O artigo do doutor em história e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Fernando Nicolazzi “Entre “letras & armas”, a História Como Disputa: Considerações Sobre a Historiografia Luso-brasileira no Século XVIII faz algumas considerações sobre a prática da historiografia no universo luso-brasieiro do século XVIII, que era usada para conhecimento histórico(escrita sobre a história do país e aspectos geográficos) e para a política(escrita para demonstração do poder). A prática da produção historiográfica estava dando seus primeiros passos e, por isso, era necessário delimitar e definir conceitos, métodos e regras.
![]() |
Fonte: Capa do livro ‘As Injustiças de Clio, O Negro na Historiografia Brasileira’ de Clovis Moura, 1990. |
Segundo (Nicolazzi, 2010, p.42) por trás disso estava outro ponto muito importante para o campo da História quanto para o político: o papel do discurso histórico. O discurso histórico se apresentava como uma ferramenta fundamental para a política imperial portuguesa, pois, por meio dele, eram estabelecidas e engrandecidas as figuras e também a corte portuguesa. Devido a essa percepção, logo começaram os debates sobre métodos corretos ou não para produzi-lo, já que demandava veracidade e seriedade. Estabeleceu-se então a importância da narração, da cronologia, das provas documentais e dissertações.
As dissertações funcionavam como debates discursivos na busca pela melhor versão dos fatos. O objetivo era persuadir o outro com base em informações factuais e cronológicas e na capacidade argumentativa de cada um.
A questão sobre a factualidade das informações se tornou um elemento de várias discussões e críticas feitas por portugueses a brasileiros e vice-versa quanto a forma de se produzir materiais sobre a História. Era comum a produção de falsos documentos, o que levou, conforme (Nicolazzi, 2010, p.47), os teóricos a darem mais atenção à crítica do que se escrevia nesse gênero discursivo.
Outros hábitos comuns na produção historiográfica da época eram: 1 - Escrever com base em comentários de outras pessoas sobre determinados assuntos que, supostamente, diziam que algo teria realmente acontecido e; 2 - Produzir textos sobre o passado a partir da elaboração de hipóteses por meio da dedução lógica.
A dedução lógica como forma de se conhecer o passado, gerava informações incertas, já que, sem os rigores para a produção historiográfica desenvolvidos em tempos posteriores, as deduções eram atravessadas por visões estereotipadas e religiosas do mundo sobre, por exemplo, os indígenas. Um exemplo trazido por (Nicolazzi, 2010, p. 48) é quando menciona o senhor Luís Sequeira da Gama que, em uma de suas dissertações sobre história política, em que desenvolvia seus argumentos afirmativos e negativos sobre o fato de os indígenas terem política ou não antes da chegada dos portugueses, cita os indígenas como bárbaros.
Essa parte traz uma informação sobre um fato ainda presente na realidade do Brasil, já que, muitas vezes, ao se falar sobre cultura negra e indígena, as pessoas têm ainda uma visão estereotipada e preconceituosa sobre esses grupos. Eles são analisados com certo misticismo, como se sua cultura fosse algo exótico e impossível de ser compreendida. Além disso, algumas pessoas veem suas cosmovisões e cosmo-vivências como algo ligado a forças malignas de seres primitivos.
Assim como Nicolazzi(2010), o autor Clóvis Moura no capítulo “Rocha Pita ou Palmares Pelo Avesso” do seu livro “As Injustiças de Clio: O Negro na Historiografia Brasileira” traz também o tema da produção historiografica, da importância do discurso histórico e da veracidade dos fatos, assim como fala dos temas principais que eram escritos na época: informações sobre a história do país, elementos geográficos e grupos étnicos. Esse capítulo do livro fala sobre a forma como se retratava o negro durante os séculos XVII e XVIII e mostra como o que se escreve, as letras, se tornam uma ferramenta poderosa para demonstrar um ponto de vista específico.
