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Autoria da imagem: Amy Rollo (unsplash) Localização: Isla del sol Bolívia Link de acesso: https://unsplash.com/pt-br/fotografias/duas-pessoas-em-plataforma-de-concreto-cinza-cercaram-corpo-dagua-NGjDM-XBc-c |
Os séculos XV e XVI foram marcados, na história europeia, pelo surgimento dos Estados-nação – que substituíram a estrutura medieval – e pela transição do feudalismo para o capitalismo. Inicialmente, esse processo deu origem ao capitalismo comercial (até meados do século XVIII), seguido pelo capitalismo industrial (do final do século XVIII até meados do século XX) e, posteriormente, pelo capitalismo técnico-científico-informacional (do pós-Segunda Guerra Mundial até os dias atuais). Esse período – conhecido como Nova Era, Renascimento ou simplesmente Modernidade – também se destacou pelo surgimento e fortalecimento da burguesia, pela secularização, pelas reformas protestantes e, sobretudo, pelas grandes navegações que culminaram no chamado “descobrimento” do continente americano.
Os europeus trouxeram para as Américas doenças, destruição e, sobretudo, um modelo de produção capitalista fundamentado na colonização e no trabalho escravo. Para isso, traficaram pessoas do continente africano, submetendo-as à escravidão e à desumanização. Além disso, estabeleceram o racismo como uma estratégia de dominação, essencial para a consolidação e manutenção do poder colonial (González, 2021). Com o passar dos séculos, a escravidão foi abolida e o colonialismo formal chegou ao fim, mas essas mudanças fizeram parte de um processo de adaptação do capitalismo às novas demandas sociais. Dessa forma, o Ocidente reformulou suas estratégias de controle, garantindo a permanência de sua influência global.
A substituição da mão de obra escravizada deu lugar a um trabalho remunerado, porém com salários que, muitas vezes, mal cobrem as necessidades básicas – perpetuando, assim, a exploração e a desumanização. No que se refere ao suposto fim da relação metrópole-colônia, Grosfoguel (2008) argumenta que essa ideia não passa de um mito. Segundo o autor, embora as administrações coloniais europeias tenham sido desmanteladas nos territórios americanos, isso não significou uma verdadeira independência, mas sim a transição para uma nova forma de dominação: a colonialidade.
O capitalismo global/ocidental é implacável e esmaga qualquer obstáculo que se interponha aos seus interesses. Sua lógica privilegia a ganância e a acumulação incessante de capital em detrimento da vida, gerando pobreza, miséria e fome para muitos, enquanto poucos concentram riquezas de forma descontrolada. A natureza é reduzida a um mero recurso explorável, resultando em sua degradação e ameaçando não apenas a humanidade, mas inúmeras outras formas de vida. Como reflexo desse modelo predatório, o mundo tem testemunhado uma escalada de desastres ambientais — terremotos, tsunamis, furacões, enchentes — e crises sanitárias, como a pandemia da COVID-19, que ceifou cerca de sete milhões de vidas.
Embora a crise sanitária tenha impactado economias em todo o mundo, a China foi o país que mais soube capitalizar sobre a recessão global. Durante a pandemia, enquanto as bolsas de valores entravam em colapso e o preço das ações de grandes corporações ocidentais despencava, o governo chinês aproveitou o momento “para comprar as ações de todas aquelas grandes empresas transnacionais que operavam em seu território” (Figueiredo, 2020, p. 323). Como destaca o sociólogo porto-riquenho Ramón Grosfoguel (1956) em uma entrevista concedida em 2020, esse movimento pode ser entendido como uma forma de “expropriação via mercado”, na qual a China assumiu o controle dessas empresas dentro de suas fronteiras e busca agora expandir essa estratégia em escala global.
A recente crise do coronavírus, a guerra na Ucrânia, a ascensão da China como potência econômica e geopolítica e, agora, o retorno de Donald Trump à Casa Branca, acompanhado de seus ataques até mesmo a aliados, representam ameaças significativas às potências tradicionais, incluindo os próprios EUA (Estados Unidos da América). Em outras palavras, o mundo pode estar testemunhando o início de uma nova era: a Era Chinesa. Diante desse cenário, o capitalismo global ocidental parece se aproximar de um ponto de inflexão.
Nesse contexto, torna-se essencial uma reflexão teórica e conceitual sobre a teoria decolonial, explorada no tópico a seguir, para posicionar a América Latina nesse embate entre gigantes. Afinal, independentemente de quem saia vitorioso, o triunfo continuará sendo do capitalismo e do imperialismo. Cabe, portanto, a nós, latino-americanos, o desafio de construir alternativas pautadas no respeito mútuo e na dignidade humana.
A Teoria Decolonial: Crítica à Colonialidade e Alternativas ao Eurocentrismo
A decolonialidade é um processo de resistência e de desconstrução que busca transcender a colonialidade e o colonialismo, desafiando as estruturas de poder e conhecimento impostas pela modernidade eurocentrada. Trata-se de reconhecer a voz de países, comunidades e grupos sociais historicamente oprimidos, promovendo sua autonomia e reconhecendo suas epistemologias, culturas e identidades como legítimas. Além de uma crítica ao colonialismo, a decolonialidade propõe alternativas ao modelo hegemônico, visando a construção de sociedades mais justas e plurais. Dessa forma, atua como uma forma de reparação histórica, resgatando narrativas silenciadas e ampliando espaços de autodeterminação e dignidade.
A teoria decolonial surge como uma abordagem crítica à modernidade e à colonialidade, destacando como as relações de poder instauradas durante o colonialismo permanecem ativas até hoje. Segundo essa perspectiva, a colonialidade não se encerrou com a independência formal das nações, mas continua operando através de estruturas políticas, econômicas, epistêmicas e sociais que perpetuam a hierarquia entre o Ocidente e o resto do mundo. Essa matriz de poder colonial influencia a distribuição do trabalho, a construção do conhecimento e até mesmo a concepção da democracia, que muitas vezes ignora ou desqualifica formas alternativas de organização social e política.
