Pular para o conteúdo principal

Mira Behn: ativismo social e ambiental na Índia no século XX

 

Vista dos Himalaias, a partir de Nainital, cidade situada no estado de Uttarakhand, onde atuou Mira Behn nos anos 1940 e 1950. Foto: Agnes Bun/AFP. Disponível em: https://scroll.in/article/982140/why-uttarakhand-should-choose-a-more-sustainable-path-to-development-in-a-post-covid-world Acesso em: 05/07/2022


Em Mira e o Mahatma, o psicanalista e escritor indiano Sudhir Kakar (1938-) escreveu sobre a relação entre Madeleine Slade (1892-1982) e Mohandas Karamchand Gandhi (1869-1948), também conhecido como Mahatma Gandhi. O romance, publicado no Brasil em 2005, foi fundamentado por fontes históricas como relatos autobiográficos, cartas e diários – muitas delas armazenadas nos arquivos do Nehru Memorial Museum and Library, em Nova Délhi – e também contém elementos ficcionais, por meio dos quais o autor buscou preencher lacunas existentes na documentação consultada. A narrativa que emerge na obra oferece aos leitores uma representação rica e multifacetada da vida comunitária nos ahsrams idealizados e materializados por Gandhi. Parte dos experimentos sociais promovidos pelo líder indiano, a vida nessas comunidades era inspirada por princípios de igualdade (com ênfase no questionamento das hierarquias de castas), pela valorização do trabalho manual, pela adoção de um estilo de vida frugal e pela tolerância religiosa. Os grandes desafios enfrentados pelos residentes estavam relacionados a sua própria condição humana – ou seja, à dificuldade de questionar padrões sociais tão fortemente interiorizados e de se entregar à proposta de reforma íntima proposta por Gandhi.

Em meados da década de 1920, a jovem Madeleine Slade, então com 33 anos, mudou-se para o ashram Sabarmati, em Ahmedabad, e tornou-se, gradualmente, a irmã Mira (Mira Behn). A discípula sincera e dedicada de Gandhi, também passou por muitas provações, relacionadas à adaptação a uma nova cultura e às tarefas que lhe foram impostas com o objetivo de demonstrar que não recebia tratamento especial por ser uma mulher estrangeira – como, por exemplo, lavar os banheiros do ashram cotidianamente. De acordo com o historiador indiano Ramachandra Guha (2006), Mira, como uma das discípulas mais próximas de Gandhi foi profundamente inspirada por sua convicção de que a libertação e a renovação da Índia dependiam da regeneração das zonas rurais. O coração do subcontinente indiano era agrário, na visão de Gandhi, e somente por meio da recuperação da dignidade das populações rurais e de suas principais atividades econômicas, a agricultura e o artesanato, poderia a Índia tornar-se autossuficiente ou soberana.

Mira trabalhou ao lado de seus companheiros gandhianos em diversas atividades de fortalecimento da organização das aldeias indianas, no interior do território então sob dominação britânica. Um período pouco conhecido de sua vida foi seu envolvimento em atividades de preservação do meio ambiente. Este aspecto de sua trajetória não foi explorado no romance Mira e o Mahatma, uma vez que se trata de uma iniciativa levada adiante por Mira, distante da companhia de Gandhi. A partir de 1947, ela se dirigiu às regiões montanhosas dos Himalaias, fundando novas comunidades (ashrams) e concentrando-se em atividades de preservação das florestas ali existentes. Foi uma das primeiras ativistas a indicar claramente a relação entre “desmatamento, erosão do solo e inundações nos Himalaias” (Guha, 2006, p. 229, tradução nossa). Diagnosticou, ainda, dois dos problemas mais graves das práticas de engenharia florestal adotadas pelo governo britânico, inicialmente, e incorporadas pelo governo da Índia independente: falta de participação dos moradores locais nas decisões e intervenções realizadas; o reflorestamento com espécies pouco adaptadas à região (como o pinheiro, com pouca capacidade de absorver e reter água da chuva). Essas observações constaram de relatórios cuidadosamente documentados com fotografias, enviados por Mira a J.L. Nehru, então Primeiro-Ministro da Índia.

Capa de edição eletrônica do livro “Mira e o Mahatma”. Disponível em: https://www.amazon.in/Mira-Mahatma-Sudhir-Kakar-ebook/dp/B07GBZF8QK/ref=tmm_kin_swatch_0?_encoding=UTF8&qid=&sr=. Acesso em: 05/07/2022

 

