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Modernidade, Estados Nacionais e Capitalismo na Europa: Uma síntese sobre o papel da racialização do mundo

 “O conhecimento é em si mesmo um poder.” Francis Bacon 

A afirmação de Bacon torna-se fonte propulsora para a elaboração deste trabalho, o qual, busca sintetizar como se constrói dentro da psique eurocêntrica uma centralidade com relação a sua participação na história mundial, sobretudo, científica, a qual, na fundamentação empírica da realidade não é verídica.

 Bacon, cita-nos que o conhecimento é por si mesmo poder, sendo assim, constitui-se não por forças externas, mas sim, pelas suas próprias impulsões. O interessante de tal afirmação é ter como interlúdio que o conhecimento ao qual Bacon se refere, está vinculado a um local “provinciano”, a Europa.

Surgem, portanto, os questionamentos de que, se o conhecimento é produzido por ele mesmo, não poderá haver uma pluralidade deste. Essa premissa, realiza-se como toda produção eurocentrada, baseada em uma universalidade a qual, na prática efetiva da realidade, não existe, nem mesmo para a Europa, cuja constituição é plural e diversa.

A sintomática de tais perspectivas, universalistas, evidenciam não na necessidade da exclusão de uma alteridade, mas na prática de uma subalternização deste outrem. Isto, é a base fundamental do pensamento eurocêntrico, a necessidade de uma dicotomia entre o ego europeu e o restante do mundo que se configura como alter/alius.

As dimensões dessa perspectiva eurocêntrica se estruturam, sobretudo, nas categorias historiográficas da “revolução científica” e do “renascimento cultural” que ocorreram durante os séculos XVI - XVIII. Esses períodos são, historicamente, responsáveis pela deturpação, através de um viés eurocentrista para a construção de identidades nacionais, do que houvera sido a ciência até então. 

Neste contexto, vemos por exemplo narrativas das quais ilustram a Grécia Antiga como berço da Filosofia, ou da ciência como um todo. Tais afirmações são construídas para a consolidação de uma identidade até então inexistente, há a necessidade de se criar nos cidadãos ibéricos, francos, romano-germânicos, um sentido de pertencimento a um passado em comum, que na prática é ilusório ou construído. Com isso, o resgate de um passado que busque a gênese destes elementos culturais e linguísticos que unifiquem essa camada heterogênea são as potencialidades primordiais durante o período supracitado.

Os paradigmas criados nesse contexto tornam-se as fontes de avanço do que hoje compreendemos como Modernidade, conceito o qual Michel-Rolph Trouillot define como, 

 “Modernidad” es un término turbio perteneciente a la familia de palabras que podemos etiquetar como “universales noratlánticos”. Con esto quiero decir, palabras heredadas de lo que ahora llamamos Occidente –que prefiero llamar Atlántico Norte, y no sólo por una precisión geográfica– que proyectan la experiencia del Atlántico Norte a una escala universal, escala que ellas mismas han ayudado a crear.(Trouillot, 2001, p.79)

Ou seja, modernidade é um conceito forjado na premissa de reivindicar uma centralidade histórica para a Europa tendo em contexto a história global, sobretudo, dentro de um horizonte de pioneirismo, seja científico, social, religioso, cultural, econômico, etc. 

Modernidade e seus excluídos

Ilustração de Caio Gomez, quadrinista e ilustrador brasiliense.  Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2025/01/7026028-o-que-e-capitalismo-racial.html Acesso em: 12/02/2025

Nas premissas, supracitadas, percebemos sintomaticamente como o conceito de modernidade, inicia-se dentro de uma ideologia eurocêntrica - Branca e cristã - exercendo suas bases em prol de um sistema global muito bem consolidado na base da exploração e subjugação.

Enrique Dussel, intelectual argentino propõe-nos que “devemos opor-nos à interpretação hegemônica no que se refere à interpretação da Europa moderna à “Modernidade” (DUSSEL, 2005.). A posição de Dussel, em síntese, parte de uma reflexão de encarar as participações inerentes das populações “latino-americanas” e de outros locais colonizados, na construção do que se configura como Modernidade.

Portanto, seria uma forma de perceber a Modernidade de maneira compartilhada, e assim, interligada a uma história global, não somente sob o viés centralista europeu, fugindo, portanto, daquilo que Chimamanda Ngozi Adichie chamou de “o perigo da história única”(Adichie, 2019).

