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Quadrinhos e história: olhares sobre a Ásia e da Ásia

 

As histórias em quadrinhos, amplamente lidas ao redor do mundo, podem ser consideradas também como tema de estudo por pesquisadores de diferentes áreas. Na área da História, entre as possibilidades de abordagem dos quadrinhos como objeto de estudo, podemos indicar, por exemplo, a investigação de processos históricos relacionados à elaboração de histórias em quadrinhos – em âmbito regional, nacional ou transnacional (LENT; 2015; MAZUR e DANNER, 2014). Percebidos como fontes, os quadrinhos nos permitem conhecer e analisar, entre outras coisas, testemunhos e percepções sobre períodos e processos históricos específicos, em várias regiões do planeta.

Tomemos como exemplo alguns quadrinhos relacionados à Ásia, publicados em língua portuguesa. Comecemos pela categoria de memórias e testemunhos. Em Uma vida chinesa (2015), Li Kunwu, artista chinês, constrói, em diálogo com Philippe Ôtié, roteirista francês, um testemunho sobre a história da República Popular da China. Por meio de O Menino do Kampung, obra de inspiração autobiográfica de Lat, pseudônimo do cartunista malaio Mohammad Nor Khalid, conhecemos de modo sensível e belo a vida cotidiana de uma criança no interior da Malásia dos anos 1950. Do ponto de vista de percepções externas sobre regiões específicas da Ásia, as reportagens em formato de quadrinhos, escritas e desenhadas por Joe Sacco, por sua vez, oferecem-nos um olhar crítico do imperialismo estadunidense e de seus aliados a partir da segunda metade do século XX e, ao mesmo tempo, uma percepção empática em relação aos outros retratados: palestinos, iraquianos, indianos (SACCO, 2016). Temos, ainda, quadrinhos que se propõem a (re)construir narrativas históricas, oferecendo-nos oportunidades de reflexão sobre a (re)escrita da história. Entre nossos exemplos, destacamos uma história do império chinês, desenhada pelo cartunista coreano Woo-Young (2010), e duas histórias em mangá produzidas por uma associação de imigrantes japoneses em São Paulo – uma História do Japão em Mangá (1995) e uma História da Imigração Japonesa no Brasil em Mangá (2008).

Sita (ao centro) acompanha seu marido Rama (à esquerda) e seu cunhado Lakshamana (à direita) no exílio.  Página da versão original do livro Sita conta o Ramayana. Disponível em: https://tarabooks.com/shop/sitas-ramayana/  Acesso em: 19/07/2021

Duas obras sul-asiáticas traduzidas ao português nos levam adiante nesta exploração do mundo dos quadrinhos: Sita conta o Ramayana (2014) e Vejo a Terra Prometida: A Vida de Martin Luther King (2011). Ambas foram originalmente produzidas pela editora Tara Books, criada por Gita Wolf, em 1994. Sediada em Chennai, capital do estado indiano de Tamil Nadu, a editora independente experimenta modos de criação artística que aliam técnicas tradicionais de contação de histórias (do ponto de vista do desenho, da pintura e da oralidade) à linguagem moderna dos quadrinhos. Neste sentido, a reflexão sobre técnicas e linguagens artísticas é uma constante no trabalho do coletivo de escritores que compõem a editora, como explica Gita Wolf, em artigos incluídos no posfácio do livro Sita conta o Ramayana, obra que conduzirá nossa discussão nos parágrafos finais desta postagem. Voltaremos a Vejo a Terra Prometida em nova publicação do blog de História.

Sita conta o Ramayana é uma versão do conhecido épico Ramayana, tradicionalmente narrado de um ponto de vista masculino, que confere centralidade aos feitos de Rama, o príncipe exilado de Ayodhya. Na versão elaborada pela artista patua Moyna Chitrakar e pela escritora Samhita Arni, conhecemos a perspectiva feminina e feminista da história, recontada por Sita, esposa de Rama. Como relata a editora Gita,


Tivemos um diálogo extremamente interessante com os artistas da tradição patua – uma forma folclórica que associa performance, narrativa e artes visuais. A história é cantada ou recitada enquanto o narrador mostra um pergaminho pintado, apontando para a imagem que acompanha as palavras. (...) O contador de histórias adapta sua narrativa ao público, e seu repertório vai dos mitos tradicionais às notícias contemporâneas (WOLF, 2014b, p. 156).

