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Autoria da imagem: Giovanni Ferri (pexels)
Localização: Santo André – SP Link de acesso: https://www.pexels.com/pt-br/foto/cidade-meio-urbano-casas-residencias-10224376/ |
A urbanização é parte essencial da sociedade capitalista. De fato, antes das revoluções industriais na Europa Ocidental, nem mesmo o termo “urbano” era utilizado em seu sentido atual. Harvey (2009) considera o processo urbanístico como uma estratégia para absorver o ‘capital excedente’ gerado pelo capitalismo. Esse capital excedente corresponde à parcela do retorno obtido pelos capitalistas que deve ser reinvestida. Inseridos nessa dinâmica, os capitalistas são constantemente pressionados a decidirem o destino desse ‘ganho extra’ após cada investimento realizado.
Trata-se de um círculo vicioso que gera uma relação de dependência entre a organização e o funcionamento das cidades e a circulação do capital excedente. Quando esse capital deixa de ser reinvestido, as sociedades e economias entram em colapso, impactando diretamente a vida das pessoas, aumentando o desemprego e desencadeando crises sistêmicas. Não por acaso, as cidades estão em constante transformação, mesmo grandes metrópoles aparentemente saturadas - como Nova Iorque, Londres e São Paulo - seguem em construção.
Nos séculos XVIII e XIX, a Revolução Industrial levou à migração em massa de trabalhadores para as cidades, devido à necessidade de proximidade com as fábricas que, por sua vez, instalavam-se perto das forças motoras (como rios) em razão das limitações tecnológicas presentes à época. Esse movimento gerou condições precárias de vida, afetando a saúde e a produtividade. Para otimizar a exploração da mão de obra, os capitalistas passaram a investir em infraestrutura e na organização das cidades. Assim, a urbanização tornou-se um processo vinculado à alocação do ‘capital excedente’, responsável pela (re)organização da sociedade urbana.
Marginalidade Urbana na América Latina: Exclusão e Desigualdade Estrutural
É evidente que a industrialização e a urbanização na América Latina seguiram caminhos distintos daqueles dos países desenvolvidos. Pois, na periferia capitalista, a dependência econômica em relação ao mercado internacional dificulta a criação de uma demanda efetiva por mão de obra, resultando na marginalização de amplos setores da população urbana. Para Oliven (2010), a urbanização constitui a base para o surgimento das favelas e da pobreza no mundo capitalista, particularmente na América Latina. Assim, o autor cunhou o termo ‘marginalidade urbana’ para descrever um fenômeno complexo que envolve aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais, e que juntos contribuem para a perpetuação da exclusão social e das desigualdades nas cidades latino-americanas.
Em suma, a marginalidade urbana na região está profundamente relacionada à pobreza, à escassez de oportunidades econômicas, à ineficiência de políticas públicas e à corrupção. Recursos destinados a programas sociais e ao desenvolvimento, frequentemente, são desviados ou mal administrados, agravando a vulnerabilidade da população. Além disso, a falta de participação cidadã, a sub-representação política, a discriminação racial, étnica e de gênero, bem como o acesso limitado à educação de qualidade e a oportunidades culturais, contribuem significativamente para a exclusão de certos grupos, restringindo suas perspectivas de desenvolvimento e integração social (Oliven, 2010).
A precariedade da infraestrutura urbana também desempenha um papel central na marginalização de grande parte da população. A expansão desordenada das cidades, devido à ausência de planejamento adequado, resulta na proliferação de assentamentos informais, caracterizados pela falta de saneamento básico, transporte público ineficiente e acesso precário a serviços essenciais - como saúde e segurança. Esse cenário reforça a segregação socioespacial, tornando ainda mais difícil a mobilidade social e o rompimento do ciclo de pobreza. Assim, a marginalidade urbana não é apenas um reflexo da desigualdade econômica, mas também uma consequência direta da exclusão institucionalizada nas metrópoles latino-americanas.
O Paradoxo da Urbanização Brasileira
A urbanização e as desigualdades sociais são fenômenos contrapostos que coexistem nas cidades brasileiras, porém, uma convivência viabilizada pelo processo de ‘gentrificação’ (Marco; Santos; Möller, 2020). Esse fenômeno caracteriza-se pela valorização imobiliária que leva à substituição da população de baixa renda por grupos com maior poder aquisitivo. Segundo Lefebvre (2001), a mercantilização do espaço urbano, impulsionada pelo capitalismo e pela especulação imobiliária, é o principal fator responsável pela reprodução das desigualdades e pela exclusão de grupos marginalizados.
Por sua vez, Maricato (2002) aponta a falta de compromisso da urbanização brasileira para com a realidade como um fator determinante para a marginalidade e a exclusão social. As decisões urbanísticas são orientadas por interesses seletivos, favorecendo apenas uma parcela da sociedade e perpetuando as desigualdades já existentes, um fenômeno que a autora denomina de “ideias fora do lugar”. Como resultado, uma parte significativa da população constrói cidades ilegais, que acabam sendo ignoradas e excluídas dos planos diretores formulados pelos gestores públicos, caracterizando o que Maricato chama de “lugar fora das ideias”.
Com a industrialização, o Brasil passou por um intenso processo de urbanização e metropolização, resultando no aumento e na concentração da demanda por mão de obra e das atividades econômicas. Esse cenário impulsionou a migração e a formação de novos centros urbanos, onde as condições de vida eram (e ainda são) marcadas pela precariedade (Santos, 2013). Uma das características mais marcantes das metrópoles brasileiras é a profunda desigualdade socioeconômica e a concentração da pobreza. Riqueza e miséria coexistem e são geradas simultaneamente. Enquanto uma pequena parcela da população usufrui das oportunidades urbanas, garantindo acesso a bens de consumo, infraestrutura e segurança, a maioria enfrenta uma realidade adversa, onde a luta diária pela sobrevivência se impõe como uma constante.
