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Registrando a história para louvar ou condenar: a concepção confuciana de história em A historiadora (2019)


Exibida pelo serviço de streaming Netflix, a série “A historiadora” (2019) é uma produção sul-coreana estrelando Shin Se-kyung. Sua trama remete aos “K-drama”, séries de diferentes gêneros produzidas na Coreia que têm se tornado cada vez mais populares globalmente. O enredo se passa na primeira metade do século XIX, durante a dinastia Joseon (1392-1897), e envolve quatro jovens que se tornam as primeiras mulheres a serem aprovadas no exame para historiadoras da corte, no rigoroso processo de seleção do serviço civil coreano. A série intercala diferentes enredos à história principal, que envolve a aproximação entre a “historiadora” que inspira o título, a personagem Goo Hae-ryung (Shin Se-kyung), e Yi Rim, o príncipe Dowon (interpretado por Cha Eun-woo).

A série retrata como seria a rotina dos historiadores na corte coreana, bem como as funções atribuídas à história naquele período. Os historiadores acompanham tudo o que se passa na corte, e assistem a todas as sessões oficiais e reuniões envolvendo o rei e seus oficiais. Sua função principal é registrar para a posteridade tudo que se passa, para que os atos dos governantes sejam julgados pelo futuro com base no sucesso ou fracasso do reino em suas políticas.

A historiadora Goo Hae-ryung, personagem interpretada por Shin Se-kyung. Imagem disponível em: https://thumbnails.kpopmap.com/2019/07/Rookie-Historian-Goo-HaeRyung-img-05-780.jpg Acesso em: 20/08/2021

Embora a trama se passe no século XIX, essa concepção e função da história era antiga na Coreia, e remontava aos princípios do Confucionismo. Antes de abordar os princípios confucionistas que fundamentaram a escrita da história na Coreia, vejamos como o confucionismo, uma tradição de pensamento e conduta chinesa, chegou à região. Na introdução de um capítulo sobre a relação entre budismo e política na Coreia do século XX, Sørensen relembra que, em regiões que hoje conhecemos como China, Japão e Coreia, houve, durante períodos significativos de suas histórias, soberanos absolutos. Tais soberanos situavam-se no topo de um sistema burocrático sofisticado e complexo, colocado em movimento por oficiais governamentais orientados pela tradição confucionista. O confucionismo é um sistema de pensamento e conduta abrangente, que abarca ética, filosofia, crenças religiosas, “o direito de implementar a norma social [considerada] correta”, e, em muitos casos, “o dever e o direito de decidir sobre questões de ortodoxia e heterodoxia em relação a outros tipos de fé e prática” (SØRENSEN, 1999, p. 127, tradução nossa). Ainda segundo o autor, devido à presença e força significativa do budismo no Leste da Ásia, a ascensão de governos confucionistas causou, com frequência, tensões e conflitos entre as novas configurações estatais e o budismo. Podemos acrescentar que indicou, também, em muitas fases, a expansão da influência cultural chinesa sobre o Leste Asiático.

Na Coreia, o budismo foi introduzido no final do século IV por um monge chinês, tornando-se a ponte de transmissão do budismo entre a China e o Japão (que travaria os primeiros contatos com esta doutrina e prática no século VI), como lembra Thussu (2013) ao discutir o resgate das origens indianas do budismo na Índia contemporânea.  Sørensen afirma que a tradição de pensamento budista se tornou a ideologia e religião predominante na Coreia, fundamentando as práticas de governo até o final da dinastia Koryo (918-1392). O declínio do budismo e a ascensão do confucionismo como crença prevalecente e fundamento para o exercício do governo estatal teve início no século XIV com a dinastia Choson [Joseon] (1392-1910). De forma gradual e sistemática, a influência budista sobre a sociedade coreana foi combatida – muitas vezes de forma violenta – e a tradição confucionista de governo e conduta cotidiana tornou-se dominante. As tensões entre oficiais (inclusive historiadores) e membros das cortes reais ainda ligados ao budismo, de um lado, e agentes confucionistas do aparato estatal, de outro, atravessaram os séculos, como será possível perceber nos debates sobre a escrita da história da Coreia, discutidos adiante.

Retomando nossa reflexão sobre as relações entre a tradição confucionista e a escrita da história na Coreia, observamos que, segundo Yŏng-ho Ch'oe, desde o chamado período dos “Três Reinos”, registros de uma história escrita segundo os princípios confucionistas podem ser detectados. O período dos “Três Reinos” corresponde à época dos reinos de Koguryo (primeiro século da Era Comum), Paekche e Silla (terceiro e quarto séculos E. C., respectivamente). Embora nenhum registro historiográfico desta época tenha sobrevivido, estima-se que obras históricas posteriores se inspiraram em escritos deste período. Por exemplo, no caso da primeira compilação da história de Silla, Yŏng-ho Ch'oe aponta que podemos encontrar referências a registros históricos daquele reino datadas de 545 E. C., onde consta como objetivo para a escrita da história “‘registrar bons e maus atos de reis e súditos para louvá-los ou censurá-los’ para a posteridade” (YŎNG-HO, 1980, p. 4, tradução nossa).

