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Transformar nossa história em arquivo: historiadores e arquivistas

Fotografia de Floyd Kauê Moreira Silva, estudante do curso de História – América Latina, reproduzida com permissão do autor

Em nossa postagem sobre a fotógrafa Susan Meiselas, destacamos como, em seu trabalho sobre o povo curdo, Meiselas dedicou-se a constituir um arquivo da diáspora curda. Esse arquivo, formado de fotografias guardadas por imigrantes curdos e seus descendentes em diversas partes do globo, permitiu-lhe contextualizar e dar sentido às fotografias que a própria Meiselas havia capturado no Oriente Médio, ao registrar os vestígios de um massacre de curdos ordenado por Sadam Hussein. Sem o arquivo, sem uma série de imagens, esse sentido estaria ausente: uma ou poucas imagens não bastariam para compreender a história da diáspora curda.

A centralidade do arquivo para a escrita da história pode parecer uma obviedade, escondendo a própria história das relações entre conhecimento histórico e arquivística, entre historiadores e arquivistas. Ao longo do tempo, porém, tais relações passaram por transformações. Nas últimas décadas, arquivistas e historiadores buscaram redefinir papéis cujo estabelecimento remontava ao final do século XIX. Como aponta Terry Cook (2009), o desenvolvimento das disciplinas da história e da arquivística, desde o século XIX, foi marcado pela separação entre ambas e por uma relação de subordinação do arquivista em relação ao historiador. Cook destaca como os primeiros manuais de arquivística europeus, entre o final do século XIX e início do século XX, propunham um papel neutro por parte do arquivista, apenas servindo o historiador e apresentando-o a um arquivo supostamente desprovido de subjetividade e escolhas.

Elizabeth Yale (2015) recupera como, nas últimas décadas, o arquivo passou a ser problematizado pelos historiadores, a partir, especialmente, de reflexões da teoria crítica, particularmente Jacques Derrida, em Mal de arquivo: uma impressão freudiana (2001 [1995]), e Michel Foucault, em A arqueologia do saber (2008 [1969]). Notadamente a partir dos anos 1980, os arquivos, como mostra Yale, receberam atenção de historiadores e arquivistas sob diversos aspectos. Um estudo importante de reflexão sobre o arquivo, por parte dos historiadores, emblemático desta revisão, é O sabor do arquivo, de Arlette Farge, publicado originalmente em 1989 (2009).

A coletânea Archive Stories: Facts, Fiction, and the Writing of History (Histórias de Arquivos: Fatos, Ficção e a Escrita da História, 2005) compendia experiências de historiadores com diferentes tipos de arquivos, desde digitais a depoimentos orais. A variedade de estudos reunidos inclui reflexões sobre experiências de vida sob impérios e colonialidade, gênero e etnia nos arquivos, mecanismos cotidianos de exclusão (como a emissão de passaportes), história social de movimentos queer e anti-racistas, e a relevância do arquivo para demandas contemporâneas de reparação histórica. Antoinette Burton, editora do volume, destaca as transformações que a Era Digital trouxe para a noção de evidência e para as relações entre história e verdade. Embora constitua arquivos de estabilidade relativamente frágil, a Era Digital ampliou as possibilidades de salvaguarda da história de grupos e movimentos sociais por meio de iniciativas dos próprios grupos. (Possibilidades particularmente ricas para o arquivamento das experiências da pandemia de Covid-19, fundamental para histórias da pandemia que não reproduzam as desigualdades da experiência da pandemia, como aponta Ian Kisil Marino.) Segundo Burton:


A disponibilidade online de fontes arquivísticas de todos os tipos decididamente nos transforma a todos em arquivistas hoje. E, dada a convergência de arquivos virtuais e cultura comercial corporativa, aparentemente somos todos também consumidores de arquivos – ao menos potencialmente (BURTON, 2005, tradução nossa)


Para a autora, torna-se primordial desnaturalizar o espaço do arquivo, historicizando-o de modo a identificar sua trajetória de formação e as lutas e disputas por poder que marcam sua constituição e acesso. Concretamente, uma possibilidade de pensar as escolhas e valores envolvidos na constituição de arquivos é pensar a partir da própria prática. A disciplina de Introdução à História do curso de História – América Latina propôs o exercício de constituição de arquivos a partir de objetos pessoais dxs estudantes, ou de objetos de valor histórico vislumbrado por elxs. Dessa maneira, arquivos surgidos de coleções pessoais, de objetos de família, de produções próprias, ou de registros do cotidiano foram imaginados como cernes de possíveis projetos de arquivamento. Nesse sentido, pensou-se na possibilidade de salvaguardar registros históricos de sujeitos talvez pouco visados pelas políticas dos arquivos.

