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Política de proteção patrimonial do Iguaçu: contexto e legislação na atualidade

No ano de 2024, Foz do Iguaçu conquistou um grande passo na preservação de sua memória histórica, onde pela primeira vez tem aplicado e discutido de forma coerente as ações de tombamento dos espaços históricos da cidade. Essa prática, que já é comum em grande parte do país, demorou para se concretizar na cidade, uma vez que a antiga legislação de proteção patrimonial não mostrava-se suficiente para garantir a salvaguarda dos locais.

Este texto tem como objetivo informar e discutir a atual política patrimonial da cidade, uma vez que estão ocorrendo diversos movimentos de preservação, mas não se tem o conhecimento do grande público. Para isso é necessário compreender o desenvolvimento das práticas de proteção, assim como apresentar as ações desenvolvidas pelo Conselho Municipal de Patrimônio (Cepac) no ano de 2024.

Fonte: Conselho Municipal de Patrimônio Cultural (Cepac)

Em 1914, Foz do Iguaçu elevou-se à categoria de município, alcançando sua independência de Guarapuava. Hoje com 110 anos de existência, conquista o coração de milhares de pessoas anualmente, principalmente por se tratar de um dos principais pontos turísticos do Brasil. Nesse sentido, vale questionar a própria memória oficial da cidade, construída pelos grupos hegemônicos e que silencia a história da diversidade cultural.

A história de moradores e trabalhadores acabam por ficar em segundo plano, em vista das grandes atrações turísticas presentes no território, como as Cataratas do Iguaçu (uma das sete maravilhas naturais do mundo), a Itaipu (maior hidrelétrica do Brasil), marco das três fronteiras (ligação fronteiriça entre o Paraguai, Argentina e Brasil, no contato entre os rios Iguaçu e Paraná) e outras atrações.

Essa contradição existente na memória da cidade se deu principalmente mediante o embate dos setores dominantes tradicionais contra a nova elite pós construção da hidrelétrica de Itaipu, onde houve um esforço para moldar uma história baseada na predestinação do centro turístico, legitimando assim os interesses econômicos entre o presente e o passado (SOUZA, 2009, p.80)

Em vista da modernização” pós Itaipu, houve uma intensa transformação urbana, principalmente por conta da grande expansão populacional e os interesses comerciais. Essa brusca mudança na estrutura social e econômica da cidade gerou diversos problemas, entre eles a especulação imobiliária que está presente até os dias atuais.

Essa relação da modernização” da cidade e de sua memória foi algo caótico no sentido de preservação dos espaços históricos, havendo assim grande expansão das áreas urbanas e pouca preocupação em salvaguardar a história local. Esse tipo de ação auxiliou ainda mais a construir o mito do turismo como única fonte econômica da região, além de reforçar a ideia de que a cidade se desenvolveu unicamente por conta da hidrelétrica de Itaipu.

É comum andar pelas ruas da cidade e reparar que em locais onde outrora existiam prédios antigos hoje há espaços vazios ou até mesmo novas estruturas que em nada lembram as edificações anteriores. Essa ação de demolição dos prédios é um movimento que se faz de esquecimento do passado, dando a ideia de que aquele ponto só é importante a partir da função que irá desempenhar em um futuro “moderno”. E nesse sentido a cidade vai se esquecendo dos caminhos de sua formação e de seu próprio crescimento, sendo necessária cada vez mais a conscientização da população acerca da sua história e de seus patrimônios.

Quando falamos de patrimônios históricos estamos nos referindo a vestígios históricos presente dentro da cidade, no qual auxilia na compreensão da história e questiona as diversas narrativas presentes na cidade, além de firmar uma nova visão sobre os diversos estilos de vida presentes no cotidiano urbano. Na visão de Marques (2013, p. 239), os conteúdos presentes nos patrimônios, estão diretamente ligados à memória coletiva, sendo escolhidos de acordo com as necessidades do presente, ou seja, é um trabalho constante de análise de suas representações e significados determinados pelo contexto do agora.

A partir da análise de Marques, observamos que memória e poder estão unidos na força de esquecimento e recordação, sendo direcionados pelos mecanismos de um interesse vigente, esse argumento auxilia na compreensão da dificuldade de salvaguarda dos patrimônios dentro do município.

Como funciona a proteção dos patrimônios em Foz do Iguaçu?

A primeira legislação municipal de tombamento foi a n°1.500/1990, a qual foi substituída pela lei n°4.470/16 de 05 de agosto de 2016, que aumenta a distribuição dos processos deliberativos de salvaguarda.

A nova legislação criou um órgão técnico independente e consultivo para avaliar os processos de tombamentos, o Conselho Municipal de Patrimônio Cultural (Cepac), que é formado por 18 membros titulares, juntamente com seus suplentes, que atuam de forma não remunerada, separados por membros da sociedade civil, poder público e instituições privadas, tendo votações entre os membros para a direção a cada dois anos (art. 4°-6°). Cabe ao conselho selecionar e fiscalizar os bens materiais e imateriais, tomados de forma coletiva ou individual e que estão relacionados à identidade, memória, atuação humana e acervos da sociedade (art. 1°).