Durante a dinastia Koryo, fundada em 918 E. C., a história continua a ser altamente valorizada. Segundo Yŏng-ho Ch'oe, trata-se de um período de maior tolerância e convivência entre budismo e confucionismo. Na escrita da história, todavia, especialmente em suas relações com o poder, a ênfase confucionista no registro para o julgamento da posteridade se manteve. O sistema chinês de exames para o serviço civil foi adotado, e um Gabinete de História criado antes do fim do primeiro século da Era Comum. De acordo com Yŏng-ho Ch'oe, uma “estrutura elaborada e uma equipe de tamanho considerável, bem como outras evidências, sugerem que um esforço cuidadoso e sistemático foi feito para manter um registro administrativo diário (chamado de sijonggi), além de preservar este e outros registros históricos” (YŎNG-HO, 1980, p. 5, tradução nossa).

Nesse ambiente de forte valorização da história foi compilada a principal obra historiográfica da dinastia Koryo: a História dos Três Reinos (Samguk sagi), completada em 1145 por Kim Pu-sik (1075-1151), escrita no formato tradicional chinês de histórias dinásticas. Yŏng-ho Ch'oe também nos apresenta a concepção que guiou a obra: “revelar ‘os bons e maus atos dos governantes, a lealdade e as maldades dos súditos, a segurança e o perigo do país, e os atos pacíficos e rebeldes do povo’, para que pudessem fornecer lições para a posteridade”. Manteve-se, pois, a concepção confuciana de história, a “concepção de ‘louvar-e-condenar’”, segundo Yŏng-ho Ch'oe (YŎNG-HO, 1980, p. 6-7, tradução nossa).

Página do Samguk sagi. Disponível em https://archive.org/details/samguksagikwon15108800, acesso em 26/08/2021

A História dos Três Reinos, porém, revela tensões entre o budismo e confucionismo na história coreana, que influenciaram sua recepção posterior. No início do século XX, nos conta Yŏng-ho Ch'oe, historiadores nacionalistas coreanos criticaram severamente a obra, considerada sinocêntrica. O racionalismo confucionista que inspirou seu autor fez com que Kim Pu-sik excluísse do relato mitos populares sobre a história coreana, rejeitando o que seria parte da tradição folclórica do povo coreano e teria forte valor simbólico. Sua obra foi contrastada à do monge budista Iryon (1206-1289), autor das Memórias dos Três Reinos (Samguk yusa), compilada cerca de 140 anos depois da Samguk sagi. Ao contrário de Kim Pu-sik, que contou com apoio oficial, incluindo uma equipe de letrados para escrever sua história, Iryon trabalhou sozinho. A Samguk yusa registra lendas e histórias dos Três Reinos, complementando a obra anterior (por esse registro de tradições populares foi elogiada pelos mesmos historiadores nacionalistas do século XX críticos da Samguk sagi). Recentemente, um festival foi criado para celebrar o monge Iryon e o Samguk yusa, no templo Ingaksa, onde Iryon compilou os livros que compõem a obra, no final do século XIII.

Representação do monge Iryon, compilador da Samguk yusa. Imagem disponível em http://san-shin.net/Hwasan-Gunwigun-Ingaksa.html, e guardada hoje no templo de Ingsaka 

O valor da história seria reafirmado na dinastia Yi (Joseon), iniciada em 1392. Seu governo adotou princípios do neo-confucionismo, e é durante este período que se consolidam algumas das práticas retratadas na série “A historiadora”. A História de Koryo (Koryo sa), por exemplo, escrita e revisada entre os séculos XIV e XV, reafirmou os princípios confucionistas de uma história voltada para lições para a posteridade, com especial atenção aos fatores que levavam à glória ou declínio dos reinos. As tensões entre budismo e confucionismo também permanecem: embora a presença budista fosse fundamental para compreender o reino de Koryo, a obra não dedicou, segundo Yŏng-ho Ch'oe, nenhuma seção especial ao tema (YŎNG-HO, 1980, p. 10-11).

