Diz-se muitas vezes que a
história é escrita pelos vencedores. Eles podem dar-se o luxo de esquecer,
enquanto os perdedores não conseguem aceitar o que aconteceu e são condenados a
remoê-lo, revivê-lo, refletir sobre como poderia ter sido diferente.
Peter Burke (2000, p. 83).
Entre 1864 e 1870 ocorreu uma das maiores guerras da história
latino-americana, a Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai. Portanto,
neste ano de 2020, faz 150 anos que a guerra terminou. As armas foram depostas,
mas a guerra não terminou completamente.
Em 1864, o Paraguai apreendeu o vapor brasileiro Marquês de Olinda e invadiu a Província de Mato Grosso. Foi uma resposta à invasão do Uruguai pelo Brasil. O Brasil tinha invadido o território uruguaio com o objetivo de depor o presidente Atanasio Aguirre, avesso à crescente influência brasileira no país. Aguirre era aliado de Francisco Solano López, o governante paraguaio. Em 1865, o Paraguai invadiu a Argentina com o objetivo de chegar à província brasileira de São Pedro do Rio Grande do Sul e, posteriormente, ao Uruguai. Brasil, Argentina e Uruguai se uniram na Tríplice Aliança e declararam guerra ao Paraguai. O conflito militar durou até 1870 e dizimou a população paraguaia e a economia do país. Apesar de a Tríplice Aliança ter se formado em 1865, consideramos que os episódios anteriores estão intimamente relacionados com a assinatura do acordo entre os três países, motivo pelo qual consideramos 1864 como o início do marco temporal da guerra.
Existe um grande debate sobre as causas da guerra, não necessariamente excludentes entre si. A Tríplice Aliança alegava que Solano López tinha um projeto expansionista sobre os países vizinhos, o que é endossado por alguns estudos. Outros apontam que a Tríplice Aliança atendeu aos interesses da Inglaterra, então principal potência mundial, que estaria preocupada em acabar com o “desenvolvimento” e a “autonomia” do Paraguai naqueles anos. Uma terceira linha importante de interpretação destaca que disputas entre os países da região provocaram a guerra – e não apenas o suposto projeto expansionista de Solano López. Um exemplo dessas disputas é a citada intervenção brasileira no Uruguai. Há muitas outras explicações. Independentemente da responsabilidade pelo início do confronto, o Paraguai foi o principal prejudicado pela guerra. Em La Paraguaya (c. 1879), o pintor uruguaio Juan Manuel Blanes (1830-1901) representou as duras consequências da guerra para o Paraguai:
O Paraguai é um país pobre, desigual e dependente dos seus
vizinhos em virtude da Guerra da Tríplice Aliança? A pergunta é adequada e
necessária, mas a resposta não é simples. É inegável que a guerra prejudicou
bastante o Paraguai. Ainda que os números variem muito, a guerra matou parte
expressiva da população adulta masculina, o que diminuiu a oferta de
mão-de-obra para reconstruir o país. Além disso, muitos sobreviventes migraram
para os países vizinhos, o que agravou o problema da mão-de-obra. É necessário
considerar, ainda, os que ficaram doentes e feridos. Os campos do país foram devastados
pela guerra, o que tampouco se recupera prontamente. Para pagar dívidas e
levantar recursos no pós-guerra, as terras públicas foram vendidas e compradas
sobretudo por empresas e investidores estrangeiros, estabelecendo vínculos de
dependência em relação aos países vizinhos.
Porém, outros fatores devem ser considerados. Entre 1932 e
1935, Paraguai e Bolívia lutaram entre si na Guerra do Chaco. Apesar da vitória
paraguaia, o confronto trouxe perdas econômicas e humanas e estimulou disputas políticas
internas em um contexto internacional que já era conturbado em virtude da crise
internacional de 1929. Enquanto outros países da região adotavam medidas para
diversificar a economia naquele pós-crise de 1929, Paraguai e Bolívia
precisaram canalizar os seus esforços na guerra que travavam.
As elites paraguaias também precisam ser responsabilizadas
pelos problemas do país, seja por serem coniventes ou omissas em relação à
pobreza, desigualdade e dependência do país em relação aos seus vizinhos. Essas
elites fizeram e fazem uso político da memória da Guerra da Tríplice Aliança.
Em qualquer cidade do país, os nomes das ruas e os monumentos são repletos de
referências a personagens e batalhas da guerra – talvez um dos melhores
exemplos dessa celebração seja o Panteão Nacional dos Heróis no centro de
Asunción. 1o de Março, dia do assassinato de Solano López por tropas
brasileiras, é o feriado nacional do “Dia dos Heróis”. Por um lado, a
manutenção dessa memória honra os que caíram, os sobreviventes e os seus
descendentes. Por outro, é um instrumento usado por essas elites para “unir” o
país, conter questionamentos à sua atuação e responsabilizar os países vizinhos
pelos problemas que não conseguem ou não querem resolver.
Contudo, o uso político da memória da Guerra da Tríplice
Aliança não existe somente do lado paraguaio. Peter Burke considera que os
vencedores “podem dar-se o luxo de esquecer”. Podem, mas nem sempre o fazem,
pois lembrar as vitórias ajuda a legitimar nomes e grupos políticos, econômicos
e sociais representados pelos vencedores. Um pequeno passeio por Foz do Iguaçu,
cidade de fronteira com o Paraguai, indica a presença da memória da guerra
entre nós brasileiros. Almirante Tamandaré, vencedor na Batalha Naval do
Riachuelo (1865) contra o Paraguai, não por acaso é patrono da Marinha
brasileira e, em Foz do Iguaçu, é homenageado com busto, praça e nome de
escola. Uma rua paralela à praça com seu nome se chama D. Pedro II, justamente
o governante brasileiro durante o confronto contra o Paraguai. O colégio mais
conhecido da cidade se chama Bartolomeu Mitre, que governou a Argentina nos
anos iniciais da guerra. Paralelo ao colégio encontramos a Rua Almirante
Barroso, outro nome de destaque na Batalha Naval do Riachuelo. A propósito, a
Batalha é comemorada anualmente pela Marinha do Brasil. Há outros exemplos na
cidade. Outros exemplos existem por todo o Brasil, interferindo até os dias
atuais na forma como lidamos com esse episódio de nossa história e nas imagens
que projetamos sobre os nossos vizinhos paraguaios, sua história e cultura.
Referências bibliográficas:
BURKE, Peter. Variedades de História Cultural. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
Para conhecer mais sobre a Guerra do Chaco:
CHIAVENATO, Júlio José. A Guerra do Chaco: leia-se
petróleo. São Paulo: Brasiliense, 1979.
RIVAROLA, Milda. El
Paraguay liberal. In: BOCCIA PAZ, Alfredo; RIVAROLA, Milda. Historia General
del Paraguay. Asunción: Fausto Ediciones, 2013. t. III.
Para conhecer mais sobre a guerra contra o Paraguai:
ALCALÁ, Guido
Rodríguez. Ideología Autoritaria. Asunción: RP Ediciones, 1987.
CHIAVENATO, Júlio
José. Genocídio Americano: a Guerra do Paraguai. São Paulo:
Brasiliense, 1979.
DORATIOTO, Francisco. Maldita Guerra: nova história da
Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
Paulo Renato da Silva, professor de História da América Latina dos cursos de História da UNILA