Todavia, a proposta de Dussel pode ser questionada em uma particularidade semântica de como se configura a categoria historiográfica modernidade, a qual se relaciona, indissociavelmente, dos aspectos de dominação, subordinação e racialização do mundo, aos quais, os países colonizados foram forçados a vivenciarem. Portanto, a participação na modernidade, seja por bem ou por mal, se estrutura em uma participação sangrenta e violenta.

Gayatri Chakravorty Spivak (2010), intelectual indiana, já nos alerta sobre as perversidades da violência e controle colonial no que se refere às narrativas evidenciadas sobre determinados fatos históricos. No que se configura como a dicotomia entre “Voz Alta” e “Voz Baixa”, Spivak incita-nos a repensar o papel da voz dos silenciados nos papéis históricos - aqui incluído a Modernidade - ao questionar se os subalternos podem falar?. Aqui se estrutura uma problemática pertinente ao questionar a categoria de modernidade, está só é possível em existência através de seu viés de violência, sendo, portanto, fonte de uma co-existência com o processo colonial. 

O intelectual Martiniano Frantz Fanon (2021) defende que a ruptura com a configuração colonialista só seria possível por via da violência, sendo portanto, fonte da revolução. Essa ruptura potencializaria o fim da dialética hegeliana entre o Senhor e o Escravo, pois sem um, o outro não existiria. Ou seja, a Modernidade é, em síntese, parte dessa configuração colonialista, a qual devemos romper.

O produto da irracionalidade: Capitalismo e escravidão

As problemáticas até aqui elucidadas tecem um horizonte de como se configura a criação desse “eu” em que a Europa se estabelece. Neste sentido, fixamos aqui que sua construção de identidade é, como qualquer outra, criada culturalmente, fugindo portanto da ideia de uma possível identidade natural egocêntrica. Uma das principais características, que sintetiza a personificação dessa identidade europeia, é o sequestro epistêmico.

A ciência grega não pertence à Europa. A cristandade de Constantino não inicia-se na Europa. As ferramentas desenvolvidas para a expansão marítima, como o astrolábio - criado por Hiparco de Nicéia, nascido na Bitínia local próximo a Ásia Menor -, não são criações europeias. Nem mesmo a construção de uma produção escravocrata é europeia, como bem elucida o antropólogo senegalês, Tidiane N’diaye (2019) em seu livro “O Genocídio Velado”, o qual aborda um tráfico negreiro arábo-muçulmano que seria anterior ao transatlântico. Neste sentido, não há pioneirismo europeu até aqui, mas eis a pergunta, no que se confere, portanto, a centralidade europeia?

A resposta é baseada nos fatos supracitados, não há centralidade europeia, pois está é uma criação da psiquê eurocêntrica e, atualmente norte ocidental - já que podemos englobar os Estados Unidos - sendo assim, elucidamos a dialética de Hegel (1992), “A consciência-de-si é em si e para si quando e porque é em si e para si para uma Outra; quer dizer, só é como algo reconhecido”, ou seja, a consciência da centralidade-identidade europeia só poderia existir através da construção, e por consequência, a identificação de um outro como “outro”. Só existe Europa, porque existe alteridade à ela; Só existe colonizador, pois existe colonizado; Só existe capitalismo, pois existe escravidão. Todavia, não se confere em uma relação controversa, entre algo e seu antagônico, mas sim, numa relação de dependência, para que se conceba o “eu” o “outro” necessita ser nomeado, hierarquizado, subalternizado, etc. 

Referindo-se a dinâmica entre capitalismo e escravidão, partimos da incorporação de um sentido prático de como se desenvolve o mercantilismo, outra categoria historiográfica, que desempenharia a primeira etapa do que hoje constituímos como capitalismo. Essa por sua vez, baseia-se na exploração exacerbada para o acúmulo de mais-valia. Nessa prática, o tráfico negreiro transatlântico é central, como já elucidado pelo historiador trinitário-tobagense, Eric Williams nos anos 40,

Para a Grã-Bretanha, esse comércio era principalmente o comércio triangular. Em 1718, William Wood disse que o tráfico de escravos era “a fonte e origem de onde os outros negócios fluíam”. (Grifo adicionado) (Williams, 2012, p.57)

