LUTERO E A ORIGEM DA REFORMA
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Reforma Protestante Fonte: https://ibadep.com/noticia/ |
A Reforma Protestante foi um importante divisor de águas para o mundo ocidental. Ela impulsionou diversas transformações religiosas, sociais e políticas que foram capazes de moldar a modernidade. Conforme afirma Pierre Chaunu nas primeiras linhas do capítulo “Teoria geral da Reforma Protestante”, a Reforma caminhou para uma ruptura dos ideais medievais e estava intimamente ligada com dois fatores: o Humanismo e a Soteriologia luterana (doutrina da salvação). No que tange o humanismo, era uma nova forma de enxergar o homem, as escrituras:
“O racionalismo humanista pretendeu purificar a linguagem pela qual é transmitida a “palavra eterna” e desembaraçar a Escritura de suas imperfeições, apresentando-as sob uma nova luz. Fazendo isso ele contribuiu para a aceitação da Reforma, pondo em dúvida a autoridade da Igreja Católica (Delumeau, 1989, p. 79 apud ALMEIDA, 2017, p. 111)
Essa referência renascentista foi extremamente importante para se enxergar além da lente católica, escopo esse que era o mais poderoso na Idade Média. Os ideais humanistas vão entrar em conflito com os dogmas católicos existentes e, além disso, o pensamento racionalista também será de extrema importância. Mas de qualquer forma, sola scriptura (somente a escritura) viria a ser um princípio fundamental da reforma, ela defendia que a bíblia é a única autoridade final em questões da prática e fé cristã, e é aí que a abordagem luterana a completa nesse contexto, visto que, Lutero remodela a ideia de salvação, trazendo a tona uma teologia fundamentada no artifício da fé como unicamente responsável para que a salvação fosse alcançada.
A escritura ganhou autoridade máxima e única nessa equação para alcançar a salvação, o que rompeu exatamente com o que se tinha desde a Idade Média: uma delegação do grupo eclesiástico, que tinha em suas mãos o monopólio dos meios de salvação. Além disso, é válido ressaltar o desgaste institucional que a Igreja católica enfrentava, que muito se dava pelo fato da venda de indulgências e a clara distância hierarquizada entre o clero e os fiéis. Acrescenta-se a isso, o fortalecimento dos Estados Nacionais, que é um fator importantíssimo para a Reforma, visto que, os governantes passaram a questionar o exacerbado poder papal.
Ademais, a influência da imprensa possibilitou fortemente o sucesso da reforma à escala que se chegou dentro da Europa, ela foi extremamente importante por exemplo, na circulação das 95 teses de Lutero. A reforma trouxe consigo ideais teológicos importantes para o caminhar do mundo ocidental, entre eles o já citado “sola scriptura” que permitia que qualquer fiel pudesse interpretar os escritos bíblicos. Dessa forma não haveria tanta dependência mais da igreja para conhecer a “verdade divina”. A “sola fide”, diferentemente dos dogmas impostos pelos católicos, dizia que a salvação dependia unicamente e exclusivamente da fé individual. O Sacerdócio Universal dos fieis, que abolia de vez a necessidade de uma hierarquia eclesiástica intermediária entre Deus e os homens, foi algo revolucionário e acabava com o monopólio da igreja sobre a relação do fiel com Deus; E, por fim, foram eliminadas diversas práticas católicas como a de cultuar santos. Portanto, muitas práticas foram eliminadas nas igrejas protestantes, que passaram a adotar uma liturgia mais simples e com foco central na pregação.
Pierre Chaunu chama atenção para como essas mudanças geraram um grande choque e se formaram, os indícios para se levar a uma ruptura. Um sentimento de retorno ao formato antigo de igreja, o mais fiel, seria uma remodelação que o autor denomina como "uma reforma da palavra imutável de Deus”. Mas é claro que essa ruptura não é sentida igualmente por toda Europa, mas de qualquer forma, é coerente se afirmar que a reforma não existiria caso não se tivesse nenhuma percepção da existência de uma continuidade renovada, mesmo que mínima. A Reforma Protestante sensibilizou áreas da Europa onde existia influência Calvinista, iluminista, com destaque para Suíça, Países Baixos, França e a questão inglesa, onde a ruptura se baseia no inconformismo com a igreja da Inglaterra.
MUDANÇAS, RITOS E O CONFLITO PELA FÉ
A Reforma protestante gerou mudanças expressivas, dentre elas, o crescimento da alfabetização; agora havia grande incentivo na leitura do texto bíblico e as monarquias nacionais também se fortaleceram devido a diminuição do poder papal. Além disso, passa a existir um forte choque entre católicos e protestantes, o que resultou em perseguições, massacres e disputas políticas fomentadas por essas guerras religiosas. Natalie Davis (1990) oferece um olhar profundo sobre a violência no que diz respeito à Reforma Protestante como um elemento estruturante das culturas populares. A Reforma não foi um evento unicamente teológico mas um processo que reconfigurou a Europa social e culturalmente. Tudo isso foi marcado pelos conflitos, resistências e novas interpretações culturais.