Capa da versão original do livro Sita conta o Ramayana. Disponível em: https://tarabooks.com/shop/sitas-ramayana/  Acesso em: 19/07/2021


Para a construção da versão feminina do épico, o processo envolveu, em primeiro lugar, o desenho dos quadrinhos pela artista Moyna Chitrakar, feito como uma adaptação dos pergaminhos patua ao formato das novelas gráficas. A história contada por Moyna remetia a variações regionais da narrativa, que acrescentam ou modificam elementos à versão registrada em sânscrito pelo poeta Valmiki. Em segundo lugar, a escritora Samhita Arni redigiu o texto que acompanha a narrativa visual. Para tanto, dialogou com uma versão regional específica do Ramayana, a fim de explorar e destacar as possibilidades feministas desta rendição. O Chandrabati Ramayana, que inspirou o quadrinho publicado pela Tara Books, e a tradição artística patua são originários da mesma região, Bengala.


Chandrabati, que viveu no século XVI, foi uma das poucas mulheres a recontar a epopeia e parece ter sido inspirada pelas tradições orais já existentes do Ramayana. Essas canções e baladas talvez tenham sido criadas por mulheres, que cantavam ao trabalhar, dentro ou fora de casa, e decerto se identificavam com essa história de sofrimento e força feminina. Chandrabati sintetizava essas histórias orais numa narrativa que nunca chegou a terminar. Significativamente, ela se interessa menos pela glória do herói épico Rama, ou por sua coragem e bravura de rei. Ao contrário, toma o partido de sua esposa e rainha, a melancólica e triste Sita, que é sequestrada, resgatada, posta em dúvida e devolvida à floresta por seu marido devotado mas desconfiado. A arte de Moyna capta essa Sita – de olhos grandes, comovente e perseverante –, que reflete sobre seu destino. (Wolf, 2014a, p. 154-5)


A perspectiva feminina e feminista de Sita conta o Ramayana extrapola esta obra específica e permeia todo o trabalho da editora Tara Books, como destaca a própria equipe em seu website. Um feito importante, uma vez que, de acordo com LENT (2015), ao refletir sobre as várias décadas de pesquisa dedicadas aos quadrinhos produzidos na Ásia, a participação feminina no ramo permanecia pequena nas primeiras décadas do século XXI – seja como desenhistas, escritoras ou editoras.

 

Referências e sugestões de leitura:

 

ARNI, S. CHITRAKAR, M. Sita conta o Ramayana. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.

ASSOCIAÇÃO CULTURAL E ESPORTIVA SAÚDE. História do Japão em Mangá. Origem, desenvolvimento e tradição de um país milenar. São Paulo, 1995.

FLOWERS, A.; CHITRAKAR, M. ROSSI, G. Vejo a terra prometida. A vida de Martin Luther King. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.

KUNWU, L.; ÔTIÉ, P. Uma vida chinesa. 3 volumes. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2015.

LAT. O menino do Kampung. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2006.

LENT, A. Asian Comics. University Press of Mississipi, 2015.

MAZUR, D.; DANNER, A. Quadrinhos. História Moderna de uma arte global. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.

SACCO, J. Palestina. Uma nação ocupada. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2000.

SACCO, J. Reportagens. São Paulo: Quadrinhos na Cia, 2016.

SATO, F. N. BANZAI! História da imigração japonesa no Brasil em mangá. São Paulo: NSP-Hakkosha, 2008.

WOLF. G. Recontos femininos do Ramayana. In: ARNI, S. CHITRAKAR, M. Sita conta o Ramayana. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014a, p. 154-5.

WOLF. G. Patua Graphics. In: ARNI, S. CHITRAKAR, M. Sita conta o Ramayana. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014b, p. 156-7.

WOO-YOUNG, K. A arte da guerra. O nascimento do Império Chinês. Volume 1. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2010.

 

Website:

Tara Books

 

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Mirian Santos Ribeiro de Oliveiraprofessora de História da Ásia da UNILA.

 

 


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