Ele prossegue sua análise ao citar que,

O comércio triangular proporciona assim um estímulo triplo à indústria britânica. Os negros eram adquiridos como artigos manufaturados britânicos; transportados para as plantações, produziam açúcar, algodão, anil, melaço e outros produtos tropicais, cujo beneficiamento criava novas indústrias na Inglaterra; enquanto a manutenção dos negros e seus donos nas plantações propiciava outro mercado para a industria britânica, a agricultura da Nova Inglaterra e a pesca da Tera Nova. (grifo adicionado) (Williams, 2012, p.58)

As reflexões de Williams limitam-se ao contexto britânico, mas, não diferem em suma do contexto colonial luso-hispânico, sobretudo, quando temos como base que o comércio de escravizados pelo Atlântico foi, em densidade populacional e econômica, maior no contexto português e espanhol. Neste sentido, as dinâmicas que por ventura desenvolvem a Europa como Estados Nacionais Modernos é indissociável do contexto escravocrata.

Não obstante a isso, podemos analisar nos contextos pós-coloniais, como elucida Achille Mbembe (2001) e Stuart Hall (2003), que as configurações estruturais das sociedades, anteriormente colonizadas, segue com resquícios das práticas coloniais, entre elas, o racismo. Com isso, podemos definir a necessidade inerente para a existência do capitalismo é a manutenção de um racismo estrutural.

Através dessa síntese sobre a construção da centralidade-identidade europeia, assim como, o desenvolvimento e a construção de uma categoria historiográfica, seria a Modernidade que fornece espaço para a reafirmação dessa centralidade. Podemos definir que a construção do que se confere como modernidade, atravessa perspicazmente três principais pilares: 1. A configuração de uma racionalidade de dominação, debruçada no roubo epistemológico e no epistemicìdio sistemático; 2. a construção de um ego conquiro secular, que seria os Estados Nacionais, que exercem ao longo de cinco séculos uma dominação e manutenção das práticas coloniais de maneira sistêmica; e, por fim, 3. o desenvolvimento de um sistema econômico social, o capitalismo, que valida a posição social-global da Europa - e Estados Unidos - como centro do mundo. Estes três principais pilares são sustentados por uma dialética entre o “eu” e o “outro”, onde este último está intrinsecamente relacionado à marginalidade; a subalternização; a subjugação e a morte. Suas construções são as bases de um pensamento egocêntrico que desenvolveu parte do que concebemos como conhecimento científico desde o século XV.

Por fim, defendemos que o caminho para repensarmos essas construções não seria anexar as vozes baixas/silenciadas, como propõe Dussel em seu conceito de Transmodernidade, mas sim, através de uma ruptura elementar das configurações colonialistas que sustentam o status quo em moldes eurocêntricos, onde, o racismo; o patriarcado e a divisão classista da sociedade, surgem como modelo indiscutível. O fim da modernidade se estabelece, portanto, na destruição das estruturas sociais vigentes, como propunha Frantz Fanon.

Referências:

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. Companhia das Letras, 2019.

DIOP, Cheikh Anta. A unidade cultural de África. Moçambique: Editora Pedago, 2016.

DUSSEL, Enrique. Europa, modernidade e Eurocentrismo. In. _____. A colonialidade do

saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales. 2005.

FANON, Frantz. Por uma revolução africana: textos políticos. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2021.

HALL, Stuart. Quando foi o pós-colonial? Pensando no limite. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich; MENESES, Paulo; DE LIMA VAZ, Henrique C. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 1992.

KI-ZERBO, Joseph. Introdução Geral. História Geral da África I: metodologia e pré história da África. Brasília: UNESCO, 2010

MBEMBE, Achille. On the postcolony. Univ of California Press, 2001.

N’DIAYE, Tidiane. O Genocidio Ocultado Investigação Historica sobre o trafico negreiro Árabo-Muçulmano. Gradiva, Lisboa. Tradução de Tiago Marques. 2019.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar. UFMG, 2010.

TROUILLOT, Michel-Rolph. Moderno de otro modo. Lecciones caribeñas desde el lugar del

salvaje. Tabula Rasa, n. 14, p. 79-97, 2011.

WILLIAMS, Eric. O Comércio Britânico e o Comércio Triangular. In. ______. Capitalismo

e escravidão. Editora Companhia das Letras, 2012. pg. 57-58.


Victor Evangelista Santos, estudante de História – Licenciatura na UNILA

Revisão: Rosangela de Jesus Silva, professora da área de História da UNILA


 


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