Ramón Grosfoguel propõe que a teoria decolonial deve ir além da crítica pós-colonial, pois a modernidade europeia não apenas impôs uma hierarquia econômica, mas também um sistema de conhecimento que marginaliza saberes não ocidentais. Esse eurocentrismo epistêmico se manifesta, por exemplo, na forma como as universidades globais priorizam a produção intelectual europeia e norte-americana, enquanto conhecimentos oriundos de povos indígenas, africanos e asiáticos são frequentemente tratados como secundários ou meramente folclóricos.
Diante desse cenário, a América Latina ocupa um papel central na discussão decolonial, pois é um território historicamente marcado pela imposição colonial e pela resistência a essas estruturas. Ao adotar uma postura crítica frente ao capitalismo global e suas formas de dominação, a teoria decolonial propõe não apenas a denúncia da colonialidade, mas também a construção de alternativas baseadas no respeito à diversidade epistêmica e na busca por justiça social global.
América Latina e a Reconfiguração da Ordem Global
Diante do possível declínio do imperialismo econômico dos EUA e de seus aliados europeus, os países latino-americanos enfrentam o desafio de fortalecer sua autonomia e consolidar a região como um bloco estratégico no cenário global. Essa reestruturação abre espaço para a redefinição das relações internacionais e para a construção de novos paradigmas que rompam com a dependência histórica das potências ocidentais. Nesse contexto, a teoria decolonial surge como um referencial essencial para a formulação de sociedades baseadas na valorização dos movimentos sociais e raciais, promovendo uma independência que não seja apenas formal, mas também epistemológica e cultural.
Pensadoras como Lélia González (1935-1994) e Gloria Anzaldúa (1942-2004) oferecem contribuições fundamentais para esse processo ao introduzirem conceitos como a “nova mestiza” (Anzaldúa, 2005) e a “Amefricanidade” (González, 2021), que enfatizam a necessidade de os povos latino-americanos desenvolverem suas próprias identidades e epistemologias, afastando-se das imposições ocidentais. A incorporação desses debates amplia a compreensão da diversidade da região e fortalece um pensamento crítico que desafia a colonialidade ainda presente em diversas esferas da sociedade.
Com a ascensão da China, a estrutura econômica global certamente sofrerá mudanças significativas (Figueiredo, 2020). Para Ramón Grosfoguel, o modelo chinês opera de maneira distinta do ocidental, uma vez que, ao contrário das potências europeias e dos EUA, que exploram a mão de obra local dos países periféricos, a China leva seus próprios trabalhadores quando investe em infraestrutura no exterior. Desse modo, os cidadãos do país receptor não são diretamente explorados, pois a maior parte da força de trabalho é composta por chineses.
É importante ressaltar que as reformas econômicas implementadas na China a partir da década de 1970 transformaram profundamente o país em uma potência industrial, mas também consolidaram um modelo de exploração da força de trabalho que persiste até os dias atuais (Guimarães, 2012; Nonnenberg; Lima; Bispo, 2021). A criação de Zonas Econômicas Especiais (ZEEs) e a abertura ao capital estrangeiro favoreceram a instalação de indústrias voltadas para exportação, garantindo baixos custos de produção por meio da limitação dos direitos trabalhistas e da repressão sindical. Assim, segundo Guimarães (2012), o próprio governo chinês promoveu a desvalorização da força de trabalho como estratégia para se manter competitivo no mercado global, reforçando um modelo de desenvolvimento pautado na precarização da mão de obra, com salários reduzidos e jornadas exaustivas.
Se, por um lado, a estratégia chinesa pode sinalizar o fim da exploração direta da mão de obra dos países dominados pelos dominantes, por outro lado, também levanta preocupações sobre os impactos no mercado de trabalho local. A substituição do modelo ocidental pelo chinês pode gerar desemprego em massa, agravando problemas sociais como pobreza e fome. Nesse sentido, faz-se necessário que a América Latina evite simplesmente trocar um explorador por outro e, em vez disso, construa bases para impor condições justas e sustentáveis para a região. Para tanto, é essencial fomentar políticas que priorizem a autonomia econômica e que garantam melhores condições de trabalho, promovendo um desenvolvimento que, de fato, atende às demandas de suas populações.
Referências Bibliográficas
ANZALDÚA, Gloria. La conciencia de la mestiza: Rumo a uma nova consciência. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 13, n. 3, pp. 704-719, 2005.
FIGUEIREDO, Angela. Geopolítica, capitalismo global e o impacto da pandemia da COVID-19 no mundo. Entrevista com Ramón Grosfoguel. Revista do PPGSC - UFRB - Novos Olhares Sociais, v. 3, n. 1, pp. 321-331, 2020.
GONZÁLEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas, v. 15, n. 1, 2021.
GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Revista Crítica de Ciências Sociais, pp. 115-147, 2008.
GUIMARÃES, Alexandre Queiroz. A economia política do modelo econômico chinês: o Estado, o mercado e os principais desafios. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 20, n. 44, p. 103-120, nov. 2012.
NONNENBERG, Marcelo José Braga; LIMA, Uallace Moreira; BISPO, Scarlett Queen Almeida. Políticas industriais na China nos últimos 30 anos. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Rio de Janeiro, 2021, 49p.
Mickenson Jean Baptiste. Economista. Pós-Graduando em Economia e graduando em Geografia (Bacharelado) pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana.
Revisão: Rosangela de Jesus Silva, professora da área de História da Unila.