Na linha dos objetos de herança familiar, a estudante Juliana Mendes Sá propôs o arquivamento de objetos pessoais que registrassem a trajetória de sua família (como fotografias). Para além de uma história pessoal, todas as histórias familiares têm elementos sociais, compartilhados com outras experiências. A experiência de migrantes nordestinos no Brasil, mães, mulheres negras, como destacado por Juliana a partir de sua proposta, demanda um arquivamento que permita a escrita da história desses sujeitos. Weslei da Silva Oliveira também propôs arquivo para objetos e trajetórias familiares, especialmente a partir de fotografias de família, registrando migrações. São iniciativas que podem ser contempladas por centros como o Museu da Pessoa.

Objetos do cotidiano, como contas de utilidades domésticas (contas de luz, por exemplo), ou fitas de vídeo e cassete, foram objeto dos arquivos propostos por José Víctor Cazorla e Felipe Guimarães dos Santos, respectivamente. Registros de movimentos sociais foram lembrados como objetos de arquivamento, como periódicos ligados aos movimentos de mulheres em São Paulo nos anos 1980, na proposta de Andresa Macedo dos Santos.

Detalhe de programa de peça de teatro guardado por Fábio Guilherme Salvatti

Coleções pessoais, reveladoras de nossas experiências de vida ligadas a uma atividade que perseguimos por quase toda nossa vida, podem revelar acervos inesperados e ricos: Fábio Guilherme Salvatti propôs um acervo de programas de peças de teatro (a partir de sua coleção pessoal), abrindo caminho para o registro da história de uma arte performativa. Pensando no registro das manifestações artísticas ocorridas e por ocorrer na UNILA, Acauã Allende Silva Capucho propôs um arquivo de registros dessas atividades, em todas as suas formas (desde os trabalhos dos cursos de Artes até performances ocasionais de estudantes ou técnicos, incluindo o artesanato vendido pelxs estudantes nos corredores da universidade). 

Fotografia de Floyd Kauê Moreira Silva, estudante do curso de História – América Latina, reproduzida com permissão do autor

Floyd Kauê Moreira Silva propôs arquivar sua própria produção fotográfica, que registrou a rotina de sua cidade, Suzano, e deslocamentos dali para São Paulo, capital. Mostrando o ir e vir de trabalhadores, Floyd pensou uma forma de arquivar mobilidades, justamente antes da maior ruptura recente de nossa mobilidade, a pandemia global de Covid-19 (as fotografias foram feitas em dezembro de 2019). Para pensar o conceito e a organização de arquivos pessoais, a disciplina de Introdução contou com a participação da mestranda em História da UNILA Ester Araújo Lima da Silva, que se valeu de sua pesquisa de mestrado, voltado para o estudo de um arquivo pessoal (já apresentada aqui no blog). Também como suporte, contamos, na disciplina, com os vídeos do canal do Arquivo Público do Estado de São Paulo no YouTube, sobre a organização de nossos objetos pessoais como arquivos, como o vídeo “Como organizar meus documentos em casa?”:


Pensar a relação entre história e arquivo envolve considerar todas as escolhas e decisões que são parte dos processos de preservação. Refletindo sobre o que guardaríamos nós, historiadorxs de hoje, de nosso cotidiano, para xs historiadorxs do futuro, vislumbramos o tipo de história que queremos fazer atualmente, e a possibilidade de narrativas mais plurais (tanto em termos de sujeitos históricos representados, como de aspectos de suas vidas que serão lembrados no futuro). Não temos como garantir que história será escrita pelas próximas gerações, mas podemos contribuir para que nossos futuros colegas tenham mais chances de produzir narrativas mais ricas e diversas. 


Referências e sugestões de leitura:

 

BURTON, Antoinette (ed.). Archive Stories: Facts, Fictions, and the Writing of History. Durham e Londres: Duke University Press, 2005.

COOK, Terry. The Archive(s) is a Foreign Country: Historians, Archivists, and the Changing Archival Landscape. The Canadian Historical Review, volume 90, no. 3, set. 2009, p. 497-534.

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

YALE, Elizabeth. The History of the Archives: The State of the Discipline. Book History, vol. 18, 2015, p. 332-359.

 

Postagem dedicada à turma de Introdução à História da UNILA, turma de ingressantes de 2020.

 

Pedro Afonso Cristovão dos Santos, professor de Teoria e Metodologia da História da UNILA


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