Nesse patrimônio estão incluídos formas de expressão, saberes, celebrações e modo de realizar atividades, criações tecnológicas e artísticas, as obras, objetos e espaços destinados a manifestações artísticas e culturais e, por fim, os conjuntos urbanos e sítios históricos, arqueológicos, arquitetônicos, ecológicos, turísticos, etnográficos, paleontológico e outros.

Em geral existem dois mecanismos de proteção municipal, o tombamento, referente aos bens materiais tangíveis e o inventário de bens culturais, para os bens intangíveis (art. 7°).

A Fundação Cultural possui três Livros de Tombo Municipal, o primeiro sendo de Bens Naturais, incluindo as paisagens, espaços ecológicos, reservas naturais, parques e reservas da cidade. O segundo Livro é o de Bens Imóveis de valor histórico, arqueológico e urbanístico, como obras, edifícios, conjuntos e sítios urbanos ou rurais. O terceiro Livro do Tombo é de Bens Móveis, estando integrado de valor histórico, artístico, folclórico, iconográfico, etnográfico, coleções, objetos, videográficos, fotográficos e outros (art.23).

Já o inventário de Bens Culturais tem como objetivo registrar o patrimônio imaterial considerado relevante para a sociedade iguaçuense, cabendo ao Cepac a formulação dos inventários, com os registros, manutenção, conservação e promoção destes bens.

Cabe destacar que qualquer pessoa interessada, sendo proprietária ou não, pode solicitar o processo de tombamento, através do contato com a Fundação Cultural, apresentando dados do bem material, informações detalhadas sobre e motivos pelos quais o bem deve ser preservado.

Atuais práticas patrimoniais em Foz do Iguaçu

Conforme o cronograma de votação dos processos de tombamento é possível observar que desde abril de 2024 já ocorrem reuniões do Cepac no intuito de finalizar os processos abertos de tombamento. A agenda se estende até o ano de 2025, tendo 19 patrimônios em votação, podendo ser deferido ou não sua inserção no livro de tombo ou no inventário.

Até o presente momento foram votados 11 bens imóveis, sendo aprovados 10 e indeferido 1 bem material, no qual não se mostrou relevante o suficiente para estar salvaguardado pelo município. Vale ressaltar que esse é o primeiro passo para de fato proteger a história municipal por meio dos patrimônios, sendo necessário todo um trabalho de conservação e fiscalização destes espaços, para que assim tenham de fato uma utilidade pública e não seja um símbolo de descarte histórico.

Recentemente o poder público municipal realizou a primeira compra de um imóvel histórico para fins de preservação patrimonial, conforme previsto na lei 4.470/16. Sendo este um fato inédito que comprova a efetivação do Cepac e o compromisso com a memória local. Trata-se do conjunto arquitetônico de Harry Schinke, um espaço no centro da cidade, que é de suma importância para história local e um registro da formação urbana.

Ainda sobre a importância do tombamento e da fiscalização é necessário destacar que é dever de toda comunidade cuidar dos espaços públicos e bens tombados, sendo uma relação dialética entre poder público e moradores da cidade. Desta forma, é possível evitar casos desastrosos de vandalismo, descaso e destruição de uma parte significativa de nossa história, como foi o caso da antiga fachada da Santa Casa Monsenhor Guilherme que devido a falta de cuidado, não resistiu a um temporal e acabou sendo demolida com o vento.

Cabe ressaltar que existem atividades dentro do município que buscam discutir patrimônio, memória e história, como por exemplo a própria Fundação Cultural que se utiliza de um prédio histórico, o antigo fórum judicial da cidade, para construção de um espaço de memória em seu porão, o acervo conta com diversos objetos, fotos e materiais da cidade.

Outros locais em destaque são o projeto de extensão Espaço de Memória do GRESFI, que utiliza do antigo Aeroporto do Parque Nacional do Iguassú, como recurso pedagógico para discutir os patrimônios históricos, sendo realizadas visitas semanais de forma gratuita a toda comunidade, conta também com uma variedade de acervo em seu projeto. O próprio Parque Nacional do Iguaçu está realizando atividades de patrimonialização em seu acervo, tendo estudo de toda a história ancestral e contemporânea ligada ao território.

O presente texto buscou destacar como se dá a política de preservação patrimonial, discutir mesmo que de forma breve a dificuldade de se instaurar uma política de proteção de bens históricos na cidade e apresentar algumas atividades do segmento que estão em andamento atualmente. Por fim, é necessário reforçar a ideia de que uma política pública efetiva de salvaguarda material não se dá apenas na esfera da gestão, mas sim com o esforço da comunidade, estando presente, fiscalizando, discutindo e ocupando os espaços públicos.

Referências

FOZ DO IGUAÇU, Prefeitura Municipal de. Lei Municipal nº 4.470, de 5 de Agosto de 2016. Dispõe sobre a proteção do Patrimônio Cultural, Histórico, Artístico e Ambiental do Município de Foz do Iguaçu, e dá outras providências.

MARQUES, Joana Ganilho Henriques. Museus locais: conservação e produção da memória coletiva, revista Vox Musei arte e património, v. 1 n. 2, p. 235-246, 2013.

SOUZA, Aparecida Darc de. Formação econômica e social de Foz do Iguaçu: um estudo sobre as memórias constitutivas da cidade (1970-2008). Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo. 2009.

Marcos Moraes de Mendonça, egresso do curso de licenciatura em História na UNILA. 

Revisão: Rosangela de Jesus Silva, professora da área de História na Unila




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