Além da escrita da história de épocas passadas, a consciência histórica do período aparece no cuidado com a manutenção dos registros do que se passava contemporaneamente na corte. Para isso, oito historiadores do Gabinete de Decretos Reais, cuja seleção era feita de forma rigorosa,

 

“acompanhavam o rei constantemente, e tornou-se uma prática estabelecida dos governantes não realizar nenhuma negociação oficial sem a presença de um historiador. Essa presença constante dos historiadores e o receio concomitante de terem seus feitos e palavras registrados para a posteridade frequentemente colocavam os governantes da dinastia Yi em uma posição defensiva. Desse modo, a história se tornou um instrumento efetivo de controle do poder e autoridade monárquicas durante a dinastia” (YŎNG-HO, 1980, p. 12, tradução nossa)

 

Outro preceito historiográfico do confucionismo era a manutenção da objetividade do historiador, que deveria ser imune a tendências facciosas. Yŏng-ho Ch'oe mostra como esse princípio agia não apenas sobre os historiadores oficiais, mas também sobre os historiadores particulares, como Yi Kung-ik (1736-1806), autor da Narrativa a partir do estudo de Yollyo (Yollyosil kisul). Yi Kung-ik explicava na obra querer seguir o ensinamento de Confúcio de ser apenas um transmissor, e não um criador, da história (YŎNG-HO, 1980, p. 16).

Para Yŏng-ho Ch'oe, foi a partir do final do século XIX, início do século XX, que a escrita da história na Coreia transformou-se, atenuando a influência confucionista em prol de uma escrita “moderna”, baseada nos princípios metodológicos do historicismo de origem europeia que se difundiram globalmente no século XX. Na Coreia, tais métodos chegaram inicialmente a partir de historiadores japoneses que escreviam sobre o país (YŎNG-HO, 1980, p. 16-17). Desse modo, o mundo retratado em “A historiadora” foi aos poucos cedendo lugar a outro, com novos espaços e funções para a história. A série também aborda a chegada de ideias científicas europeias à Coreia, em particular associadas às técnicas de vacinação desenvolvidas para o combate da varíola (desde o fim do século XVIII na Europa). Independentemente da verossimilhança histórica dessa e outras tramas da série (contestadas na página da Wikipedia em inglês da série, embora nem sempre com referências para embasamento), a historiografia tem mostrado que a recepção da ciência europeia por tradições locais no Leste da Ásia entre os séculos XVIII e XIX foi mais complexa do que a imagem tradicional de fechamento dessa região. Embora trate de contexto distinto, a historiografia japonesa, por exemplo, vem derrubando a percepção de um período de fechamento estrito do país a contatos culturais durante o período do shogunato Tokugawa (1603-1868). A cosmologia e astronomia europeias, por exemplo, foram recebidas no Japão do século XVIII e início do XIX sob um pano de fundo de concepções confucionistas, budistas e xintoístas (KARUBE, 2019, capítulo 8), por meio de traduções holandesas de obras de outros países da Europa (quando apenas os Países Baixos tinham permissão para comércio com o Japão).

Conhecer diferentes tradições de escrita da história, por meio de historiadores da historiografia como Yŏng-ho Ch'oe (que, para nós, atuam como mediadores), permite-nos pensar nas diferentes acepções e funções que a história pode ter, e como o lugar social e político do historiador pode variar dependendo do contexto. A tradição europeia (difundida para as Américas) também teve por muitos séculos uma história voltada para produzir lições para o presente (a história “mestra da vida”), uma história em que o historiador muitas vezes funcionava como juiz do passado. Concepções de objetividade e neutralidade por parte do historiador, e da positividade dos fatos históricos, muitas vezes são associadas ao historicismo europeu do século XIX, e podem suscitar aproximações. Ao mantermos um olhar histórico, porém, o cuidado com as comparações deve prevalecer: semelhanças aparentes de atitudes e concepções podem encobrir sistemas muito distintos de pensamento. Por isso, a história da historiografia tem sido considerada cada vez mais em perspectiva global (WANG, MUKHERJEE, 2008), abrangendo diferentes tradições de história e considerando as dinâmicas culturais que as marcam (FUCHS, STUCHTEY, 2013).

 

Referências e sugestões de leitura

 

FUCHS, Eckhardt; STUCHTEY, Benedikt. Across Cultural Borders. Historiography in Global Perspective. Rowman and Littlefield Publishing Group, 2013.

KARUBE, Tadashi. Toward the Meiji Revolution: The Search for “Civilization” in Nineteenth-Century Japan. Tóquio: Japan Library, 2019.

SØRENSEN, H. K. Buddhism and secular power in twentieth-century Korea.  In: HARRIS, I. (Ed.) Buddhism and politics in twentieth-century Asia. London and New York: Continuum, 1999, p. 127-152.

THUSSU, D. K. The Historical Context of India’s Soft Power. In: THUSSU, D. K. Communicating India’s Soft Power: Buddha to Bollywood. New York: Palgrave Macmillan, 2013, p. 45-72.

YŎNG-HO, Ch'oe. “An Outline History of Korean Historiography”. Korean Studies, Volume 4, 1980, pp. 1-27.

WANG, Q E., and MUKHERJEE, Supriya. A Global History of Modern Historiography. Harlow, England: Pearson Longman, 2008.


Mirian Santos Ribeiro de Oliveira, professora de História da Ásia da UNILA

Pedro Afonso Cristovão dos Santos, professor de Teoria da História da UNILA

 

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