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Conquista, Povos Originários e Historiografia: Janice Theodoro.

Em América Barroca, Janice Theodoro critica a visão de que os povos originários foram vencidos pela conquista da América. Segundo a autora, analisar a História em termos de vencedores e vencidos pressupõe que os sujeitos e grupos envolvidos em determinado processo possuam uma mesma cultura, que viveram o processo de modo parecido, o que não seria o caso da conquista. Os astecas, por exemplo, não tinham uma imagem negativa da morte.
Em virtude disso, questiona que tenha se formado uma América mestiça. Para Theodoro, mestiçagem significa assimilação e isto apenas seria possível entre povos com um mesmo padrão cognitivo, o que também não seria o caso de europeus e povos originários. O latino-americano dominaria universos simbólicos distintos e teria um comportamento “adequado” dentro de cada um deles: teria um comportamento na capela, outro no Carnaval e outro na “Festa dos Mortos” sem ser “incoerente”.
Por isso a autora se refere à América como barroca, pois seria policultural e não miscigenada. Barroca, pois não excluiria, apesar de hierarquizar os elementos étnico-culturais. A seguir um trecho do texto:
“O mito dos opostos: vencedores e vencidos
Vencedores e vencidos, na história dos descobrimentos e da colonização, é um tema de abordagem complexa. Difícil porque esta oposição entre as personagens envolvidas no conflito se constitui, enquanto dualidade, apenas quando analisada a partir do código europeu. Pode haver, dependendo da cultura estudada, outras ordens de significações nas quais a oposição não é explicativa.
Freqüentemente analisamos o processo de destruição das civilizações pré-colombianas como se tivéssemos diante de nós, numa mesma batalha, elementos capazes de manipular as mesmas regras, de modo igual. Isto não ocorreu na América porque estávamos diante de uma outra cultura.
Os vencedores criaram uma historiografia que procura decifrar, com maior ou menor amor, como nos lembra Todorov, o processo de dominação da população indígena. Seguindo este caminho, a racionalidade da empresa colonial é invocada para que se possa compreender o papel das civilizações pré-colombianas diante da obra colonial. O que escapa a este olhar analítico é considerado um enigma, fruto da barbárie e que precisa ser decifrado pelo pensamento moderno. Ao transformarmos a cultura européia em universal, nós a utilizamos como padrão único para decifrar e ordenar, hierarquicamente, todas as culturas. À medida que procuramos decifrar o Outro, aumentamos o poder da nossa narrativa supondo ser a nossa língua capaz de dar conta de todas as outras através de itinerários similares. Na verdade, o grande interesse pelos enigmas das culturas tidas como "exóticas" apenas indica o nosso apego a um universo ficcional cada vez que nos defrontamos com o desconhecido. Mantemos ainda hoje um certo gosto em desfazer as tramas da história, repetindo sempre os enredos europeus.
Quando nós supomos a possibilidade de descrever todas as civilizações, trabalhamos com a hipótese de uma memória unívoca, uma memória seqüencial, marcada pela idéia de progresso, onde os pré-colombianos se apresentam como os precursores dos europeus. Percorrendo a linha do tempo, passamos do confronto para a assimilação. O resultado final desta equação é a cultura latino-americana.
Perseguindo a cronologia sustentada por uma cadeia de eventos escolhidos a posteriori, reverenciamos a história iniciada pelos descobrimentos. Em seguida, valorizamos o conflito e o tornamos a raiz de nossa identidade. Ocorre que a nossa memória constitui-se de uma parte dessa história. Da outra parte, o que conhecemos, o que restou, são pequenos fragmentos esparsos que não se organizam com sentido.
Para responder a essa impossibilidade, recompomos uma seqüência e nela resgatamos o suposto movimento de oposição criado entre dominadores e dominados, realizando uma falsa idealização do sentido histórico. Por que precisamos resgatar o passado pré-colombiano da mesma forma como resgatamos o nosso? Talvez interromper o fio seja conviver com a sensação doesquecimento e da perda definitiva de algumas estruturas de significação das culturas pré-colombianas. Nós evitamos sempre nos defrontar com a morte, tememos a morte. Os indígenas a incorporavam dentro de uma outra estrutura. Ainda hoje as crianças mexicanas chupam pirulitos de caveiras.
Quando falamos em assimilação, supomos que duas culturas em choque possuam o mesmo padrão cognitivo. E isto não é verdade se tomarmos por base as culturas pré-colombianas e a cultura européia. Os indígenas puderam revelar aos missionários - quando queriam partilhar a sua história - o que conheciam como similar, e, portanto podia ser vertido para as significações do texto europeu. O reflexo da imagem no espelho exige a presença da figura. Se não conseguimos apreender a figura, na sua dimensão cultural, não podemos ter esta imagem representada. Rubén Bonifaz Nuno, a partir da imagem de Tláloc, nos mostra os equívocos daqueles estudiosos que só se apegavam aos textos escritos para compreender os indígenas. Não se podem verter significados, nem traduzir uma cultura pela outra.
Vencedores e vencidos é uma terminologia que nos leva a supor como possibilidade a resistência cultural. Diz respeito a um desejo profundo de se recuperar um universo perdido, de reabilitá-lo como raiz de uma identidade indígena nacional.
Nesse sentido, a cultura européia institui o Outro sem conhecer o conceito que permitiu ao indígena realizar suas formas de representação. Nós preferimos falar de resistência do que de morte. E não é a morte do Outro que nós tememos, é a morte de nossa cultura. Tememos a morte e o esquecimento.
Compor uma narrativa histórica como universal, tornar o padrão cognitivo único e criar uma identidade latino-americana é supor que a nossa imagem, plena e perfeita, possa refletir no espelho, ainda que a figura seja outra, ainda que não exista a figura.
Sonhos de ordem, precisão, perfeição - ou mesmo sonhos da Razão - são sonhos onipotentes, sonhos modernos, do homem moderno.” (Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/dh/ceveh/public_html/biblioteca/livros/ab/ab-p-l-capi1.htm>. Acesso em: 13 out. 2011).
Prof. Paulo Renato da Silva.

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