Em nossa nova postagem da série de temas em História da Ásia, publicadas sempre na última semana do mês pelo Blog de História da UNILA, destacamos dois olhares diferentes sobre alimentação, história e arquivística. Estudos em história da alimentação, em toda sua riqueza, permitem-nos pensar sobre a história de alimentos específicos, técnicas de preparação e hábitos de consumo ao longo do tempo, entre outras possibilidades. Entre as fontes a que recorrem historiadoras e historiadores para elaborar seus estudos sobre alimentação, encontramos documentos variados, como cadernos e livros de receitas, registros comerciais e textos literários, por exemplo. Nesta postagem, gostaríamos de apresentar uma discussão centrada nos alimentos vivos – como sementes ou preparados para consumo – e em sua capacidade de construir arquivos, a partir de uma experiência recente no Sul da Ásia. Boa leitura!
Arquivos comestíveis: história e biodiversidade no Sul da Ásia
Processos
de modernização agrícola que ficaram conhecidos como “Revolução Verde” foram
implementados, na década de 1960, em diferentes regiões do mundo em
desenvolvimento. Na Índia, sob a administração da Primeira-Ministra Indira
Gandhi, a Revolução Verde envolveu, a partir de 1967, o plantio de novas
variedades de sementes de trigo, arroz, algodão e amendoim, em diferentes
regiões do país. Foram identificados distritos com irrigação disponível e
comunidades de agricultores mais dispostas a cultivar as novas sementes e
aplicar fertilizantes químicos a suas plantações. A quantidade de alimentos
colhidos aumentou significativamente no período, reduziu a dependência da chuva
para o sucesso da colheita e, em consequência disso, medidas de combate à fome
puderam ser implementadas de forma mais sistemática (GUHA, 2007, p. 442-3).
A Revolução Verde teve, no entanto, vários efeitos colaterais no período de sua implementação, como o uso intensivo de agrotóxicos e suas consequências nefastas, empobrecimento do solo e êxodo rural, estimulado pela mecanização e decorrente redução da quantidade de mão de obra empregada no campo. Alguns desdobramentos da Revolução Verde ainda visíveis no presente são discutidos no documentário Os Despossuídos (The Dispossessed, 2017), de Mathieu Roy, filmado em vários países.
Nesta postagem, exploraremos uma consequência não antecipada específica da Revolução Verde, a perda da diversidade genética, assim como destacaremos seus impactos sobre o cultivo de um cereal em particular: o arroz. A partir da experiência do projeto Edible Archives (a princípio itinerante, mas, atualmente, estabelecido em Goa, na Índia) e da construção de bancos de sementes em vários lugares do mundo, refletiremos sobre relações possíveis entre arquivística e diversidade genética e alimentar.
“Possibilidades
para uma vida não alienada”, tema da Bienal de Artes de Kochi-Muziris 2018.
A partir do final da década de 1960, na Índia, a opção pelo plantio de sementes híbridas que garantissem alta produtividade promoveu a homogeneização e a redução das variedades de arroz cultivados. Embora alguns agricultores tenham mantido o cultivo de alguns tipos de arroz regionais para consumo próprio, muitos deles se perderam. Tendo em vista a importância do arroz para a alimentação cotidiana no subcontinente indiano, a perda da variedade deste cereal implicou também, em grande medida, empobrecimento em termos nutricionais e, em última instância, culturais. Como em outras partes do mundo, os alimentos locais figuram em narrativas orais, rituais religiosos e expressões artísticas diversas. Preocupações desta natureza atraíram, cerca de cinquenta anos depois, o interesse de cozinheiras e pesquisadoras como Anumitra Ghosh Dastidar e Prima Kurien, do projeto Edible Archives (Arquivos Comestíveis). Em 2018, elas puseram em prática planos anteriores de criar uma cozinha comunitária comandada por mulheres que combinasse culinária e pesquisa sobre tipos de arroz cultivados em diferentes regiões do país. Viajaram pelo subcontinente indiano, coletando variedades de arroz caídas no esquecimento, de cores e texturas múltiplas. Neste mesmo ano, integraram a Bienal de Artes de Kochi-Muziris, em Kerala, em um espaço do evento que refletia sobre os aspectos criativos, colaborativos e arquivísticos da alimentação. Durante três meses, serviram cerca de 40 variedades autóctones de arroz e ofereceram uma oficina chamada “Receitas de Arroz e Recordações”, que, além de palestras e demonstrações culinárias, incluiu o resgate de memórias e até mesmo músicas regionais sobre o arroz (RAMADURAI, 2019).
