A postagem desta semana retoma o tema da alimentação na Ásia, agora sob um foco diferente: a escolha de uma dieta específica, o vegetarianismo, em conexão com uma religião em particular, o budismo.
A opção por abster-se da ingestão de carne animal (e, no caso do veganismo ou vegetarianismo estrito, a evitação do consumo de alimentos e acessórios de origem animal, como ovos, leite, mel e couro) pode ser academicamente abordada de diferentes pontos de vista. Entre temas atualmente abordados, podemos citar como exemplos a relação entre vegetarianismo e saúde, preservação ambiental, direitos animais – tópicos tratados predominantemente de uma perspectiva secular, alicerçada em considerações éticas.
A adoção do vegetarianismo por razões religiosas também é um assunto frequentemente estudado. Em se tratando de religiões de origem sul-asiática, como o hinduísmo, o budismo e o jainismo, a formação de culinárias vegetarianas e a constante reinterpretação destas práticas alimentares são temas que nos permitem refletir sobre processos históricos que vincularam tais religiões e parte de seus sacerdotes e fiéis ao vegetarianismo.
Partindo do presente, dois documentários recentes orientam nosso recorte regional e temático nesta postagem: a culinária dos templos budistas no Japão e na Coreia do Sul. O documentário de curta de duração produzido pela NHK, emissora pública japonesa, chamado Through the Kitchen Window: Shojin Ryori, Buddhist Cuisine (Através da Janela da Cozinha: Shojin Ryori, Culinária Budista), produzido em 2018, é parte de uma série que explora práticas culinárias no Japão contemporâneo. No documentário sobre a culinária budista, acompanhamos a jornada de duas irmãs que adotam a culinária shojin ryori devido a problemas de saúde na família, e passam a organizar oficinas de alimentação vegetariana. O próprio título do vídeo indica que se trata de uma tradição específica de vegetarianismo, uma vez que a expressão shojin ryori se refere à comida vegetariana preparada em cozinhas de templos budistas. O segundo documentário que inspira nossa reflexão, ambientado na Coreia do Sul, é Sabores do Templo, a simplicidade da cura, de 2019, dirigido pela brasileira Lygia Barbosa. Por meio do depoimento de três monjas budistas, conhecemos suas visões sobre a relação entre alimentação, saúde, espiritualidade e vida comunitária, além de observar aspectos de práticas culinárias cotidianas em templos budistas sul-coreanos.
Pratos
da culinária vegetariana budista coreana, em material de divulgação da Ordem
Budista Jogye, em Seul, na Coreia do Sul. Imagem disponível em: https://koreatemplefood.com/eng/about/feature.html
Acesso em: 24/05/2022
É interessante destacar que a relação entre budismo e vegetarianismo é mais complexa do que parece à primeira vista. Os ensinamentos do Buda indicam a importância da conduta correta, orientada pelo princípio de não ferir outros seres vivos (com pensamentos, palavras e/ou atos físicos). Diante da impossibilidade de não ferir outro ser vivo, o praticante budista deve optar por infringir o menor mal possível. No que se refere mais diretamente à alimentação, a adesão a uma dieta vegetariana nem sempre era possível para os primeiros seguidores do Buda, que não cultivavam ou preparavam suas próprias refeições. Viviam de esmolas e doações e, se recebessem pratos com carne em sua composição, poderiam comê-los desde que a carne fosse considerada pura – ou seja, desde que o monge não tivesse visto ou ouvido o abate do animal e se considerasse que o animal não tinha sido morto especialmente para lhe servir de alimento (KAZA, 2005, p. 393 e 394). Com a expansão do budismo ao Leste Asiático, primeiro à China – no século I da Era Comum – e, a partir deste território, à Coreia (século IV) e ao Japão (século VI), a organização da vida comunitária dos monges se transformou (THUSSU, 2013). Abrigados em templos, os monges gradualmente passaram a cultivar alimentos e a preparar as próprias refeições. O processo de preparação da comida tornou-se parte da disciplina monástica e propiciou a formulação de uma culinária particular nos templos. É relevante mencionar que, no Leste da Ásia, predomina a tradição Mahayana do budismo, em que o esforço individual para se alcançar a iluminação coexiste com a graça concedida aos devotos por Buda (o Iluminado) e bodisatvas – seres prestes a alcançar a iluminação, mas que se abstêm do estado final de libertação com a finalidade de auxiliar os demais seres a deixarem a cadeia de (re-)nascimentos. A compaixão por todos os seres vivos e a concepção de que todos os seres, humanos e não humanos, são dotados de natureza búdica (ou seja, podem, um dia, alcançar a iluminação, assim como Buda) são valores enfatizados pela tradição Mahayana e que, frequentemente, aparecem como fundamentos da adoção de uma dieta vegetariana (KAZA, 2005, p. 394-5).
