Marc Bloch já advertira, em Apologia da História, ou, O Ofício do
Historiador, que os historiadores não estudam o passado. Estudam, sim, os
homens “no tempo”. No entanto, o passado, enquanto objeto e constante presença,
compõe parte importante das preocupações dos historiadores. Pensar sobre o que
é passado tem feito historiadores e teóricos da história observarem que
convivemos com diferentes “passados”, ou diferentes visões sobre os mesmos.
No romance
inglês The Go-between, de
L. P. Hartley, publicado em 1953, há uma frase que se tornou emblemática de uma
forma específica de enxergar o passado: “O passado é um país estrangeiro; eles
fazem as coisas de forma diferente lá” (“The past is a foreign country; they do
things differently there”). Nessa visão, o passado é estranho, é diferente do nosso presente, e esse gesto de marcar uma
diferença entre nós (hoje) e eles (ontem) seria inaugural do pensamento
histórico. Separamos uma parte da realidade, a denominamos passado, e nos dedicamos a estudá-la, partindo desse princípio de
que encontraremos “lá” costumes, ideias e práticas diferentes das que vivemos
hoje. Ainda nessa linha, o historiador age de certa forma como um etnógrafo que
desembarca em uma sociedade distinta da sua.
Tal definição de passado depende também de
aceitarmos o passado cronológico,
isto é, uma instância no tempo separada de nosso presente. A definição de
presente é controversa, portanto o que entendemos como passado depende do
contexto (pode ser algo que ocorreu há 500 ou a 5 anos, dependendo do ponto no
tempo no qual marcamos a ruptura entre um e outro). O passado enquanto unidade cronológica se sustenta, ainda, em uma
particular definição de tempo. Compreendemos o tempo, nesse caso, como
homogêneo (formado por unidades idênticas entre si), discreto (cada unidade pode
ser entendida como um ponto em uma linha), e, especialmente, linear, direcional
(fluindo sem interrupção entre passado, presente e futuro) e absoluto
(transcorrendo independentemente de quem o observa). O estudo do passado, nesse
caso, coloca ao historiador a questão da distância
histórica, de seu afastamento em relação a seu objeto de estudo. Tal distância
não é apenas temporal (isto é, não se trata somente do tempo transcorrido entre
a época do historiador e a época que este estuda). Pode ser também uma
distância afetiva (marcando um distanciamento pessoal do historiador em relação
a seu tema), ou discursiva. Esta última remete à distância que o historiador
estabelece como observador; a micro história, por exemplo, cerra seu campo de
visão aproximando bastante o observador de seus sujeitos de pesquisa.
A relação entre o passado e nosso tempo
também demanda exame. Podemos compreender o passado como completo, como concebia o historicismo, entendendo-o como um conjunto
de épocas em sucessão, cada qual fechada, concluída. Ou podemos pensar o
passado como camadas sobrepostas ao presente (como em Braudel), camadas que
convivem com nosso tempo, interagem com ele, mantendo-se vivas em nossa
realidade.
Nesse último caso, convivemos com um
passado presente, vivo em nosso
tempo. A música do século XVIII que ainda escutamos, por exemplo, as heranças
materiais legadas por outras épocas, o patrimônio histórico. Mais significativo
ainda para o historiador são as formas por meio das quais o passado pode
aparecer para o presente: como motivo de admiração, de inspiração, ou de
ansiedade (como algo a nos assombrar), ou como objeto de fascinação, de
interesse intelectual ou estético.
O filme franco-italiano-iraniano O passado (2013), do diretor iraniano Asghar
Farhadi, trabalha a dimensão da presença por vezes assombrosa do passado no
presente.
Assim, o passado pode ser compreendido e
sentido de várias formas. Uma história como a latino-americana, rica em
tradições culturais, sociais e políticas, mas também em traumas, pode ter sua
compreensão enriquecida se pensarmos em como nossas sociedades hoje, na América
Latina, concebem o passado, e o que este desperta em nós atualmente.
Indicações
de leitura:
O livro de PAUL, Herman. Key
Issues in Historical Theory.
Nova
Iorque e Londres: Routledge, 2015, traz resumo das concepções de passado
expostas em nosso post. A obra de SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo, Companhia
das Letras; Belo Horizonte, MG Editora da UFMG, 2007 contém uma reflexão muito
rica sobre a memória e o passado na história latino-americana.
Prof. Pedro Afonso
Cristovão dos Santos