O senhor de engenho Rocha Pita(1660-1738) foi um dos que se enveredou no campo da produção historiográfica como tantos outros homens brancos da elite. Em seus escritos, sempre que falava da geografia do país, do colonialismo, da fundação de vilas e cidades ou de personalidades importantes, optava pela estima e engrandecimento, assim como quando falava sobre o direito dos senhores de escravizados. No entanto, seu discurso era muito diferente ao se referir aos negros, que eram coisificados e vistos com valor somente quando ajudavam militarmente ou quando mencionados como máquinas de trabalho.
Um dos pontos importantes do texto é quando (Moura, 1990, p.55) menciona as narrações de Pita em relação ao Quilombo de Palmares, mais especificamente, a Guerra de Palmares. Em sua narração “histórica”, Pita, utilizou-se de licença poética - adequada a outros gêneros, mas não a produção historiográfica - para escrever sobre eventos que não aconteceram ou que não possuíam provas, como dizer que Zumbi dos Palmares se matou. Tal informação se tornou um problema ao ser reproduzida por outros escritores sendo repassada até a época da publicação de Moura na década de 1990.
Os dois autores, Nicolazzi(2010) e Moura(1990), trazem um tema primordial para os dias atuais no Brasil - onde informações e fatos históricos são revistos, algumas vezes com intenções maldosas para apoiar discursos e ideologias preconceituosas - assim como foi durantes os séculos passados. A temática é a da importância da seriedade no processo de produção historiográfica. Suas obras são essenciais na medida em que, ao discorrerem sobre historiografia, trazem exemplos referenciais para construção argumentativa.
Essas referências, trazem em si não somente a história da historiografia e a forma como personagens são retratados, mas também demonstram que as pessoas escrevem com base em seu lugar dentro da sociedade, mencionando suas profissões e concepções de mundo. Os homens que escreviam naquela época - homens brancos que eram senhores de escravizados, clérigos, entre outros - tinham sua perspectiva de mundo e escreviam com base nela. Dessa forma, é essencial que essa parte da história, que foi escrita sob um único ponto de vista, seja revisitada por atores sociais que estão do outro lado, como indígenas e negros.
Moura(1990) é muito feliz ao evidenciar os “dois lados da moeda”, pois mostra o discurso histórico de Rocha Pita(1160-1738) na posição de homem de posses na sociedade que enxergava o escravismo como algo normal e os escravizados fugitivos de forma pejorativa como vagabundos, bárbaros, sem individualidade e capacidade, assim como evidencia os equívocos históricos do mesmo e a falta de provas factuais. Da mesma forma, o autor traz fatos históricos sobre o retrato do homem negro e ecravizado na época, que evidenciam como ele era visto como algo sem valor quando não servia aos interesses do senhor, além das violências que sofria.
Em uma comparação em relação ao estilo de escrita dos autores, Nicolazzi(2010) apresenta uma linguagem mais acadêmica. Por outro lado, Moura(1990) tem o estilo de escrita mais simples e didático, mas não deixando de lado a formalidade e seriedade. No entanto, os dois textos se complementam ao abordar sobre a forma com que o discurso histórico é uma ferramenta de conhecimento e de poder, tendo uma relação direta com a política, assim como se completam ao falarem sobre métodos críticos na historiografia como a necessidade de provas documentais, da crítica, da contestação do que é dado etc.
Elementos estes que são de suma importância no trabalho do historiador que, ao escrever sob certo ponto de vista, carrega consigo seu olhar de mundo. (Moura, 1990, p.57), ao falar de historiadores tradicionais que não contestam informações apresentadas, faz uma crítica a esses profissionais descompromissados que repassam informações de forma repetitiva sem averiguá-las. Fazer isso é assumir um discurso político daquele que quer, a todo custo, que a sua visão seja a única e dada como certeira.
Referências:
MOURA, Clóvis. “Rocha Pita ou Palmares pelo avesso”. In. As Injustiças de Clio. O negro na Historiografia Brasileira. Oficina de Livros, 1990.
Nicolazzi, Fernando. Entre "letras & armas", a história como disputa: Considerações sobre a historiografia luso-brasileira no século XVIII. Almanack Braziliense. São Paulo, n°11, p. 40-51, mai. 2010.
Franciele Aparecida Felipe Profeta, estudante de História na UFOP.
Revisão: Rosangela de Jesus Silva – Professora da área de História da UNILA