Mas a percepção aguçada de Mira para estes e outros problemas ambientais observados durante seu período nos Himalaias (de 1947 a 1959, quando deixou definitivamente a Índia e se radicou na Alemanha) estava em dissonância com as avaliações predominantes da época. Guha (2000) considera que Mira fazia parte de um pequeno grupo de mentes e vozes discordantes – ao qual pertenceriam, ainda, outros ambientalistas como o economista alemão E. F. Schumacher (1911-1977), que inspirou profundamente Satish Kumar, outro ativista ambiental indiano – em uma “era de inocência ecológica”. O historiador indiano nos lembra que, após o término da Segunda Guerra Mundial e a descolonização de vastas áreas da África e da Ásia, o discurso e a prática do desenvolvimento fundamentaram-se, em grande medida, pela vontade e necessidade de transformar as condições de pobreza em que se encontrava grande parte da população mundial. Na Europa e nos Estados Unidos, a obsessão com produção e produtividade estava associada à possibilidade de obtenção de níveis de conforto e consumo em larga escala até então inéditos. Na África e na Ásia, líderes 

nacionalistas como Nehru, na Índia, Surkarno, na Indonésia, e Nasser, no Egito, estavam unidos pela crença de que o imperialismo só havia se tornado possível devido à superioridade econômica e tecnológica das potências coloniais. A descolonização havia aberto a potencialidade de que essas nações anteriormente ‘subdesenvolvidas’ entrassem ‘em desenvolvimento’ de acordo com as mesmas diretrizes adotadas pelo Ocidente. A industrialização rápida, pensava-se, colocaria um fim à pobreza e ao desemprego e originaria uma sociedade forte e independente (GUHA, 2000, p. 65, tradução nossa). 

 

Nas duas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, podia-se observar, assim, a predominância de uma atitude otimista, diante das promessas do desenvolvimento de que todas as pessoas, em qualquer região do mundo, poderiam, num futuro não muito distante, ter acesso a direitos e oportunidades iguais. Dizer que este período teria sido “ecologicamente inocente”, de acordo com Guha (2000), permite-nos destacar que a ênfase no crescimento econômico, acompanhada do ideal de distribuição dos recursos em várias partes do “mundo em desenvolvimento”, posicionava considerações ecológicas à margem das formulações econômicas e políticas. Observações sobre os impactos da industrialização sobre a natureza, ou sobre a escassez dos recursos naturais disponíveis, pareciam irrelevantes em vista das potencialidades da ciência e da tecnologia.

As vozes discordantes deste período voltam a se ouvir, no entanto, nas primeiras décadas do século XXI. O resgate da vida e obra de sujeitos envolvidos direta ou indiretamente com a preservação do meio ambiente, como Mohandas Gandhi e Mira Behn, tem inspirado novas gerações de ambientalistas sul-asiáticos, como discutimos na postagem sobre soberania ecológica (Eco-Swaraj).

 

Referências e sugestões de leitura:

GUHA, R. Environmentalism. A global history. New York: Longman, 2000.

GUHA, R. Mahatma Gandhi and the Environmental Movement.  In: RAGHURAMARAJU, A. Debating Gandhi. A reader. New Delhi: Oxford University Press, 2006, p. 223-236.

KAKAR, S. Mira e o Mahatma. A fascinante relação entre o Mahatma Gandhi e a inglesa Madeleine Slade. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005.

 

Mirian Santos Ribeiro de Oliveira, professora de História da Ásia na UNILA.

Postagens mais visitadas deste blog

A perspectiva na pintura renascentista.

Outra característica da pintura renascentista é o aprimoramento da perspectiva. Vejamos como a Enciclopédia Itaú Cultural Artes Visuais se refere ao tema: “Técnica de representação do espaço tridimensional numa superfície plana, de modo que a imagem obtida se aproxime daquela que se apresenta à visão. Na história da arte, o termo é empregado de modo geral para designar os mais variados tipos de representação da profundidade espacial. Os desenvolvimentos da ótica acompanham a Antigüidade e a Idade Média, ainda que eles não se apliquem, nesses contextos, à representação artística. É no   renascimento   que a pesquisa científica da visão dá lugar a uma ciência da representação, alterando de modo radical o desenho, a pintura e a arquitetura. As conquistas da geometria e da ótica ensinam a projetar objetos em profundidade pela convergência de linhas aparentemente paralelas em um único ponto de fuga. A perspectiva, matematicamente fundamentada, desenvolve-se na Itália dos séculos XV e

"Progresso Americano" (1872), de John Gast.

Progresso Americano (1872), de John Gast, é uma alegoria do “Destino Manifesto”. A obra representa bem o papel que parte da sociedade norte-americana acredita ter no mundo, o de levar a “democracia” e o “progresso” para outros povos, o que foi e ainda é usado para justificar interferências e invasões dos Estados Unidos em outros países. Na pintura, existe um contraste entre “luz” e “sombra”. A “luz” é representada por elementos como o telégrafo, a navegação, o trem, o comércio, a agricultura e a propriedade privada (como indica a pequena cerca em torno da plantação, no canto inferior direito). A “sombra”, por sua vez, é relacionada aos indígenas e animais selvagens. O quadro “se movimenta” da direita para a esquerda do observador, uma clara referência à “Marcha para o Oeste” que marcou os Estados Unidos no século XIX. Prof. Paulo Renato da Silva. Professores em greve!