Conduzidos pelas cozinheiras e pesquisadoras indianas, pensemos, ainda que brevemente, sobre as possibilidades de construção de arquivos vivos, comestíveis. O projeto Edible Archives envolve pesquisa de fontes – neste caso, tipos diferentes de arroz –, documentação (registro de rituais e conhecimentos tradicionais associados ao cultivo e consumo de arroz) e conservação. Mas o que poderia substituir os procedimentos convencionais de formação de arquivos de documentos históricos? As práticas de cozinhar e degustar o arroz, responde a equipe do Edible Archives a uma entrevista do ano de 2019:
'Normalmente, nós pensamos em arquivos como algo escrito, guardado em uma biblioteca ou museu. Cada um de nós tem um arquivo próprio, que está relacionado a todas as nossas experiências e conhecimentos, e também a todas as experiências sensoriais que tivemos’, diz a chef Anumitra. Seguindo a mesma linha de raciocínio, um arquivo comestível é composto de toda a comida que já provamos. Embora seja facilmente negligenciado, o paladar é um dos modos essenciais pelos quais nos lembramos. (KOCHI BIENNALE FOUNDATION, 2019, p. 12, tradução nossa)
A ideia seria, portanto, não apenas preservar memórias do arroz (o que nos remeteria aos já mencionados conhecimentos tradicionais sobre o cultivo, preparo, degustação e empregos rituais do cereal) mas reativá-las a cada refeição preparada e servida. À primeira vista, temos a impressão de estar diante de um “arquivo efêmero”, uma vez que as refeições são consumidas e, a princípio, desaparecem do ponto de vista sensível. Entretanto, a rememoração da preparação de variedades de alimentos regionais pode estimular que alimentos, práticas agrícolas e culinárias sejam preservados, transmitidos e transformados através do tempo.
Variedades de
arroz servidas pelo projeto Edible Archives na Bienal de Artes de Kochi Muziris
2018
Na
porção final de nossa postagem, gostaríamos de comentar outra proposta de
conservação da diversidade genética afetada pela Revolução Verde: a construção
de bancos de sementes a partir da década de 1960. Otto H. Frankel, geneticista
de origem austríaca, foi um dos primeiros pesquisadores a defender a prática de
coletar e preservar sementes de plantas utilizadas na alimentação de seres
humanos como modo de evitar a perda irreversível de variedades regionais. Os
intensos debates em torno dos melhores métodos de idealização e implementação
dos bancos de sementes não serão reproduzidos e comentados aqui. Limitaremos
nossa exposição à explicação de que o método mais comumente adotado é o de
retirada das sementes de seu local de origem e de cultivo habituais e de
armazenamento em um local especialmente preparado para sua preservação. Entre
os bancos dedicados à preservação de arroz, podemos citar aquele mantido pelo
Instituto Internacional de Pesquisas sobre o Arroz (International Rice Research Institute), nas Filipinas.
A
finalidade principal desta estratégia seria permitir a recuperação, no futuro,
do material genético guardado nos bancos de modo a resgatar, na medida do
possível, a diversidade genética de uma região. A noção de latência é central,
neste caso. As sementes, como fontes históricas, forneceriam registros
semelhantes a fotografias de um momento de vida específico de uma planta.
Atuariam, também, como “procuradoras” das plantas vivas, uma vez que carregam
as informações genéticas e a possibilidade de trazer à vida novamente uma
variedade de alimento. “Os bancos de sementes funcionariam, desta forma, como
arquivos que tornam acessíveis, no futuro, registros do passado de um cultivo”
(PERES, 2016, p. 102, tradução nossa).
As
sementes plantadas em solos e ecossistemas posicionados em algum ponto do
futuro e em alguma área geográfica particular gerariam inúmeras possibilidades
de resgate (com as informações genéticas do passado) e de inovação (em um
terreno distinto das condições iniciais de preservação das sementes). Como em todo
processo de seleção de documentos que comporão um arquivo (ou de curadoria,
para a formação do acervo de um museu), reflexões sobre o que preservar
(quantas e quais sementes, de que variedades de alimentos), como preservar e a
finalidade da formação deste acervo são decerto importantes. Em um processo que
liga de forma tão inequívoca a conservação do passado ao futuro, não se pode
deixar de acrescentar a ponderação de que as escolhas relacionadas a um
“arquivo vivo”, como este representado pelas sementes, são indissociáveis do
valor que atribuímos ao futuro (PERES, 2016) – como indivíduos e como espécie.
Referências
GUHA, R. Leftward Turns. In: GUHA, R. India after Gandhi. The history of the world’s largest democracy. New York: Harper Perennial, 2008, p. 417-444.
KOCHI BIENNALE FOUNDATION. Eat. At Kochi-Muziris Biennale 2018, food become a creative arena for archiving, collaboration and community gathering. Kochi Contemporary, 2019, p. 12.
LAHIRI, J. O Xará. São Paulo: Editora Globo, 2014.
PERES, S. Saving the gene pool for the future: seed banks as archives. Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences, n. 55, 2016, p. 96-104. Disponível em: <https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1369848615001284?via%3Dihub> Acesso em: 15 set. 2020
RAMADURAI, C. Edible Archives Project Aims To Revive
Hundreds Of Vanishing Indian Rice Strains. National
Public Radio,
12 abr. 2019. Disponível em: <https://www.npr.org/sections/thesalt/2019/04/12/709979787/edible-archives-project-aims-to-revive-hundreds-of-vanishing-indian-rice-strains> Acesso em: 17
set. 2020
Websites:
Edible Archives: https://ediblearchives.com/
Kochi Bienalle Foundation: http://www.kochimuzirisbiennale.org/
Mirian
Santos Ribeiro de Oliveira, professora de História da Ásia na UNILA
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