O salário do trabalhador brasileiro jamais esteve atrelado ao custo da moradia, mesmo durante o período desenvolvimentista. Consequentemente, as favelas e os lotes ilegais, aliados à autoconstrução, tornaram-se elementos estruturais do crescimento urbano no contexto da industrialização (Maricato, 2002). Esse processo reflete a exclusão da população de baixa renda do mercado formal de habitação, forçando-a a ocupar territórios irregulares sem acesso adequado a infraestrutura e serviços básicos. Assim, a expansão das cidades ocorreu de maneira desigual, beneficiando os interesses do capital enquanto grande parte da classe trabalhadora foi empurrada para a informalidade habitacional.
Desafios da Urbanização na Venezuela
Venezuela é um dos países mais urbanizados da América Latina. Um processo acelerado que foi acompanhado de um conjunto de consequências, como o surgimento de numerosos assentamentos informais, sem os requisitos básicos capazes de fornecer aos moradores uma vida digna. Mesmo na precariedade, por falta de alternativas, essas pessoas consideram os ranchos como seu lar. O país inteiro apresenta essa forma de construções irregulares, porém, nem todas são iguais ou com a mesma origem. Elas apresentam aspectos específicos. No caso deste trabalho, leva-se em conta apenas os ranchos da capital do país, Caracas.
A região é altamente urbanizada, resultado em grande parte do êxodo rural que ocorreu durante o século XX. Nativos e estrangeiros migraram para a capital após serem atraídos pelas inovações tecnológicas da época, em busca de empregos e melhorias na condição de vida. Sem dúvida, pelo grande número de pessoas morando na capital, os assentamentos informais começaram a surgir: desde expansões arbitrárias em casas já construídas até construções levantadas do zero com materiais pouco seguros.
Mais de meio século depois, as áreas irregulares continuam se expandindo, acompanhadas pelo agravamento da precariedade e da insalubridade. As moradias apresentam altos níveis de deterioração, refletindo as condições adversas enfrentadas por seus moradores, em sua maioria de baixa renda. Muitos desses lares ainda permanecem na ilegalidade, o que contribui para a marginalização de seus habitantes. Além disso, persiste um preconceito tanto por parte da sociedade quanto do Estado que, em algumas ocasiões, se recusa a oferecer serviços básicos a determinados indivíduos apenas pelo fato de residirem em assentamentos informais (os ranchos).
Segundo Fernandes (2011), os moradores desses assentamentos enfrentam dificuldades no acesso ao crédito bancário, principalmente devido à falta de documentos legais, o que intensifica a violência econômica e aprofunda as desigualdades já existentes. Para mitigar essa situação, o governo atua por meio do “Ministerio del Poder Popular para Vivienda y Hábitat”, cujo objetivo é oferecer suporte aos cidadãos que vivem em áreas marginalizadas. Entre as iniciativas implementadas, destacam-se a ‘Gran Misión Vivienda Venezuela’ (GMVV) e a ‘Fundación Misión Hábitat’ (FMH), que se concentram na construção de edificações seguras, equipadas com infraestrutura básica, visando à realocação de famílias que residem em habitações precárias.
É importante destacar que quaisquer projetos a serem implementados passam por um processo de investigação prévia: as entidades governamentais realizam visitas às comunidades, dialogam com grupos organizados - conhecidos como ‘Comités de Tierra Urbana’ - que participam na coleta de informações essenciais para auxiliar na compreensão do contexto local e na elaboração de um plano de ação adequado. Uma particularidade desses grupos é a forte participação das mulheres, que desempenham um papel central na organização do lar e frequentemente lideram os processos legais. No entanto, apesar da existência desses projetos, a ausência de um monitoramento eficaz e de avaliações contínuas contribui para a deterioração da situação, comprometendo a efetividade das iniciativas.
Referências bibliográficas
FERNANDES, Edesio. Regularização de Assentamentos Informais na América Latina. Lincoln Institute of Land Policy, 2011, 56 p.
HARVEY, David. A liberdade da cidade. GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 26, pp. 09 - 17, 2009.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Tradução: Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Centauro, 2001, 143 p.
MARCO, Cristhian Magnus De; SANTOS, Paulo Junior Trindade Dos; MÖLLER, Gabriela Samrsla. Gentrificação no Brasil e no contexto latino como expressão do colonialismo urbano: o direito à cidade como proposta descolonizadora. Revista Brasileira de Gestão Urbana, 2020.
MARICATO, Ermínia. As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias: Planejamento urbano no Brasil. In A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2002.
OLIVEN, Ruben George. Marginalidade urbana na América Latina: aspectos econômicos, políticos e culturais. In: Urbanização e mudança social no Brasil [online]. Rio de Janeiro, Centro Edelstein, 2010.
SANTOS, Milton. A Urbanização Brasileira. 5. ed., 3. reimpr. - São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.
Mickenson Jean Baptiste : Economista. Pós-Graduando em Economia e graduando em Geografia (Bacharelado) pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana.
Omar Miguel Olivares Agreda: Graduando em Antropologia - Diversidade Cultural Latino-Americana pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana.
Revisão: Rosangela de Jesus Silva: professora da área de História da Unila