A Reforma foi um rito de violência, porque representou uma ruptura de grande expressão na tradição católica que reformulou poderes, normas e rituais. A Igreja Católica antes da Reforma era uma instituição que estruturava a sociedade europeia e atuava não só na esfera religiosa, mas de forma política e cultural. A Igreja exercia um controle sobre os ritos e símbolos, estabelecendo um conjunto de práticas que legitimam sua autoridade. Esse poder da igreja gerou grande descontentamento, o que teria levado os reformadores a contestarem a autoridade católica. Para isso usaram estratégias de confronto e subversão dos ritos tradicionais. Lutero e seus seguidores, por exemplo, se apropriaram de símbolos e discursos religiosos com objetivo de minar a influência da Igreja. Esse movimento culminou em confrontos de exacerbada violência. Um exemplo desse embate simbólico foi a iconoclastia protestante. As imagens de santos e objetos de culto foram destruídos, simbolizando uma rejeição à "idolatria católica". Não foi apenas um gesto de destruição, foi um ritual de purificação e reordenação do espaço sagrado, dentro da lógica dos ritos violentos.
Diferentemente do que se pensa, a Reforma foi um processo multiclassista. A cultura popular foi um elemento fundamental para a disseminação da Reforma. Os panfletos, músicas ou sermões, eram utilizados para transformar a crítica à Igreja Católica em um movimento de massas, utilizando uma linguagem acessível e símbolos já comuns entre o povo. A Reforma se apropriou de elementos da cultura católica para destruí-los e reconstruí-los com novos significados. Um exemplo são as traduções da Bíblia para o vernáculo, que permitiram que a população acessasse os textos sagrados sem a mediação do clero, em sua própria língua. Ou ainda as pregações em praças públicas, que substituíram os antigos ritos católicos por novas formas de culto coletivo. Destaque também para as xilogravuras satíricas, que tinham o papel de ridicularizar o papa e os sacerdotes, fazendo uma comparação deles com figuras diabólicas ou corruptas. A cultura popular não apenas reflete a violência, mas a estrutura e também dá legitimidade, reforçando o conflito entre os grupos religiosos. Natalie Davis (1990) demonstra que os conflitos entre católicos e protestantes não se restringiram ao debate teológico ou à iconoclastia, houveram perseguições, execuções e guerras abertas.
Tanto católicos quanto protestantes recorreram buscando consolidar seu domínio. O massacre da Noite de São Bartolomeu, que ocorreu no ano de 1572, é um exemplo que a autora trabalha em seu capítulo “Ritos da violência” (1990). Davis demonstra como a perseguição aos protestantes franceses, os huguenotes, foi justificada dentro de uma lógica de purificação social e defesa da fé. Segundo Natalie Davis, a violência foi um rito coletivo e não um ato isolado, e isso se insere na ideia de que o sangue dos hereges iria garantir uma restauração na ordem cristã. Os protestantes também adotaram estratégias violentas. Em regiões dominadas pela Reforma, padres católicos foram perseguidos, igrejas foram destruídas e populações inteiras foram forçadas a se converter. É como se a violência religiosa fosse vista como um dever sagrado, em que a destruição do inimigo não era um crime, mas uma forma de defesa da “verdadeira” fé. Em um olhar para uma das teses que podem ser vistas como uma das centrais da obra, a violência reestrutura sociedades e seria capaz de estabelecer novas hierarquias de poder, ou seja, a violência não apenas destruiria.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Reforma não foi só um processo de destruição da autoridade católica, foi também, uma criação de novas formas de controle social dentro das comunidades reformadas.
“O homem Lutero tinha razões de sobra para fazer o que fez em 1517, nas portas da Igreja de Wittenberg. E essas razões estão no campo das inquietações religiosas, nas palavras de Jean Delumeau (1989), na “angústia coletiva” que impactava a Europa do final da Idade Média e o início da Modernidade” (ALMEIDA, 2017, p. 108).
Após a consolidação dos territórios protestantes, novos códigos morais foram impostos, sendo muitos deles com o mesmo rigor das punições católicas. O Estado passou a exercer um papel central na fiscalização da fé, substituindo a autoridade da Igreja Católica. Os tribunais eclesiásticos puniam rigorosamente os desvios doutrinários, incluindo execuções de hereges.
Dessa forma, a violência protestante não foi menos intensa que a católica, apenas assumiu novas formas, reforçando a tese de que a Reforma foi tanto um movimento de ruptura, quanto de reorganização social no Ocidente. A partir da bibliografia utilizada podemos entender os contextos por trás da formação e avanço do movimento, e conseguimos fugir de uma idealização romântica da Reforma protestante vista como um movimento puramente de libertação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CHAUNU, Pierre. Teoria geral da Reforma Protestante. In: CHAUNU, Pierre. O tempo das reformas (1250-1550). Lisboa: Edições 70, 1993. p. 157-215.
DAVIS, Natalie Zemon. Ritos de violência. In: DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do povo: sociedade e cultura no início da França moderna: oito ensaios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p. 129-156.
ALMEIDA, Vasni de. A Reforma Protestante: considerações acerca de seu surgimento e de sua expansão. Observatório da Religião, v. 4, n. 1, p. 105–127, jan./jun. 2017. Disponível em: https://revistas.uft.edu.br/index.php/observatoriodareligiao/article/view/5614. Acesso em: 10 jun. 2025.
Wallesson Brasil, estudante de História - Universidade Federal Fluminense (UFF)
Revisão: Rosangela de Jesus Silva - Professora da área de História da Unila