina São Manoel

Fonte: Com colheita de alta performance Usina São Manoel observa aumento de 7% de TCH - Revista RPAnews

Nos monocultivos de cana são utilizadas grandes quantidades de pesticidas: 75% do território do estado de São Paulo é pulverizado frequentemente, e 60% desse total se dá nos canaviais de açúcar – são utilizados principalmente o Roundup (com o princípio ativo glifosato) e o 2,4-D (BOMBARDI, 2017). Essas substâncias além de poluir as águas, o solo e o ar, causando graves problemáticas ecológicas, também provoca intoxicação nos seres vivos, conforme denunciado abaixo o caso do Roundup em uma pesquisa com ratos:

[...] Séralini e colaboradores (2014) divulgaram os resultados de um estudo de longa duração realizado com ratos, durante todo o seu tempo de vida. Os animais tratados com água contendo o herbicida Roundup (0,1 partes por bilhão) ou com milho transgênico tolerante a Roundup, apresentaram cerca de 70 diferenças estatísticas significativas relativas aos parâmetros: hematológicos (hematócrito, plaquetas, neutrófilos, linfócitos, monócitos, volume corpuscular médio, concentração corpuscular média de hemoglobina), químicos clínicos (albumina, nitrogênio ureico do sangue, creatinina, fósforo, sódio, cloreto, fosfatase alcalina, cálcio, potássio), químicos urinários (creatinina, fósforo, potássio, clearence da creatinina, pH, cálcio), peso dos órgãos (coração, cérebro, fígado), peso corporal e modificação de peso, e consumo alimentar dos animais. Decorrentes destas alterações, aumentou o risco de desenvolvimento de câncer de mama nas fêmeas, câncer e danos ao sistema gastrointestinal, rins e fígado, principalmente dos machos, além de tempo menor de vida para os animais de ambos os sexos (...). Parecer técnico de Sonia Hess e Rubens Onofre Nodari ao Ministério Público Federal em 23/05/2015 apud BOMBARDI,. 2017, p. 37-38)

Larissa Bombardi (2017) afirma que entre 2007 e 2014 foram comprovados 2055 casos de intoxicação por agrotóxicos no estado de São Paulo, sendo que entre esses, 580 são mulheres. As mulheres afetadas sofrem também com a saúde sexual e reprodutiva debilitada, há muitos casos de abortos espontâneos, infertilidade, má formação do feto e transmissão de substâncias tóxicas através da amamentação. Vale ressaltar que esses números são referentes apenas aos casos notificados. (BOMBARDI, 2017)

Somados, todos os casos de intoxicação notificados junto ao Ministério da Saúde, contabilizaram mais de 25 mil intoxicações por agrotóxicos, o que significa uma média de 3125 por ano, ou 8 intoxicações diárias. Cabe esclarecer, entretanto, que se calcula que para cada caso de intoxicação notificada, tenha-se 50 outros não notificados. [...] Por conseguinte, é possível que tenham havido 1.250.000 (um milhão e duzentas e cinquenta mil) intoxicações por agrotóxico de uso agrícola neste período. (BOMBARDI. 2017, p. 54)

Em uma comparação entre o Brasil e a União Europeia (UE), Bombardi (2017) demonstra os índices assombrosos de tolerância em relação à presença de agrotóxicos na água “potável” em nosso país. A tolerância para o 2,4-D é 300 vezes maior que na UE, enquanto para o glifosato é 5000 vezes mais alta. Isso provoca consequências negativas também para a própria agricultura, que muitas vezes se traduzem em problemáticas sociais. Um exemplo é a dificuldade de infiltração no solo e o subdesenvolvimento das raízes, que é a causa de enchentes recentes na região de Botucatu, cidade vizinha de São Manuel.  