O chefe de cozinha Daisuke Nomura, em Tóquio, inspira-se na
culinária dos templos budistas japoneses para elaborar o cardápio de seu
restaurante. Imagem disponível em: https://www.nhk.or.jp/dwc/food/articles/97.html
Acesso em: 24/05/2022
A culinária vegetariana dos templos desenvolveu-se a partir do século VI, na China, por influência do Imperador Lu da dinastia Liang (circa 502-549) que vinculou os hábitos alimentares dos monges budistas ao vegetarianismo. A preparação de refeições vegetarianas inspiradas pela culinária dos templos também se difundiu entre praticantes leigos, a partir deste período, com graus variados de adesão e fidelidade a esta dieta. A culinária vegetariana foi transmitida aos templos de Japão e Coreia, onde ingredientes e práticas alimentares locais favoreceram a construção de cozinhas com cores regionais. No Japão, tal culinária fortaleceu-se em templos e comunidades zen-budistas, que se formaram na região entre os séculos XII e XIII a partir da transmissão de conhecimentos da tradição Ch’an chinesa. Dois estilos ou cozinhas vegetarianas foram então formados: fucha ryori, cujos pratos aromáticos eram servidos aos leigos e à comunidade monástica em ocasiões festivas; shojin ryori (“cozinha de abstinência”), uma culinária mais simples e, que, com o passar dos séculos se tornou-se quase sinônimo de culinária vegetariana budista (AMBROS, 2019, p. 12-3). Na Coreia, a cozinha dos templos budistas, sachal eumsik, fortaleceu-se durante a dinastia Goryeo (918-1392), em que a difusão do budismo atingiu seu ápice. Neste período, a comunidade leiga incorporou muitas das receitas vegetarianas originalmente preparadas nos templos budistas, aproximando a culinária vegetariana budista das tradições culinárias populares (SON e XU, 2013, p. 250-1).
Apesar das particularidades locais, a culinária dos templos budistas na Coreia e no Japão tem alguns elementos comuns: a comida preparada e servida nos templos é completamente vegetariana; o uso de vegetais com sabor e odor acres, fortes (como alho e cebola, por exemplo) é proibido; o sabor e o aroma original dos alimentos são valorizados e, por isso, a adição de temperos é limitada. Como resultado dessas escolhas, a comida dos templos tem sabor suave. Essas características têm suscitado, também, a associação desta culinária à saúde e ao bem-estar, o que tem, ademais, favorecido a ampliação dos públicos desta culinária. Para além de monges e leigos budistas, turistas estrangeiros se interessam cada vez mais pelas experiências de práticas saudáveis e espirituais propiciadas pelos templos japoneses e coreanos (SON e XU, 2013, p. 250; 252-5).
Mirian Santos Ribeiro de Oliveira, professora de História da Ásia da UNILA.
Referências e sugestões de leitura:
AMBROS, B. R. Partaking of life: Buddhism, Meat-Eating, and Sacrificial Discourses of Gratitude in Contemporary Japan. Religions, 2019, v. 10, n. 4, p. 1-21.
GAARDER, J.; HELLERN, V.; NOTAKER, H. In: GAARDER, J.; HELLERN, V.; NOTAKER, H. O livro das religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 57-83.
KAZA, S. Western Buddhist Motivations for Vegetarianism. Worldviews, 2005, v. 9, n. 3, p. 385-411.
SON, A.; XU, H. Religious Food as a Tourism Attraction: The Roles of Buddhist Temple Food in Western Tourist Experience. Journal of Heritage Tourism, 2013, v. 8, n. 2-3, p. 248-258.
SWINNERTON, R. Traditional temple cooking for the future: Shojin ryori. NHK World Japan. Publicado em 23 out. 2017. Disponível em: https://www.nhk.or.jp/dwc/food/articles/97.html. Acesso em: 24 de mai. 2022.
THUSSU, D. K. The Historical Context of India’s Soft Power. In: THUSSU, D. K. Communicating India’s Soft Power: Buddha to Bollywood. New York: Palgrave Macmillan, 2013, p. 45-72.
Documentários
Sabores do Templo, a simplicidade da cura (Trailer)
Through the Kitchen Window: Shojin Ryori, Buddhist Cuisine
Postagens relacionadas:
História, migração e alimentação
Arquivos comestíveis: história e biodiversidade no Sul da Ásia