Outra questão que chama a atenção é a quantidade de tentativas de suicídio utilizando os referidos agrotóxicos, no estado de São Paulo 40% dos casos de intoxicação ocorreram nesses casos, somando 884 das 2055 intoxicações notificadas. Esses dados demonstram a forma como a população rural tem sido violentada pelas ações dos grandes latifundiários e negligenciada pelo estado nacional cada vez mais. Como afirma Larissa Bombardi (2017): “Contaminação ambiental, intoxicações, tentativas de suicídio, malformações congênitas e doenças crônicas são a parte mais aparente de um problema que remonta a questão agrária brasileira e aos mecanismos do capital se reproduzir no campo.” (BOMBARDI. 2017, p. 60). 

É importante situar essas violências decorrentes do agronegócio dentro do contexto da colonização e da colonialidade (QUIJANO, 2005), ou seja, a colonização das mentes dos povos originários presentes em nosso continente. Essa colonialidade perdura até os dias de hoje, impondo padrões de pensamento e de comportamento do norte para o sul global, agindo da mesma maneira que um monocultivo: aniquilando a diversidade em prol de uma homogeneização de uma determinada cultura, que configura-se como uma hegemonia ao invisibilizar qualquer alternativa, por conta disso, Vandana Shiva (2002) chamou essa forma de dominação de monocultura de mentes. 

A partir dessa visão homogeneizadora, o agronegócio destrói a biodiversidade ao impor uma única espécie de cultivo comercializável ao longo de infinitos hectares, enquanto assume como pragas e pestes as espécies da fauna e da flora nativas de cada território. Essa prática está entrelaçada a uma visão hierárquica da humanidade como separada e superior à natureza, derivada dos ideais impostos pela colonização, e que se contrasta com as diversas cosmovisões dos povos originários, que veem o mundo de maneira integrada e interativa, onde não havendo distinção entre o mundo humano e o mundo natural, todos os seres vivos e não vivos se relacionam através de uma biointeração equilibrada, na qual cada ser tem suas funções ecológicas no ciclo biocósmico. Esta é a filosofia originária do Bem viver, que propõe uma vida equilibrada entre as atividades sociais e a conservação da natureza, compondo assim a sociobiodiversidade que os povos indígenas praticam ancestralmente e que nos serve de inspiração. (ACOSTA, 2016; KRENAK, 2021)

Referências

ACOSTA, A. O Buen Vivir: uma oportunidade de imaginar outro mundo. In: SOUSA, C. M., org. Um convite à utopia [online]. Campina Grande: EDUEPB. Um convite à utopia collection, vol. 1, pp. 203-233. 2016. ISBN: 978-85-7879-488-0. DOI: 10.7476/9788578794880.0006.

BOMBARDI, L. M. 1972 - Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia / Larissa Mies Bombardi. - São Paulo: FFLCH - USP, 2017. 296 p. ISBN:978-85-7506-310-1.

CENSO 2010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9662-censo-demografico-2010.html?edicao=9758&t=resultados> Acesso em: 22 de mar. de 2022.

KRENAK, A. Caminhos para a cultura do bem viver. Organização: Bruno Maia. 2021. ISBN: 978-65-00-13561-9.

QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: A colonialidade do saber: euRocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Edgar Lander (org.). Coleção Sur Sur, CLACSO. Rio de Janeiro, 2005. PP. 227-278.

SANCHES, G. São Manuel ontem e hoje. Apoio cultural: Prefeitura de São Manuel, Departamento Municipal de Cultura. Impressão: EVERGRAF, Barra Bonita - SP. 1996.

SICCHIERA, L. Raízes de São Manuel. Composição, fotolito e impressão: Imprensa oficial do Estado S.A. IMESP. São Paulo, Brasil. 1986.

SHIVA, V. Monoculturas da mente: perspectiva da biodiversidade e da biotecnologia. São Paulo: Gala, 2002. Trad. Dinah de Abreu Azevedo.


Joselaine Raquel da Silva Pereira, Doutoranda pelo Programa de Pós Graduação em Integração Contemporânea da América Latina (PPGICAL) da UNILA. Mestra pelo Programa de Pós Graduação Interdisciplinar em Estudos Latino-americanos (PPGIELA) da UNILA. Bacharel em Antropologia - Diversidade Cultural Latino-americana e graduanda em História (Licenciatura) pela mesma universidade.

Revisão: Rosangela de Jesus Silva, professora de História da América Latina da UNILA


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